Art. 4 — Se foi conveniente o modo e a ordem da tentação.

O quarto discute-se assim. — Parece que não foi conveniente o modo nem a ordem da tentação.

1. — Pois, a tentação do diabo é para induzir a pecar. Ora, se Cristo satisfizesse à fome do seu corpo convertendo as pedras em pão, não pecaria; assim como não pecou quando multiplico os pães – milagre não menor – para matar a fome à multidão. Logo, parece que não houve no caso nenhuma tentação.

2. Demais. — Ninguém que queira persuadir a outrem irá persuadi-lo do contrário do que pretende. Ora, o diabo, colocando a Cristo sobre o pináculo do templo, pretendia tentá-lo com a soberba ou a vanglória. Logo, não devia tê-lo persuadido a atirar-se abaixo, o que é o contrário da soberba ou da vanglória, que busca sempre subir.

3. Demais. — Cada tentação há de ter por objeto um pecado. Ora, a tentação do monte persuadiu à prática de dois pecados — o da cobiça e o da idolatria. Logo, parece que o modo da tentação não foi o devido.

4. Demais. — As tentações têm por fim os pecados. Ora, sete são os vícios capitais, como se estabeleceu na Segunda Parte. Ora, o diabo não tentou senão com os três — da gula, da vanglória e da cobiça. Logo, parece não ter sido suficiente a tentação.

5. Demais. — Depois da vitória sobre todos os vícios, fica o homem sujeito à tentação da soberba e da vanglória; porque, a soberba também arma cilada às boas obras, para perdê-las, como diz Agostinho. Logo, inconvenientemente, Mateus situa no monte a última tentação — a da cobiça: e no templo, a média — a da vanglória; sobretudo quando Lucas segue a ordem inversa.

6. Demais. — Jerônimo diz, que o propósito de Cristo foi vencer o diabo pela humildade e não pelo poder. Logo, não devia tê-lo repelido imperiosamente, objurando-o: vai-te, Satanás.

7. Demais. — Parece que há falsidade na narração do Evangelho. Pois, não era possível Cristo ser colocado no pináculo do Templo, sem que fosse visto por todos. Nem há nenhum monte tão alto donde pudesse ser descortinado todo o mundo, de modo que pudesse aparecer a: Cristo todos os reinos dele. Logo, parece mal referida a tentação de Cristo.

Mas, em contrário, a autoridade da Sagrada Escritura.

SOLUÇÃO. — O nosso inimigo nos tenta por meio de sugestões, como diz Gregório. Ora, não é do mesmo modo que faz sugestão a todos, mas a cada um sugere aquilo a que oinclina o afeto. E é a razão do diabo não tentar as pessoas espirituais, entrando logo a sugerir-lhes pecados graves; mas começa paulatinamente, sugerindo-lhes os mais leves para passar depois aos mais graves. Por isso, Gregório, expondo aquilo da Escritura — Cheira de longe a batalha, a exortação dos capitães e o alarido do exército. — Comenta: Acertadamente se fala na exortação dos capitães e no alarido do exército. Porque os primeiros vícios à sorrelfa e com aparências de razão, se introduzem na alma transviada mas todos os mais daí resultantes confundem-na com um como clamor bestial, arrastando-a a toda espécie de demências.

E foi essa ordem a mesma que o diabo observou na tentação do primeiro homem. Assim, primeiro despertou-lhe na alma o desejo de comer do fruto da árvore proibida, ao dizer-lhe: Por que vos mandou Deus que não comêsseis de toda árvore do paraíso? Depois, tentou-o com a vanglória, quando disse: Abrir-se-vos-ão os olhos. E em terceiro lugar, levou a tentação ao extremo da soberba, quando disse: Vós sereis como uns deuses, conhecendo o bem e o mal. E também observou a mesma ordem quando tentou a Cristo. Assim, primeiro tentou-o com o desejo natural do sustento da vida do corpo, por meio da comida, que têm todos os homens, por mais espirituais que sejam. Depois passou à tentação de obrar por ostentação, em que os varões espirituais às vezes caem, e que constitui a vanglória: E em terceiro lugar, despertou a tentação do desejo das riquezas e da glória do mundo até ao desprezo de Deus, na qual não caem os homens espirituais, mas só os carnais. Por isso, nas primeiras duas tentações o diabo disse — Se és o filho de Deus; não porém na terceira, na qual não caem os varões espirituais, por serem filhos adotivos de Deus, podendo porém cair nas duas primeiras.

E assim, Cristo resistiu a essas tentações, invocando o testemunho da lei e não recorrendo ao seu poder, para desse modo honrar mais o homem e dar maior punição ao adversário, que foi vencido não por Deus mas pelo homem, como escreve Leão Papa.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Usar do necessário para o sustento não é pecado de gula; mas proceder desordenadamente, levado do desejo desse sustento, pode constituir o referido pecado. Assim, é proceder desordenadamente querermos que a comida nos seja fornecida milagrosamente, só para sustentarmos o corpo, quando podemos fazê-lo pelo subsídio humano. Por isso o Senhor distribuiu milagrosamente o maná aos filhos de Israel no deserto, porque de nenhuma outra maneira podiam alimentar-se. Do mesmo modo Cristo alimentou milagrosamente a multidão no deserto, que não podia ser nutrida de outra maneira. Ora, Cristo, para satisfazer a sua fome, podia recorrer a outros meios que não o milagre, como o fez João Batista; ou também dirigindo-se a povoações próximas. Por isso, o diabo pensava que Cristo pecaria se, na qualidade de puro homem, tentasse fazer milagre, para satisfazer a fome.

RESPOSTA À SEGUNDA. — É comum fazer-se da humildade exterior um meio de buscar a glória que nos exalte, pelos nossos bens espirituais. Por isso diz Agostinho: Devemos notar que pode haver jactância, não somente no esplendor e na pompa dos bens externos, mas também nas mortificações da humildade. E para o significar o diabo persuadir a Cristo que se despenhasse abaixo, corporalmente, para ganhar a glória espiritual.

RESPOSTA À TERCEIRA. — É pecado desejar desordenadamente as riquezas e as honras do mundo. O que sobretudo se dá quando para alcançá-las, procedemos desonestamente. Por isso o diabo não se contentou com persuadir a cobiça das riquezas e das honras: mas induzir a Cristo que, para alcançá-las, o adorasse, o que é o máximo crime e contra Deus. Nem só disse — Se me adorares, mas acrescentou — se prostrado, porque, como diz Ambrósio, há na ambição um perigo iminente — o de primeiro servir para depois dominar os outros; de curvar-se em obséquios para depois ser honrada; e de se tornar remissa para em seguida guindar-se. — E semelhantemente, nas precedentes tentações, procurou despertar o desejo de um pecado, — para fazer cair em outro; assim, pela desejo da comida procurou levar à vaidade de fazer milagres sem causa; e pelo desejo da glória, quis fazer Cristo tentar a Deus, atirando-se do templo abaixo.

RESPOSTA À QUARTA. — Como diz Ambrósio, a Escritura não teria dito que o diabo se afastou de Cristo, depois de consumadas todas as três tentações, se nessas três não incluíssem a matéria de todos os pecados. Pois, as causas das tentações são as causas das seguintes cobiças: os deleites da carne, a esperança da glória e o desejo do poder.

RESPOSTA À QUINTA. — Como diz Agostinho, é incerto o que se passou em primeiro lugar se primeiro forem mostrados a Cristo os reinos da terra e depois foi levado ao pináculo do Templo, ou se foi este último fato anterior àquele. Mas nada importa para o caso, pois, é certo que ambos se deram. Os Evangelhos, porém os narram em ordem diferente, pois, ora referem a vanglória antes da cobiça, ora inversamente.

RESPOSTA À SEXTA. — Quando Cristo sofreu a injúria da tentação ao dizer-lhe o diabo – Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo, não se perturbou nem o increpou. Mas quando o diabo, usurpando para si a honra devida a Deus, disse — Dar-te-ei todas estas coisas se prostrado me adorares — Cristo exasperou-se e repeliu-o dizendo — vai-te, Satanás; querendo ensinar-nos com esse exemplo que devemos suportar magnanimamente as injúrias, feitas a nós mas não toleramos, nem sequer para os ouvir, as injúrias feitas a Deus.

RESPÓSTA ÀSÉTIMA. — Como diz Crisóstomo o diabo levou a Cristo (ao pináculo do Templo) para que fosse visto de todos; mas ele, sem o diabo saber, dispôs-se de modo a não ser vista de ninguém. — E enquanto ao dito – E lhe mostrou todos os reinos da terra não devemos entendê-lo como significando, que os viu a esses reinos, materialmente falando, nem as cidades ou os povos ou o ouro ou a prata, que contivessem; mas sim, que o diabo mostrava com o dedo a Cristo as partes da terra, nos quais cada um desses reinos ou cidades estava situado e expunha verbalmente as honras e o estado de cada um deles. — Ou, segundo Orígenes, mostrava-lhe como ele, por meio dos diversos vícios, reinava no mundo.