Art. 1 — Se houve conveniência nos milagres que Cristo fez em relação a substâncias espirituais.

O primeiro discute-se assim. — Parece que não houve conveniência nos milagres que Cristo fez em relação a substâncias espirituais.

1. — Pois, entre as substâncias espirituais; os santos anjos governam os demônios; porque, como diz Agostinho, o espírito pecador divorciado da vida racional, é governado pelo espírito de vida racional, pio e justo. Ora, não lemos nos Evangelhos que Cristo tivesse feito nenhum milagre relativamente aos anjos bons. Logo, também não devia ter feito nenhum relativamente aos demônios.

2. Demais. — Os milagres de Cristo tinham por fim manifestar-lhe a divindade. Ora, a divindade de Cristo não devia ser manifestada aos demônios, o que viria impedir o mistério da sua paixão, segundo o Apóstolo: Se eles a conheceram, nunca crucificariam ao Senhor da glória. Logo, nenhum milagre devia Cristo fazer relativamente aos demônios.

3. Demais. — Os milagres de Cristo se ordenavam à glória de Deus; por isso diz o Evangelho, que as turbas, vendo um paralítico curado por Cristo, temeram e glorificaram a Deus porque deu tal poder aos homens. Ora, não é próprio dos demônios glorificar a Deus, porque o louvor não tem beleza na boca do pecador, no dizer da Escritura. Por onde, como dizem Marcos e Lucas, Cristo não permitia aos demônios proclamarem nada do atinente à sua glória. Logo, parece não era conveniente que fizesse nenhum milagre relativamente a eles.

4. Demais. — Os milagres feitos por Cristo se ordenam à salvação dos homens. Ora, certos demônios foram expulsos de certos homens, em detrimento deles. Às vezes corporal; assim; refere o Evangelho, que o demônio, por ordem de Cristo, dando grandes gritos e maltratando muito o homem, saiu dele; e ficou como morto, de sorte que muitos diziam — está morto. Outras vezes também em detrimento das coisas, como quando se fez os demônios se introduzirem em porcos, que se precipitaram no mar; sendo por isso Cristo rogado pelos habitantes da região a sair do país deles, como lemos no Evangelho. Logo, parece que esses milagres eram inconvenientes.

Mas, em contrário, a Escritura o prenunciou, quando disse: Exterminarei da terra o espírito imundo.

SOLUÇÃO. — Os milagres que Cristo fez serviam de argumentos em favor da fé que pregava. Pois, haveriam de vir homens crentes nele que, por virtude da sua divindade, suplantassem o poder dos demônios, conforme lemos no Evangelho: Agora será lançado fora o príncipe deste mundo. Por isso, foi conveniente que, entre outros milagres, também livrasse os obsessos dos demônios.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Assim como os homens deviam ser livrados por Cristo do poder dos demônios, assim também deviam ser por ele associados aos anjos, segundo aquilo do Apóstolo: Pacificando pelo sangue da sua cruz tanto o que está na terra como o que está no céu. Por isso, o único milagre que convinha fazer, relativamente aos anjos, é que estes aparecessem aos homens; e isso se deu na natividade, a ressurreição e a ascensão.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz Agostinho, Cristo deu-se a conhecer aos demônios na medida em que lh’o aprouve; e tanto lhe aprouve quanto era necessário. Mas deu-se-lhes a conhecer não como aos santos anjos, pelas causas da vida eterna, mas por certos efeitos temporais do seu poder. Assim, primeiro, vendo Cristo ter fome depois do jejum, não o tiveram por Filho de Deus. Por isso, àquilo do Evangelho — Se és o Filho de Deus — diz Ambrósio: Que quer o demônio significar, começando com essa pergunta, senão que sabe que o Filho de Deus havia de vir, mas não o julgava sujeito às necessidades do corpo? Mas depois, à vista dos milagres, conjeturou, por suspeitas, que fosse o Filho de Deus. Por isso, aquilo do Evangelho — Bem sei quem és: que és o Santo de Deus — diz Crisóstomo, que não tinha um conhecimento certo ou firme do advento de Deus. Sabia, porém que Cristo tinha sido prometido pela lei, sendo por isso que diz o Evangelho: Sabiam que ele mesmo era o Cristo. E quanto ao terem-no confessado Filho de Deus, o fizeram mais por suspeita que por certeza. Por isso Beda diz: Os demônios confessam o Filho de Deus; e como a seguir se refere: Sabiam que ele era o Cristo. Porque, vendo-o o diabo exausto pelo jejum, tomou-o como um verdadeiro homem; mas, pelo não ter vencido com a tentação, entrou a duvidar se não seria o Filho de Deus. Mas quando deu provas do seu poder, pelos milagres, ou compreendeu, ou antes, suspeitou que fosse o Filho de Deus. E se persuadiu aos judeus que o crucificassem, não foi pelo não reputar Filho de Deus, mas por não prever que seria vencido pela morte dele. Assim, desse mistério recôndito aos séculos, diz o Apóstolo, que ninguém, dos príncipes deste mundo, o conheceu; pois, se o tivessem conhecido nunca teriam crucificado o Senhor da glória.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O milagre da expulsão dos demônios Cristo não o fez para utilidade deles, mas para a dos homens, a fim de que o glorificassem. E por isso proibiu-os proclamarem-lhe o louvor. — Primeiro, para exemplo. Pois, como diz Atanásio, impedia o demônio de falar, embora fosse para proclamar a verdade, para também nós nos acostumarmos a desprezar tais ditos, mesmo pareçam traduzir a verdade. Pois, é pecaminoso deixarmo-nos instruir pelo diabo, quando temos à nossa disposição a Escritura divina; o contrário seria perigoso, porque os demônios frequentemente misturam a mentira com a verdade. — Segundo, porque, como diz Crisóstomo (Cirilo Alexandrín.) não deviam eles arrebatar a glória do ofício apostólico. Nem convinha que uma boca impura fosse a que publicasse o mistério de Cristo, porque o louvor não tem beleza na boca do pecador. — Terceiro, porque, como diz Beda (Teofílacto), não queria desse modo despertar a inveja dos Judeus. Por isso também os próprios Apóstolos foram mandados calar a respeito dele, a fim de não diferirem o mistério da paixão com a proclamação da divina majestade.

RESPOSTA À QUARTA. — Cristo veio especialmente ensinar e fazer milagres para utilidade dos homens, sobretudo quanto à salvação da alma. Por isso permitiu aos diabos, que expulsava, causar certos danos aos homens, quer na pessoa quer nos bens deles, para a salvação da alma humana, por meio da instrução deles. Por isso diz Crisóstomo, que Cristo permitiu aos demônios introduzirem-se nos porcos. Não que disso o persuadissem aqueles; mas, primeiro, para nos mostrar a grandeza do dano que causam aos homens as insídias dos demônios. Segundo, para que todos compreendessem que nem contra porcos ousam fazer nada, sem o consentimento dele, Cristo. Terceiro, para mostrar que causariam maiores danos aqueles homens, que aos referidos porcos, se os homens não fossem ajudados da providência divina. E também por essas mesmas causas permitiu que o libertado dos demônios fosse na mesma hora afligido mais gravemente, de cuja aflição porém logo o livrou. O que também mostra, como diz Beda, que muitas vezes, quando nos esforçamos por nos converter a Deus, depois dos pecados, o nosso antigo inimigo nos arma maiores e novas insídias. E isso faz ou para nos incutir o ódio da virtude ou para vingar-se da injúria sua expulsão. E enfim, o homem curado tornou-se como morto, porque, explica Jerônimo, aos curados foi dito: Já estais mortos e a vossa vida está escondida com’ Cristo em Deus.