Art. 1 ─ Se o intelecto humano pode chegar a ver a essência de Deus.

O primeiro discute-se assim. ─ Parece que o intelecto humano não pode chegar a ver a essência de Deus.

1. ─ Pois, diz o Evangelho: Ninguém jamais viu a Deus. E, segundo a exposição de Crisóstomo, nem as próprias essências celestes, i. é, os Querubins e os Serafins, não puderam nunca ver a Deus tal como é. Ora, aos homens não foi prometida senão a igualdade com os anjos: Serão como os anjos de Deus no céu, diz o Evangelho. Logo, nem os santos na pátria verão a essência de Deus.

2. Demais. ─ Dionísio assim argumenta: Não podemos ter conhecimento senão do que existe. Ora, tudo o que existe é finito, por pertencer a um gênero determinado. E assim, Deus. Sendo infinito, é superior a tudo quanto existe. Ora, não podemos conhecê-lo por estar acima do nosso conhecimento.

3. Demais. ─ Dionísio mostra que o modo perfeitissimo pelo qual o nosso intelecto pode unir-se com Deus é quando se lhe une como ao desconhecido. Ora, o que vemos em essência não nos é desconhecido. Logo, é impossível o nosso intelecto ver a Deus em essência.

4. Demais. ─ Dionísio diz: As trevas de que Deus se rodeia, a que chama luz superabundante, estão encobertas a qualquer luz e escondidas a todo conhecimento; e quem, vendo a Deus, compreendeu o que viu, não o viu a ele, propriamente, mas somente alguma cousa de Deus. Logo, nenhum intelecto criado poderá ver a essência de Deus.

5. Demais. ─ Como diz Dionísio, Deus é certamente invisível na sua existência por causa da superabundância da sua claridade. Ora, a sua claridade, assim como sobreexcede o intelecto do homem nesta vida, também o sobreexcederá na pátria. Logo, sendo invisível ao homem neste mundo, sê-lo-á também na pátria.

6. Demais. ─ Sendo o inteligível a perfeição do intelecto, há de haver uma proporção entre o inteligível e o intelecto, o visível e o visto. Ora, não é possível nenhuma proporção entre o nosso intelecto e a essência divina, distantes uma do outro ao infinito. Logo, o nosso intelecto não poderá atingir a essência divina.

7. Demais. ─ Mais dista Deus, do nosso intelecto que o inteligível criado, do sentido. Ora, os sentidos de nenhum modo podem chegar a ver uma criatura espiritual. Logo, nem o nosso intelecto pode chegar a ver a divina essência.

8. Demais. ─ Todo intelecto que em ato intelige um objeto há de necessariamente ser informado pela semelhança do objeto inteligido, princípio da operação intelectual nesse determinado caso, como o calor é o princípio da calefação. Se, portanto, o nosso intelecto inteligir a Deus, há de ser necessariamente por uma semelhança informadora do intelecto. Ora, tal não pode ser a essência divina em si mesma, porque a forma e o informado devem constituir um só ser; mas a essência difere do nosso intelecto, por si mesma e pela sua existência. Logo, a forma informadora do nosso intelecto, quando intelige a Deus, há de por força ser uma semelhança impressa por Deus em o nosso intelecto. Ora, essa semelhança, sendo algo de criado, não pode levar ao conhecimento de Deus senão como o efeito leva ao conhecimento da causa. Logo, é impossível ao nosso intelecto ver a Deus, senão apoiando-se num efeito dele. Ora, ver a Deus mediante os seus efeitos não é vê-lo por essência. Logo, o nosso intelecto não poderá ver a Deus em essência.

9. Demais. ─ A essência divina dista mais do nosso intelecto, que qualquer anjo ou inteligência separada. Ora, como diz Avicena, o ser que uma inteligência tem em nosso intelecto não é a essência mesma dessa inteligência, nele existente, porque então a ciência, que dessa inteligência tivéssemos, seria substancial e não acidental. Mas esse conhecimento consiste na impressão do ser dessa inteligência em nosso intelecto. Logo, Deus não está em nosso intelecto, para poder ser por este inteligido, senão enquanto uma impressão produzida no intelecto. Ora, essa impressão não no pode conduzir ao conhecimento da divina essência, porque distando desta ao infinito, degeneraria noutra espécie muito mais que se a espécie do branco degenerasse na do preto. Logo, como não dizemos que vê o branco aquele em cuja vista a espécie do branco degenerasse na do preto, por má disposição do órgão, assim também o nosso intelecto, que pela referida impressão é que inteligiria a Deus, não pode ver a essência divina.

10. Demais. ─ Nos seres separados da matéria o intelecto e o inteligido se identificam, diz Aristóteles. Ora, Deus é por excelência o ser separado da matéria. Logo, como um intelecto criado não pode chegar a se identificar com a essência incriada, não é possível o nosso intelecto ver a Deus em essência.

11. Demais. ─ Tudo o que vemos em essência nós o conhecemos na sua quididade. Ora, o nosso intelecto não pode saber o que é Deus, mas somente o que não é, como dizem Dionísio e Damasceno. Logo, o nosso intelecto não poderá ver a Deus em essência.

12. Demais. ─ Todo infinito, como tal, nos é desconhecido. Ora, Deus é omnimodamente infinito. Logo, é de nós absolutamente desconhecido. Portanto, não pode ser visto na sua essência por nenhum intelecto criado.

13. Demais. ─ Agostinho diz, que Deus é por natureza invisível. Ora, o que em Deus existe pela sua natureza mesma não é susceptível de mudança nenhuma. Logo, não pode Deus ser visto na sua essência.

14. Demais. ─ O que tem um modo de existir mas é visto de outro modo, não é visto tal como é. Ora, Deus existe de um modo e é visto pelos santos na pátria de outro. Pois, tem o seu modo próprio de existir, mas os santos na pátria o vêem ao modo deles. Logo, não será visto pelos santos tal como é. Portanto, não será visto em essência.

15. Demais. ─ O que é mediatamente visto não é em essência. Ora, Deus na pátria será visto mediante o lume da glória, conforme aquilo da Escritura: No teu lume veremos o lume. Logo, não será visto em essência.

16. Demais. ─ Deus na pátria será visto face a face, como diz o Apóstolo. Ora, um homem a quem vemos face a face por semelhança o vemos. Logo, Deus na pátria será visto por uma semelhança. Portanto, não por essência.

Mas, em contrário, o Apóstolo: Nós agora vemos a Deus como por um espelho, em enigmas; mas então face a face. Ora, o que vemos face a face por essência o vemos. Logo, Deus será visto em essência pelos santos, na pátria.

2. Demais. ─ A Escritura diz: Quando ele aparecer, seremos semelhantes a ele, porquanto nós outros o veremos bem como ele é. Logo, em essência o veremos.

3. Demais. ─ Aquilo do Apóstolo ─ Quando tiver entregado o reino a Deus e ao Padre, diz a Glosa: Onde, i. é, na pátria, a essência do Padre, do Filho e do Espírito Santo será vista; é a suma beatitude, só concedida aos puros de coração. Logo, os bem-aventurados verão a Deus por essência.

4. Demais. ─ O Evangelho diz: Aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei também e me manifestarei a ele. Ora, o que se manifesta é visto em essência. Logo, Deus será visto em essência na pátria, pelos bem-aventurados.

5. Demais. ─ Aquilo da Escritura ─ Nenhum homem me verá e depois viverá, Gregório refuta a opinião dos que diziam, que nesse país da felicidade Deus poderá ser visto no seu resplendor, mas não poderá ser contemplado na sua natureza mesma; pois, não difere o seu resplendor, da sua natureza. Ora, a sua natureza é a sua essência. Logo, Deus será em visto em essência.

6. Demais. ─ O desejo dos santos de nenhum modo pode ser frustrado. Ora, o desejo comum dos santos é ver a Deus em essência, conforme o diz a Escritura: Mostra-me a tua glória. E noutro lugar: Mostra-nos o teu rosto e seremos salvos. E o Evangelho: Mostra-nos o Pai e isso nos basta. Logo, os santos verão a Deus em essência.

SOLUÇÃO. ─ Assim como, de acordo com a fé, pomos como o fim último da vida humana a visão de Deus, assim os filósofos consideravam como a felicidade última do homem inteligir no seu ser mesmo as substâncias separadas da matéria. Por onde, nesta questão, a mesma dificuldade e a mesma diversidade se encontram entre os filósofos e entre os teólogos.

Assim, certos filósofos eram de opinião que o nosso intelecto possível nunca pode chegar à intelecção das substâncias separadas. Tal Alfarabío, no fim da sua Ética; embora tivesse ensinado o contrário no livro do intelecto, como o refere o Comentador. Semelhantemente, alguns teólogos ensinaram que o intelecto humano não pode chegar nunca a ver a essência de Deus. E tanto esses filósofos como esses teólogos os levou a pensarem assim a distância entre o nosso intelecto e a essência divina Ou as outras substâncias separadas. Pois, como o intelecto em ato de certo modo se identifica com o inteligível em ato, parece difícil, que de algum modo o intelecto criado venha a ser a essência incriada. Donde o dizer Crisóstomo: Como poderá uma criatura ver o incriado? E maior dificuldade encontram, nesta matéria, os que ensinam ser o intelecto possível sujeito à geração e à corrupção, como uma faculdade dependente do corpo, não só no exercício da visão divina, mas também no da visão de quaisquer substâncias separadas.

Mas esta doutrina é absolutamente insustentável. ─ Primeiro, porque repugna à autoridade da Escritura canônica, como diz Agostinho. ─ Segundo, porque, sendo inteligir a operação por excelência própria ao homem, há de ser ela o fundamento de se atribuir a cada um a sua beatitude; a qual se realizará quando essa operação se lhe exercer em toda sua plenitude. Ora, sendo a perfeição do ser que intelige em ato o objeto mesmo inteligido, se pela operação perfeitíssima do nosso intelecto não chegássemos a ver a essência divina, mas um outro ser, deveríamos necessariamente de concluir que esse outro, e não Deus, seria a causa da nossa beatitude. E, como a perfeição última de qualquer ser consiste na união com o seu princípio, resulta que outro ser, e não Deus, é o princípio criador do homem. O que, segundo pensamos, é absurdo. Como também caem no mesmo absurdo os filósofos que ensinam emanarem as nossas almas das substâncias separadas, de modo que finalmente possamos um dia inteligi-las. Por isso, devemos admitir, segundo pensamos, que o nosso intelecto chegará um dia a ver a essência divina; e, segundo os filósofos, que chegará a ver a essência das substâncias separadas.

Mas como será isso possível, é o que resta indagar.

Assim, certos, como Alfarábio e Avempace, afirmaram que pelo fato mesmo de o nosso intelecto inteligir quaisquer inteligíveis, chega a ver a essência das substâncias separadas. E para o demonstrarem recorrem a uma dupla demonstração. ─ A primeira é a seguinte. Assim como a natureza específica não se diversifica nos diversos indivíduos senão enquanto unida aos princípios individuantes, assim uma forma inteligida não se diversifica entre um sujeito e outro, senão enquanto unida a diversas formas imaginárias. Portanto,quando o intelecto separa a forma inteligida, das formas imaginárias, resta a quididade inteligida, que é uma mesma nos diversos sujeitos que inteligem. E tal é a quídidade da substância separada. Por onde, quando o nosso intelecto chega à abstração suma de uma quididade inteligível qualquer, intelige então a quidídade da substância separada que lhe é semelhante. ─ A segunda é a seguinte. Ao nosso intelecto é natural abstrair a quidídade de todos os inteligíveis, que a têem. Se, portanto, a quidídade abstraída, de um determinado ser que tem quididade, for uma quidídade, mas sem quidídade, inteligindo o intelecto intelige a quidídade da substância separada, disposta de tal maneira. Porque as substâncias separadas são quididades subsistentes, sem quididade; pois, como diz Avicena, a quididade de um ser simples é esse ser simples mesmo. Se, portanto, a quididade abstraída de um objeto particular sensível fôr uma quidídade com quidídade, o intelecto poderá então abstrair essa quídídade. Por onde, como não é possível proceder ao infinito, teremos que chegar a uma quididade sem quididade, pela qual o intelecto intelige a quidídade separada.

Mas estes argumentos não colhem. ─ Primeiro, porque a quididade da substância material, que o nosso intelecto abstrai, não é da mesma natureza que a quididade das substâncias separadas. Portanto, do fato de o nosso intelecto abstrair as quididades das cousas materiais e as conhecer, não se conclui que conheça a quididade das substâncias separadas; e muito menos a essência divina, de natureza absolutamente diversa de toda quidídade criada. ─ Segundo, porque, dado que fosse da mesma natureza, contudo, conhecida a quidídade de um ser composto, nem por isso se conheceria a da substância separada, senão mediante o gênero remotíssimo da substância. Ora, este conhecimento, sem se chegar às propriedades do ser, é imperfeito. Assim, quem só conhece o homem como animal, não o conhece senão enquanto existente em potência; e muito menos o conhecerá, se não lhe conhecer senão a natureza da substância.

Por onde, conhecer assim a Deus ou as outras substâncias separadas não é ver a essência divina nem a quididade das substâncias separadas; mas é conhecer mediante o efeito e quase num espelho.

Por isso, Avicena introduz um outro modo de conhecer as substâncias separadas e é o seguinte. As substâncias separadas são por nós conhecidas mediante as imagens (intentiones) das suas quididades, que são umas semelhanças destas, não delas abstraídas, pois são imateriais, mas por elas impressas nas nossas almas.

Mas esta explicação também não da suficientemente conta da visão divina, de que ora tratamos. Pois, como sabemos, tudo o recebido por um recipiente o é ao modo deste. Por onde, a semelhança da essência divina impressa em o nosso intelecto o será ao modo deste. Ora, o modo de receber, do nosso intelecto, não tem capacidade para receber plenamente a semelhança divina. Ora, a falta de perfeita semelhança pode se dar de tantos modos quantos os de dissemelhança. Assim, primeiro, a semelhança é falha, quando a forma é participada na mesma essência específica que tem, mas não no seu mesmo modo de perfeição; assim, um objeto pouco branco se assemelha defeituosamente a outro, muito branco. Outro modo, ainda mais defeituoso, é quando a semelhança não reproduz a mesma essência genérica. Tal a semelhança entre dois objetos ─ um de cor cítrica ou amarelada, e outro de cor branca. Enfim, outro modo ainda mais deficiente é quando a semelhança não reproduz a mesma essência genérica, senão só analógica ou proporcionalmente; tal a semelhança entre a brancura e um homem fundada apenas no fato de ambos constituírem seres. Pois, para a nossa vista conhecer a brancura é preciso que os nossos olhos recebam a semelhança dela na sua natureza específica, embora não no seu mesmo modo de ser, pois, tem modos diferentes de existir a forma no sentido e no objeto exterior à alma; assim, se os olhos recebessem a forma de um limão não diríamos que viam a brancura. Assim também para o nosso intelecto inteligir uma quididade, é necessário que receba a semelhança dela na sua essência específica, embora talvez não sejam os mesmos o modo de existir da semelhança e o da quididade. Pois, a forma existente no intelecto ou no sentido não é princípio de conhecimento ao modo de existir que essa forma tem em nós e fora de nós, mas pela razão que lhe dá uma comunidade com o objeto externo. Por onde é claro que por nenhuma semelhança em si recebida pode um intelecto criado inteligir a Deus a ponto de lhe ver imediatamente a essência. Por isso também certos, apesar de afirmarem que a essência divina só pode ser vista desse modo referido, disseram contudo que não é a essência em si mesma que é vista, mas um quase fulgor ou raio dela. Portanto, esse modo de explicar a visão de Deus não satisfaz ao que, no caso vertente, entendemos por tal visão.

Devemos, pois, recorrer a outra explicação, também dada por outros filósofos, como Alexandre de Afrodísias e Averroes, e é a seguinte. Todo conhecimento supõe necessariamente uma forma pela qual conhecemos ou vemos o objeto. Ora, a forma pela qual o intelecto recebe a perfeição de ver as substâncias separadas, não é a quididade que o nosso intelecto abstrai dos seres compostos, como ensina a, primeira opinião; nem nenhuma impressão recebida da substância separada pelo nosso intelecto, como pretende a segunda; mas é a própria substância separada, que se une ao intelecto como forma, de modo que essa substância separada é a um tempo o que inteligimos e o meio por que inteligimos. E seja o que for das outras substâncias separadas, contudo é este modo referido de conhecer o que devemos admitir para explicar a visão da essência divina; do contrário, qualquer outra forma que nos informasse o intelecto, não no poderia levar à visão da essência divina.

O que não se deve entender como se a essência divina fosse a verdadeira forma do nosso intelecto; ou que a essência divina e o nosso intelecto se identificassem, absolutamente falando, como, na ordem da natureza, à forma e a matéria se unem. Mas que a essência divina é proporcionada ao nosso intelecto como a forma o é à matéria. Pois, sempre que dois, seres, dos quais um é mais perfeito que outro, são recebidos por um terceiro, a proporção desses dois seres entre si, do mais perfeito para o menos perfeito, é como a proporção entre a forma e a matéria. Assim, a luz e a cor recebidas por um corpo diáfano, a luz está para a cor, como a forma para a matéria. Do mesmo modo, quando a alma recebe a luz intelectiva e a própria essência divina, que vem habitar em nós, embora não as receba a ambas do mesmo modo, a essência divina estará para o intelecto ─ como a forma para a matéria.

E que isso basta para o nosso intelecto poder, mediante a divina essência, ver a essa mesma essência, podemos prová-lo do modo seguinte. Assim como uma forma natural, que dá a existência a um ser, e a matéria, constituem absolutamente falando, um mesmo ser, assim a forma, pela qual o intelecto intelige, e o próprio intelecto constituem uma identidade, no ato de intelecção. Ora, na ordem natural, um ser por si subsistente não pode ser forma de matéria nenhuma, se esse ser tiver a matéria como uma das suas partes; porque não pode a matéria ser forma de nenhum ser. Mas se esse ser por si subsistente for só forma, nada lhe impede ser forma de uma determinada matéria e tornar-se o princípio de existência do ser composto; tal o caso da alma. Ora, no intelecto é mister considerar o intelecto potencial, como a matéria; e a espécie inteligível como a forma; e sendo o ato mesmo de inteligir como o composto da matéria e forma. Por onde, se há um ser por si subsistente, nada contende além da sua própria inteligibilidade, um tal ser pode ser a forma mediante a qual o intelecto intelige. Ora, um tal ser é inteligível pelo que tem de atual e não pelo que tivesse de potencial, como o ensina Aristóteles; e a prova é que é necessário abstrair a forma inteligível, da matéria e de todas as propriedades da matéria. Logo, sendo a divina essência um ato puro, pode ser a forma pela qual o intelecto intelige. E tal será a visão beatífica. Por isso diz o Mestre, que a união da alma e do corpo é um exemplo da beatifica união pela qual o espírito se une a Deus.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ A autoridade citada é susceptível de tríplice explicação, como o expõe Agostinho. ─ Num sentido, exclui a visão corpórea pela qual ninguém vê nem verá jamais a Deus em essência. ─ Noutro, excluem-se da visão intelectual da essência de Deus os que ainda vivem neste mundo. ─ Enfim noutro, exclui-se a visão compreensiva, do intelecto criado. E é neste sentido que entende o texto Crisóstomo. Por isso acrescenta: No lugar em questão o Evangelista entende por conhecimento uma certíssima contemplação e uma compreensão tão perfeita como a tem o Padre e o Filho. Tal é o sentido do Evangelista. Por isso acrescenta: O unigênito, que está no seio do Pai, esse é quem o deu a conhecer, querendo assim mostrar, pela compreensão do Filho, que é Filho de Deus.

RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Assim como Deus, pela sua essência infinita, excede todos os seres de existência limitada, assim o seu conhecimento, pelo qual conhece, supera todo e qualquer conhecimento. Por onde, a mesma proporção existente entre o nosso conhecimento e a nossa essência criada é a que existe entre o conhecimento divino e a essência infinita. Ora, para o conhecimento concorrem dois elementos, a saber, o sujeito conhecente e o meio pelo qual conhece. Ora, a visão pela qual veremos a Deus por essência é a mesma pela qual Deus se vê, no concernente ao princípio dessa visão; porque, assim como ele se vê pela sua essência, assim também nós o veremos a ele. Mas há diversidade quanto ao sujeito conhecente entre o intelecto divino e o nosso. Pois, no conhecimento, o objeto conhecido depende da forma pela qual conhecemos; assim, pela forma de uma pedra é que a vemos. Mas a eficácia de um conhecimento depende da virtude do sujeito conhecente; assim quem tem vista mais aguda vê melhor. Por onde, na visão do céu veremos o mesmo que Deus vê, i. é, a sua essência, mas não com a mesma eficácia.

RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Dionísio se refere, no lugar citado, ao conhecimento que temos de Deus nesta vida, mediante alguma forma criada, que nos informa o intelecto para o elevar à visão divina. Mas, como diz Agostinho, Deus transcende a qualquer forma do nosso intelecto; porque seja qual for a forma concebida por ele, essa não no pode alçar ao conhecimento da essência de Deus. Por isso Deus não pode ser atingido pela nossa inteligência. Mas, já neste mundo nós o conhecemos perfeitissimamente, sabendo que transcende tudo o que o nosso intelecto possa conceber; e assim a ele nos unimos como ao quase desconhecido. Mas na pátria nós o veremos pela forma da sua essência; e lhe estaremos unidos como o estamos ao que conhecemos.

RESPOSTA À QUARTA. ─ A luz é Deus, como diz o Evangelho. Ora, o lume é a impressão da luz num objeto iluminado. E como a essência divina tem uma modalidade de ser diferente que a de qualquer semelhança dela impressa em o nosso intelecto, por isso diz que as trevas divinas estão encobertas a qualquer luz, porque a essência divina, a que chama trevas por causa da sua superabundante luz, permanece indemonstrável pela só impressão recebida em o nosso intelecto. E assim fica essa essência inacessível a todo conhecimento por onde tudo o que conceba na inteligência quem quer que veja a Deus, nada disso é Deus, mas algum dos efeitos divinos.

RESPOSTA À QUINTA. ─ O lume divino, embora excede qualquer forma de que seja nesta vida susceptível o nosso intelecto, não excede contudo a própria essência divina, que será na pátria a quase forma do nosso intelecto. Por onde, presentemente nos seja invisível, então nos há de ser visível.

RESPOSTA À SEXTA. ─ Embora não haja nenhuma proporção entre o finito e o infinito, porque o excesso do infinito sobre o finito não é determinado, pode contudo haver entre ambos a relação de semelhança de proporções; pois, assim como um finito é adequado a outro, assim o infinito ao infinito. Mas para podermos conhecer totalmente um objeto, há umas vezes necessidade de proporção entre este e o sujeito; pois, é forçoso a faculdade do sujeito conhecente adequar-se à cognoscibilidade do objeto conhecido. Ora, essa igualdade é uma proporção. Pode porém se dar que a cognoscibilidade do objeto conhecido exceda a virtude intelectiva do sujeito conhecente; assim, quando conhecemos a Deus, ou inversamente, como quando ele conhece as criaturas. E então não pode haver proporção entre o sujeito conhecente e o objeto conhecido, mas apenas uma proporcionalidade; de modo que como está o sujeito para a sua virtude cognoscitiva, assim esteja o objeto conhecido para a sua cognoscibilidade. E essa proporcionalidade basta para o infinito ser conhecido pelo finito ou inversamente. ─ Ou podemos responder que a proporção, na sua acepção primária, significa a relação entre duas quantidades fundada num certo excesso, ou igualdade; mas depois passou a significar qualquer relação entre uma cousa e outra. Neste sentido, dizemos que a matéria deve ser proporcionada à forma; e nada impede então dizermos que o nosso intelecto, embora finito, é proporcionado à visão da essência infinita; mas não a compreendê-la, por causa da imensidade dessa essência.

RESPOSTA À SÉTIMA. ─ Há duas espécies de semelhança e de dissemelhança. ─ Uma fundada na conveniência natural. E então mais difere Deus de um intelecto criado que um inteligível criado, dos nossos sentidos. ─ Outra, fundada na proporcionalidade. E então, dá-se o inverso do primeiro caso; pois os nossos sentidos não são proporcionados a conhecer o imaterial, como o intelecto é proporcionado a conhecer qualquer objeto imaterial. E esta semelhança é necessária para o ato do conhecimento, mas não a primeira; pois, como sabemos, o intelecto, que intelige uma pedra não tem a mesma semelhança do ser natural dela. Assim também a vista pode perceber a cor amarelada do mel e do fel, embora não perceba a doçura do mel; porque há maior conveniência, quanto à visibilidade, entre o amarelado do fel e o do mel, do que entre o mel e a sua doçura.

RESPOSTA À OITAVA. ─ Na visão pela qual havemos de ver a essência de Deus, será a própria essência a como forma pela qual o intelecto inteligira. Nem é necessário, que a essência divina e o nosso intelecto se identifiquem, absolutamente falando; mas apenas que constituam uma unidade relativamente ao ato de inteligir.

RESPOSTA À NONA. ─ No sentido exposto não admitimos a doutrina de Avicena; pois, também os outros filósofos a repelem. Salvo se quisermos dizer que Avicena se refere ao conhecimento das substâncias separadas, enquanto conhecidas pelos hábitos das ciências especulativas e pelas semelhanças dos outros seres. E isso o diz para mostrar que a ciência não é em nós uma substância, mas um acidente. ─ E contudo a divina essência, embora mais difira, nas suas propriedades naturais, do nosso intelecto, que deste difere a substância do anjo, contudo é de natureza mais inteligível; pois, é ato puro, sem mesela de nenhuma potência, o que não se dá com as outras substâncias separadas. Nem o conhecimento, pelo qual veremos a Deus em essência, será, relativamente ao objeto visto, do gênero do acidente, senão só quanto ato mesmo da intelecção, que não será a substância mesma do sujeito inteligente nem a do objeto inteligido.

RESPOSTA À DÉCIMA. ─ A substância separada da matéria tanto pode inteligir-se a si mesma como os demais seres; e em ambos os sentidos pode verificar-se a autoridade citada. Pois, como a essência mesma da substância separada seja inteligível por si mesma e em ato, por estar separada da matéria, resulta que, quando se intelige a si mesma, o sujeito inteligente e o objeto inteligível absolutamente se identificam; porquanto ela não se intelige por nenhuma espécie intencional diversa de si, como se dá conosco quando inteligimos as causas materiais. E este é o modo de pensar do Filósofo, como está claro pelo que diz o Comentador, no lugar aduzido. Mas quando a inteligência separada intelige as outras causas, o intelecto em ato forma uma unidade com o objeto inteligido em ato, porque a forma do objeto inteligido torna-se a forma do intelecto enquanto atuallzado, e não por ser a essência mesma do intelecto, como o prova Avicena. Porque a essência do intelecto permanece a mesma sob as duas formas, pois, intelige dois objetos sucessivamente, do mesmo modo por que a matéria-prima permanece a mesma sob formas diversas. Por isso o Comentador também compara o intelecto possível, neste ponto, com a matéria-prima. Donde, pois de nenhum modo se segue que o nosso intelecto, vendo a Deus, se transforme na própria essência divina; mas que esta ela para ele como a perfeição e a forma.

RESPOSTA À UNDÉCIMA. ─ A autoridade citada e todas as semelhantes devem entender-se do conhecimento pelo qual conhecemos a Deus neste mundo, pela razão já aduzída.

RESPOSTA À DUODÉCIMA. ─ O infinito, privativamente considerado, nos é desconhecido, como tal; pois, não exprime então senão a ausência de qualquer complemento, pelo qual temos o conhecimento das causas. Por onde, o infinito se reduz à matéria sujeita à privação, como esta claro em Aristóteles. Mas o infinito, considerado negativamente, pela remoção da matéria que o determina; pois, a forma também é de certo modo determinada pela matéria. Por onde, o infinito neste sentido é o ser cognoscível por excelência. E deste modo é que Deus é infinito.

RESPOSTA À DÉCIMA TERCEIRA. ─ Agostinho se refere à visão corpórea pela qual nunca veremos a Deus. O que é claro pelo que disse antes: Do modo pelo qual vemos as chamadas causas sensíveis deste mundo, desse nunca ninguém verá a Deus nem poderá vê-la; pois, é por natureza invisível, como incorruptível. Ora, assim como por sua natureza é o ser soberano, assim é em si mesmo considerado o ser inteligível por excelência. E só por deficiência nossa é que não o inteligimos. Por onde, o fato de chegarmos a vê-la, sem que antes isso nos tivesse sido possível, não é por nenhuma mudança dele, senão nossa.

RESPOSTA À DÉCIMA QUARTA. ─ Deus na pátria será visto pelos santos tal como é, considerado o modo de ser do objeto visto; pois, os santos o verão na modalidade de existência que realmente é a sua. Mas se esse modo se refere ao sujeito conhecente então não será visto tal como é; pois, o intelecto criado não terá uma acuidade de visão igual à inteligibilidade da essência divina.

RESPOSTA À DÉCIMA QUINTA. ─ Há três espécies de meios que tornam possível a visão corporal e intelectual. ─ O primeiro é o sob o qual vemos. Este é o que torna a vista apta para ver, em geral, sem lhe determinar a visão a nenhum objeto especial. Tal é a luz material para a visão corpórea e o lume do intelecto agente para o intelecto possível. ─ O segundo é o meio pelo qual vemos. E esse é a forma visível, pela qual tanto a visão corpórea como a intelectual se determina a um objeto especial; assim pela forma de uma pedra nós a conhecemos. ─ O terceiro é o meio no qual vemos. Este é o pela vista do qual a visão atinge um determinado objeto. Assim, olhando para um espelho vemos o que ele reflete; e vendo uma imagem conhecemos o objeto a que ela pertence. Assim também o intelecto, pelo conhecimento da causa é levado ao do efeito e inversamente. ─ Ora, na visão da pátria não haverá o terceiro meio: não conheceremos a Deus mediante espécies dos outros seres, como agora o conhecemos, razão pela qual dizemos que agora vemos num espelho. Nem haverá o segundo meio, porque será pela própria essência divina que o nosso intelecto verá a Deus. Mas só haverá o primeiro, que elevará o nosso intelecto de modo a poder unir-se à substância incriada da maneira por que dissemos. Ora, nem por supor esse meio se poderá dizer que o nosso conhecimento é mediato; porque não é um meio existente entre o sujeito conhecente e o objeto conhecido, mas é o que dá ao sujeito a virtude cognoscitiva.

RESPOSTA À DÉCIMA SEXTA. ─ Não podemos dizer das criaturas corpóreas que são vistas imediatamente, senão quando ao que há nelas que possa unir-se à vista, a esta se une. Ora, não podem unir-se à vista pela sua essência mesma, em razão da sua materialidade. Por isso, então são vistas imediatamente, quando a semelhança delas se une à vista. Ora, Deus pode, pela sua essência, unir-se ao intelecto. Por onde, não seria visto imediatamente, sem a sua essência unir-se ao nosso intelecto. E essa visão imediata se chama ─ visão face a face. Além disso, a semelhança de uma cousa corpórea é recebida pela vista com a mesma essência que tem no objeto, embora não segundo o mesmo modo de existir; por isso tal semelhança conduz diretamente ao conhecimento da cousa. Ora, nenhuma semelhança pode desse modo conduzir-nos o intelecto à visão de Deus, como do sobredito se colhe. Não há, portanto, símil.