TODO PODER EMANA DO POVO

Postado em 05-08-2021

E sereis como os deuses!
Por Márcio Freyesleben 13/09/2020 – 15:09 hs

A democracia não é o oposto da ditadura: é a causa dela, dizia  Bernanos, com toda razão. A democracia traz em sua gênese o princípio fundador do autoritarismo estatal.

A certidão de nascimento da democracia moderna é a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789,  que proclamou a vontade popular como  fundamento de legitimidade da democracia. A vontade soberana do povo  é a fonte de todas as leis, da Constituição inclusive: “todo poder emana do povo”.

Deveras, quando um poder retira o seu fundamento de legitimidade de uma fonte tão dúctil e fluida — a   vontade popular — será apenas uma questão de tempo para que a democracia se transforme em seu oposto, a ditadura.

Até o advento da Revolução Francesa, a lei era  a expressão de uma realidade superior ao homem: Deus. Mesmo antes do cristianismo, a lei era a expressão de uma razão superior à vontade humana, como quando Antígonas advertiu Creonte  sobre a existência de leis  eternas.  A existência de uma ordem regular e divina sempre foi reconhecida mesmo entre os pagãos, e estava na base da democracia ateniense (a democracia clássica).

A Revolução Francesa entronizou a vontade geral  como fonte de legitimidade do poder  estatal. Na expressão de  Jean Madiran, foi um dia terrível na história do mundo, pois naquele momento os homens  declinaram no plural o pecado original: “sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal” (Gn 3, 5). É a “revolta essencial pela qual o homem quer estabelecer para si mesmo a lei moral, pondo de lado a que recebeu de Deus. Em 1789, essa apostasia tornou-se coletiva. Ela se tornou o fundamento do direito político. A democracia moderna é a democracia clássica em estado de pecado mortal”.¹

Ao contrário do que imagina o homem vulgar, a sujeição à vontade geral, sem o respeito a uma ordem transcendente, conduz ao comunismo: “o totalitarismo comunista não é uma anomalia no universo democrático, mas a sua conclusão lógica; a conclusão necessária; a conclusão inevitável…”² A democracia moderna traz consigo o germe do totalitarismo, porque  “ela só se limita por uma declaração de direitos ditos ‘imprescritíveis’, mas proclamados por uma autoridade que pode perfeitamente mudá-los, decretar outros ou aboli-los. Ela já os mudou muitas vezes, bem como já decretou novos direitos ‘imprescritíveis’. Ela já os suspendeu ou os aboliu. Não são mais direitos. Não existe, na democracia moderna, nenhum direito que possa ser democraticamente garantido e mantido contra a vontade geral”.³

Convenhamos, “a democracia não é como um pão, que cresce sem perder a homogeneidade: à medida que ela se expande, sua natureza vai mudando até converter-se no seu contrário.”4

A democracia moderna é devota  das  constituições, seu ídolo oco. As constituições, que nasceram para limitar o arbítrio do rei, agora submetem o homem  ao poder ilimitado da vontade geral,  que  pode alterá-las  a seu bel-prazer. E “quando os homens decidem que não há mais nada de superior à soberania popular [….], eles fazem bem mais do que mudar a constituição política: eles fazem uma revolução moral e religiosa, e não uma revolução qualquer, mas ‘a’ revolução, a única, a da criatura que recusa, desde Adão, sua condição de dependência”5

A democracia moderna é religiosa. É a seita do homem que coletivamente toma o lugar de Deus. E por não reconhecer nenhum limite superior, ela se expande indefinidamente para  regrar todos os aspectos da vida. Nada é infenso à intromissão do poder da massa. Por isso não deveria causar  espécie o fato de que ditaduras comunistas se autoproclamem democráticas.

A democracia clássica respeitava a autoridade das instituições naturais. A democracia iluminista é prepotente.  “A autoridade do pai de família, do professor na sua classe, do patrão na sua firma, do bispo na sua diocese são heterogêneas à luz do princípio democrático moderno, e contrárias à Declaração dos Direitos de 1789. Essas autoridades, que são liberdades, não podem ser mantidas senão limitando-se a expansão do princípio democrático. O que faz a democracia liberal não é tanto limitar, mas meramente frear essa expansão, enquanto gaba-se de salvaguardar o que seria democraticamente normal destruir. Essas autoridades, essas liberdades, fundadas na ordem natural anterior à democracia, a democracia liberal as abala aos poucos, ela as dissolve lentamente, as diminui sem cessar. A diferença é de grau, não de natureza, com a democracia marxista, que as suprime ou as subjuga”.6

Sim,  o comunismo é democrático. As democracias modernas podem nascer liberais, mas terminam  comunistas, porque o Liberalismo e o Comunismo são filhos do mesmo Iluminismo materialista e anticristão:  são as duas pontas da língua bifurcada da serpente.

Marcio Luís Chila Freyesleben

Marceneiro Livre

[1] In As Duas Democracias,  Revista Permanência, nº 296

[2] Madiran, op. cit.

[3] Idem.

[4] Olavo de Carvalho, De Bobbio a Bernanos, Jornal da Tarde, 7 de janeiro de 1999.

[5] Madiran, op. cit.

[6] Idem.