Art. 2 ─ Se os defuntos podem ser socorridos pelas obras dos vivos.

O segundo discute-se assim. ─ Parece que os mortos não podem ser socorridos pelas obras dos vivos.

1. – Pois, primeiro, pela razão dada pelo Apóstolo: importa que todos nós compareçamos diante do tribunal de Cristo, para que cada um receba o galardão segundo o que tem feito, estando no próprio corpo. Logo, pelo que fizermos depois da morte, quando a nossa alma estiver separada do corpo, mais obras nenhumas poderão nos aproveitar.

2. Demais. ─ O mesmo resulta de outro lugar da Escritura: Bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor, porque as obras deles os seguem.

3. Demais. ─ Tirar vantagem das obras só é possível aos que vivemos viandantes neste mundo. Ora, depois da morte, já não são os homens viandantes, pois deles se entende o dito da Escritura: Por todas as partes fechou o meu caminho e não posso passar. Logo, os mortos não podem ser socorridos pelos sufrágios de ninguém.

4. Demais. ─ Ninguém pode tirar proveito das obras de outrem, se nenhuma comunicação houver entre ambos. Ora, nenhuma comunicação há entre os mortos e os vivos, segundo o Filósofo. Logo, os sufrágios dos vivos não aproveitam aos mortos.

Mas, em contrário, a Escritura: É um santo e saudável pensamento orar pelos mortos, para que sejam, livres dos seus pecados. Ora, isto não seria útil se não lhes aproveitasse. Logo, os sufrágios dos vivos aproveitam aos mortos.

2. Demais. ─ Agostinho diz: Não é pequena a autoridade da Igreja, que se manifesta no costume de ter o seu lugar também o sufrágio pelos mortos, entre as preces que o sacerdote eleva a Deus nos seus altares. Costume esse que nasceu com os Apóstolos, conforme o ensina Damasceno quando diz: Instruídos nos divinos mistérios, os discípulos do Salvador e os apóstolos sancionaram o uso de fazer, no meio do tremendo sacrifício, a comemoração dos fiéis adormecidos no Senhor. O mesmo se lê em Dionísio, quando relembra o rito da primitiva Igreja, de orar pelos mortos, e onde diz que os sufrágios dos vivos aproveitam aos mortos. O que, pois, devemos crer sem nenhuma dúvida.

SOLUÇÃO. ─ A caridade, vínculo que une os membros da Igreja, abrange não só os vivos, mas também os que morrem no amor. Ora, a caridade, que é a vida da alma, como a alma é a vida do corpo, não acaba; conforme aquilo do Apóstolo: A caridade nunca jamais há de acabar. Semelhantemente, também os mortos vivem na memória dos vivos; tanto a intenção destes pode tê-los como objeto. Por onde, os sufrágios dos vivos por duas razões aproveitam aos mortos, como aos próprios vivos: pela união da caridade e pela intenção a eles aplicada. Não devemos porém crer, que os sufrágios dos vivos lhes aproveitem por poder fazê-las passar do estado de miséria para o de felicidade ou inversamente. Mas contribuem para lhes diminuir a pena ou situações tais, que não lhes altere o estado.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Nesta vida merecemos que os sufrágios dos fiéis nos aproveitem, na outra. Por onde, o que na vida futura nos aproveitará será o que tivermos feito quando a nossa alma estava unida ao corpo. ─ Ou devemos responder, com João Damasceno, no sermão referido, que o lugar citado deve entender-se da retribuição a ser dada no juízo final, que será a da eterna glória ou da eterna miséria, quando cada qual receberá só o que pelas obras desta vida mereceu. Mas, até lá, poderá a alma ser socorrida pelos sufrágios dos vivos.

RESPOSTA À SEGUNDA. ─ A autoridade citada se refere expressamente à sequelas da eterna retribuição, como se vê das palavras anteriores.
─ Bem aventurados os mortos, etc. ─ Ou devemos responder que as obras pelos defuntos feitas também de certo modo lhes pertencem, como se disse.

RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Embora as almas depois da morte não mais sejam viandantes, contudo e de certo modo, ainda o são por ainda estarem privadas do galardão eterno. Por isso e absolutamente falando, o caminho lhes está fechado por todas as partes, a ponto de não mais poderem, seja por que obras forem, passar de um estado de miséria para o de felicidade; mas não está fechada a ponto de não poderem, na sua detenção, longe da retribuição final, ser socorridas pelas obras dos vivos, pois, a esta luz, são ainda viandantes.

RESPOSTA À QUARTA. ─ A comunicação nas obras civis, a que o Filósofo se refere, não pode existir entre mortos e vivos, porque os mortos estão fora da vida civil. Podem contudo comunicar com os vivos nas obras da vida espiritual, fundada no amor de Deus, que vivifica as almas dos mortos