Art. 3 ─ Se também Cristo terá dotes.

O terceiro discute-se assim. ─ Parece que também Cristo terá dotes.

1. ─ Pois, os santos se conformarão com Cristo pela glória; donde o dizer o Apóstolo ─ O qual reformará o nosso corpo abatido para o fazer conforme ao seu corpo glorioso. Logo, também Cristo terá dotes.

2. Demais. ─ No matrimônio espiritual dão-se dotes à semelhança do matrimônio corporal. Ora, em Cristo há de certo modo matrimônio espiritual que lhe é próprio ─ a das duas naturezas na unidade de pessoa; por isso se diz que nele a natureza humana foi desposada pelo Verbo, conforme o diz o Glosa aquilo da Escritura ─ No sol pôs o seu tabernáculo, etc. ─ E o Apocalipse: Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens. Logo, também Cristo deve ter dotes.

3. Demais. ─ Como diz Agostinho, Cristo, segundo a regra de Ticónio, por causa da unidade do corpo místico entre o corpo e os membros, também se denomina esposa e não só esposo, conforme aquilo da Escritura: Como o esposo aformoseado com a sua coroa e como a esposa ornada dos seus colares. Logo, como os dotes são devidos à esposa, como se sabe, também devemos atribuir dotes a Cristo.

4. Demais. ─ Todos os membros da Igreja devem ter dotes, porque a Igreja é a esposa. Ora, Cristo é membro da Igreja, segundo aquilo do Apóstolo: Vós outros sois corpo de Cristo e membros uns dos outros. E a Glosa: i. é, de Cristo. Logo, também Cristo deve ter dotes.

5. Demais. ─ Cristo goza da visão, da fruição e da deleitação perfeitos. Ora, são três dotes. Logo, etc.

Mas, em contrário. ─ Entre esposo e esposa há necessariamente distinção de pessoas. Ora, em Cristo nada é pessoalmente distinto do Filho de Deus, que é esposo, conforme aquilo do Evangelho: O que tem a esposa é o esposo. Logo, como os dotes são constituídos para a esposa, ou em favor dela, parece que Cristo não deve ter dotes.

2. Demais. ─ Não pode a mesma pessoa dar e receber dotes. Ora, Cristo é quem confere os dotes espirituais. Logo, não deve ter dotes.

SOLUÇÃO. ─ Nesta matéria duas são as opiniões.

Uns dizem que há em Cristo tríplice união: a consentânea, pela qual está unido a Deus pela união de amor; a dignativa, pela qual a natureza humana está unida à divina; e a terceira, pela qual Cristo está unido à Igreja. E assim, ensinam que pelas duas primeiras uniões Cristo deve ter dotes, no sentido próprio destes: mas pela, terceira união, embora Cristo possua em grau eminente o que constitui o dote, este não lhe cabe contudo no seu sentido próprio, porque, nessa união, Cristo é o como esposa da Igreja, a esposa: ora, o dote é dado à esposa para que tenha a propriedade e o domínio dele, embora seja constituído para o uso do esposo. ─ Mas esta opinião não é aceitável. Pois, essa união pela qual Cristo mesmo como Deus está unido ao Pai pelo consentimento do amor, não se pode considerar como matrimônio, porque não há aí nenhuma sujeição como a que deve haver entre esposa e esposo. Nem também pela união da natureza humana com a divina, que é uma união pessoal; nem pela conformidade da vontade, pode haver dote no seu sentido próprio, por três razões. ─ Primeiro, porque o matrimônio, em que se constituem dotes, exige a conformidade de natureza entre esposo e esposa; e isto não se dá na união da natureza humana com a divina. Segundo, porque é necessária a distinção de pessoas; e a natureza humana não é pessoalmente distinta do Verbo. Terceiro, porque o dote é dado na ocasião em que a esposa é levada para a casa do esposo; e assim vem a pertencer à esposa que, solteira antes, está doravante unida ao marido; ora a natureza humana assumida pelo Verbo na unidade de pessoa, nunca deixou de estar perfeitamente unida com ele.

Por isso, segundo outros, ou se deve dizer que o dote, como tal, de nenhum modo se pode atribuir a Cristo; Ou não lhe deve atribuir no mesmo sentido em que o é aos santos. Mas os chamados dotes eles os têm em grau excelentíssimo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ A referida conformação deve entender-se considerado o dote no seu sentido próprio, e não no sentido em que convém a Cristo. Pois aquilo por que nos conformamos com Cristo não é forçoso exista do mesmo modo em Cristo e em nós.

RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Não é em sentido literal que a natureza humana é chamada esposa, na união com que está unida ao Verbo; pois não há nessa união a distinção de pessoas necessariamente existente entre esposo e esposa. Mas quando às vezes se diz que a natureza humana foi desposada pelo Verbo por se lhe ter este unido, isso só é porque, à semelhança do que se dá com a esposa, está com o Verbo inseparavelmente unida. E porque nessa união a natureza humana é inferior ao Verbo, e é por ele governada como o é a esposa pelo esposo.

RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Quando às vezes se diz que Cristo é esposa, não significa isso que o seja no seu sentido próprio; mas enquanto para si assume a pessoa da Igreja, sua esposa, que lhe está espiritualmente unida. E assim, nada impede que, de conformidade com esse modo de falar, possamos dizer que Cristo tem dotes; não pelos ter ele, mas sim a Igreja.

RESPOSTA À QUARTA. ─ A palavra Igreja, é susceptível de dupla acepção. ─ Assim, às vezes designa somente o corpo unido a Cristo como cabeça. E então só a Igreja compete ser a esposa: e Cristo não é membro dela, mas a cabeça influente em todos os seus membros. ─ Noutra acepção, a Igreja designa a cabeça e os membros que lhe estão unidos. E assim dizemos que Cristo é membro da Igreja, enquanto tem uma função distinta de todos os outros membros e que é lhes influir a vida. Embora não possa ser chamado membro muito propriamente, porque membro implica a idéia de parte, e em Cristo bem espiritual não é parcial, mas totalmente íntegro. Por onde, é ele o bem total da Igreja; nem os outros membros juntos com ele são algo de maior que ele isoladamente. Ora, considerando assim a Igreja, ela não só designa a esposa, mas o esposo e a esposa enquanto deles resulta uma unida pela conjunção espiritual. Por onde, embora Cristo seja de certo modo considerado membro da Igreja, de maneira nenhuma podemos porém dizê-lo membro da esposa. Não lhe convém, pois, nesse sentido ter dote, na acepção própria deste.

RESPOSTA À QUINTA. ─ Nessa sequência há o sofisma de acidente. Pois, essa enumeração não se aplica a Cristo senão enquanto constitui dotes, no sentido próprio deste.