Art. 2 ─ Se a alma das crianças não batizadas sofrerá uma pena espiritual.

O segundo discute-se assim. ─ Parece que a alma das crianças não batizadas sofrerá uma pena espiritual.

1. ─ Pois, como diz Crisóstomo, para os danados será mais grave a pena de serem privados da visão de Deus que a de serem queimados pelo fogo do inferno. Ora, as crianças ficarão privadas da visão divina. Logo, sofrerão com isso uma pena espiritual.

2. Demais. ─ Ficarmos privados do que queremos ter não pode ser sem algum sofrimento. Ora, as crianças quererão gozar da visão de Deus, do contrário teriam uma vontade atualmente perversa, Logo, não gozando dela, hão de sofrer.

3. Demais. ─ Se se disser que nada sofrerão por saberem que dela não foram privados por culpa própria, objeta-se em contrário. ─ A imunidade da culpa, longe de diminuir, aumenta a dor da pena; pois, não é por ser deserdado ou mutilado sem culpa, que alguém sofrerá menos. Logo, não será por serem privadas sem culpa de um tão grande bem, que as crianças ficarão isentas de dor.

4. Demais. ─ Assim como as crianças batizadas estão para os méritos de Cristo, assim os não-batizados para o demérito de Adão. Ora, as crianças batizadas alcançam, pelo mérito de Cristo, o prêmio da vida eterna. Logo, também as não batizadas sofrem dor por serem privadas da vida eterna, pelo demérito de Adão.

5. Demais. ─ Não é possível separarmo-nos do bem amado sem sofrermos dor. Ora, as crianças terão um conhecimento natural de Deus e, pela mesma razão, o amarão naturalmente. Logo, ficando perpetuamente separados dele, parece que não poderão sem dor sofrer essa separação.

Mas, em contrário. ─ Se as crianças não-batizadas sofrerem interiormente depois da morte, sê-lo-á por culpa ou por pena. ─ Se da culpa, como dessa não poderão mais purificar-se, essa dor lhes será uma causa de desesperação. Ora, essa dor nos condenados é o verme da consciência. Logo, as crianças sofrerão a pena do verme de consciência. E assim, a pena delas não será a mais fraca de todas, como diz o Mestre. ─ Se porém sofressem uma pena, como essa pena lhes teria sido justamente imposta por Deus, a vontade delas se oporia à justiça divina. E então teria uma deformidade atual. O que é inadmissível. Logo, não sentirão nenhuma dor.

2. Demais. ─ A razão reta não sofre que nos perturbemos pelo que não podemos evitar; e assim, como o demonstra Séneca, o sábio não é susceptível de nenhuma turbação. Ora, nas crianças a razão reta não sofreu nenhum desvio pelo pecado atual. Logo, nenhuma perturbação sofrerão por padecerem uma pena que não puderam evitar.

SOLUÇÃO. ─ Nesta matéria há três opiniões.

Uns dizem que as referidas crianças não padecerão nenhuma dor, porque de forma lhes estará obscurecida a razão, que não saberão o bem que perderam. ─ Mas não é provável, que a alma, livre do liame do corpo, não conheça aquilo que a razão tem o poder de investigar e ainda muito mais.

Por isso outros dizem, que tem um conhecimento perfeito de tudo o que a razão natural pode investigar, conhecem a Deus, sabem estarem privados da contemplação divina, e por isso de certo modo sofrem. Esse sofrimento porém lhes ficará mitigado, por não terem voluntariamente incorrido na culpa pela qual foram condenadas, ─ Mas esta opinião também não parece provável. Porque a dor não pode ser pequena, causada pela perda de um tão grande bem e sem esperança de recuperá-lo. A pena delas não poderá pois ser brandíssima. ─ Além disso, absolutamente pela mesma razão pela qual não serão punidas pelo agente externo da dor sensível, não sentirão também a dor interna. Porque a dor da pena corresponde ao prazer da culpa. Portanto, não sendo a culpa original acompanhada de nenhum prazer, dela ficará excluída toda dor penal.

Por isso outros opinam que terão conhecimento perfeito de tudo o que pode ser alcançado pela razão natural, saberão que estão privados da vida eterna, conhecerão a causa dessa privação, mas isso tudo não lhes causará nenhuma espécie de sofrimento. Vejamos, porém, como isso é possível.

Devemos saber, que ninguém, de razão reta, se afligirá por ficar privado do que lhe excede a capacidade, senão só se o for daquilo a que tem direito. Assim, nenhum homem sensato sofrerá por não poder voar como a ave; nem por não ser rei ou imperador, se a isso não tem direito. Sofreria porém ficando privado do que de certo modo lhe corresponde à capacidade. Ora, afirmo que todo homem dotado de livre arbítrio é capaz de alcançar a vida eterna; pois pode preparar-se para a graça, que o fará merecer. Portanto, perdendo-a, sofrerá a máxima das dores, por ter perdido um bem que poderia ter alcançado. Ora, as crianças não foram nunca de porte a poderem chegar à vida eterna. Pois, esta, excedente à toda capacidade natural, não lhes é devida em virtude do princípio da natureza; nem podem praticar qualquer ato capaz de as fazer alcançar tão grande bem. Por onde, nenhum sofrimento padecerão, por ficarem privadas da visão divina; ao contrário, terão grande gozo por participarem largamente da bondade divina e das suas perfeições naturais.

Nem se pode dizer que fossem proporcionadas à consecução da vida eterna, se não por atos próprios, ao menos mediante atos de outros, que as teriam podido batizar. Assim, muitas crianças nas mesmas condições foram batizadas e ganharam a vida eterna. Pois tal explicação não colhe, porque só por uma graça mui especial poderíamos ser premiados por atos que não praticamos. Por onde, a privação dessa graça não causa às crianças mortas sem batismo maior pena que as que houvesse de sofrer um homem sensato por não ter recebido as mesmas graças conferidas aos seus semelhantes.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Os condenados por uma culpa atual, tendo tido o uso do livre arbítrio, tinham também a capacidade de alcançar a vida eterna; mas tal não se dá com as crianças, como dissemos. Logo, não há símil em ambos os casos.

RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Embora a vontade possa querer tanto o possível como o impossível, conforme o ensina Aristóteles, contudo uma vontade ordenada e completa não pode querer senão aquilo do que o sujeito é de certo modo ordenado. E quem não puder satisfazer à sua vontade nessas condições, com isso sofrerá; mas não sofrerá não conseguindo o que não lhe era possível obter. E a isto se chamaria antes veleidade que vontade; pois, tal objeto ninguém o quereria absolutamente falando, mas só se fosse possível.

RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Todos temos a possibilidade de conseguir um patrimônio e de conservar a integridade do nosso corpo. Nada há pois de admirar se sofrermos, perdendo-os, por culpa quer nossa, quer alheia. Por onde é claro que a objeção, fundada em tal símile, não colhe.

RESPOSTA À QUARTA. ─ O dom de Cristo excede ao pecado de Adão, como diz o Apóstolo. Por isso, não é forçoso haja entre uma criança não-batizada, e o mal que sofre, a mesma correlação existente entre a batizada e o bem que frui.

RESPOSTA À QUINTA. ─ Embora as crianças não-batizadas fiquem privadas da união com Deus pela glória, contudo dele não ficam totalmente separadas. Ao contrário, com ele ficam unidas pela participação dos bens naturais. E assim de Deus poderão gozar pelo conhecimento e amor naturais.