Tradição, vida e morte

Postado em 27-12-2012

Sabe-se que a chamada filosofia vitalista do princípio do século XX (Bergson e Blondel), apresentando-se como uma reação a erros filosóficos então predominantes, exerceu uma notável influência sobre o pensamento católico. Contra uma concepção mecanicista e racionalista própria do positivismo e do neo-kantismo que pretendia esquematizar toda a realidade, a filosofia da vida insurgiu-se fazendo ver como era superficial semelhante pensamento que se atinha apenas ao elemento exterior, ao espaço, à extensão, e, por isso mesmo, incapaz de compreender o mundo em toda sua riqueza de vida e dinamismo. O vitalismo apresentava-se como um pensamento espiritualista que valorizava a vida interior do homem, salvaguardava sua liberdade e afirmava a sua consciência capaz de inovação criadora. As belas reflexões de Bergson sobre o mistério do tempo marcaram profundamente a grande obra literária do século passado “À la recherche du temps perdu” de Marcel Proust (Cf. Edmund Wilson, O castelo de Axel, Cultrix, São Paulo).
Contudo, a filosofia vitalista tinha um grave erro: ao mesmo tempo que valorizava a vida não a explicava e tampouco esclarecia o seu verdadeiro sentido. Interpretava o ser como impulso vital e dizia que a vida não pode ser captada pela inteligência mas por uma suposta intuição. E o pior é que tal intuição é um conceito tão obscuro quanto a intuição da fenomenologia. A filosofia vitalista, pode-se dizer, limitava-se a dizer que a vida flui, que nela nada se perde, mas, ao contrário, nela agregam-se novas aquisições. De maneira que a inteligência só aprisiona a realidade em esquemas uniformes, fixos, mas não a conhece. Só os conceitos “fluidos” que acompanham o rio da vida são capazes de conhecê-la. Esses conceitos fluidos seriam as intuições. (Cf. Hirschberger, Historia de la filosofia, Barcelona, 1956)
Pois bem, a falta de precisão do conceito de vida ( que não pode ser objeto do entendimento, ressalte-se) induziu os principais representantes do vitalismo a graves equívocos. Por exemplo, Bergson chegou a conceber Deus como um ser em devir. Blondel, por sua vez, em sua filosofia da ação, entende a ação como a vida do espírito em sua fonte e na totalidade do seu desenvolvimento. Diz que não há no mundo nenhum momento de pausa, porque nada no mundo é perfeito. O espírito nunca se adequa a uma realidade, mas sempre aspira a algo superior. Por conseguinte, cai por terra a noção de verdade elaborada pela metafísica tomista: adaequatio intellectus et rei.
Na primeira parte da Suma Teológica, Santo Tomás formula algumas questões importantes sobre a vida de Deus. As soluções do Santo Doutor refutam cabalmente os erros da filosofia vitalista. No artigo 1º da q. 18 pergunta se todas as coisas naturais vivem ou não vivem e assinala as diferenças entre os seres vivos e brutos. As razões aduzidas por Santo Tomás são muito úteis porque em nossos dias os modernistas gostam de relacionar os conceitos de vida e de tradição. O papa João Paulo II, no motu proprio Ecclesia Dei Adflicta, disse que o suposto gesto cismático de Mons. Marcel Lefèbvre (as consagrações episcopais sem mandato pontifício mas em virtude do estado de necessidade) se devia a uma incompleta noção de tradição que não leva em conta o caráter “vivo” da tradição.
É claro que João Paulo II aplicava à tradição a noção de vida em sentido analógico. Não entendia a tradição como aninal ou vegetal, mas como um conjunto de verdades ou como um tesouro que se enriquece e cresce com o passar das gerações sob a custódia da Igreja. De qualquer modo, cumpre examinar, à luz da doutrina de Santo Tomás, como se dá o processo vital.
No referido artigo diz que a vida se manifesta quando o animal tem movimento ex se, mas, ao contrário, quando o animal já não tem movimento ex se, mas é movido por outro, então se diz que o animal está morto. Em seguida, no artigo 2º, pergunta se a vida é ação – essa questão é importantíssima para compreender e refutar o erro do modernista Maurice Blondel – e responde, com base em Aristóteles, dizendo que o viver é o ser dos vivos. E afirmando o valor do conhecimento intelectivo do homem que alcança a essência da coisa como seu objeto próprio a partir dos sentidos que apreendem as aparências exteriores, Santo Tomás explica que geralmente, a partir das aparências exteriores, se impõem às coisas nomes que expressam sua essência. Mas às vezes os nomes derivam das propriedades em função das quais se impõem. Assim, por exemplo, o nome corpo é imposto para designar um gênero de substâncias em que se encontram três dimensões. Quanto à vida, diz Santo Tomás, o nome é tomado das aparências exteriores em vista da própria coisa que se move a si mesma; entretanto, o nome não é imposto para significar o movimento e sim a substância à qual convém em sua natureza mover-se a si própria ou agir de algum modo. Portanto, ser vivo não é predicado acidental, mas substancial. Esclarece que com menos propriedade se toma o vacábulo vida a partir das operações vitais. E cita Aristóteles, para o qual a vida é principalmente intelligere.
Ora, a filosofia vitalista é uma filosofia que rebaixa a inteligência, despreza a razão, a qual considera uma força destruidora. De modo que é lícito realmente questionar se a tal filosofia convém o nome de filosofia da vida, uma vez que a vida é sobretudo intelligere. Que vida do espírito é a ação do sr. Blondel? Uma ação que é mais frustração do que plenitude, porquanto a realidade das coisas sempre lhe escapa.
Finalmente, quanto à relação estabelecida pelos modernistas entre os conceitos de tradição e vida, importa dizer que, à luz da sã teologia de Santo Tomás, resulta muito dificultoso para os sequazes da nova teologia provar que efetivamente os desdobramentos, acréscimos e “enriquecimentos” doutrinários verificados na Igreja sobretudo a partir do Vaticano II derivam de um processo vital de uma Igreja que se move a si mesma alicerçada em seus próprios fundamentos.Examinadas as raízes ideológicas de tais inovações pos-conciliares, percebe-se que se trata de um movimento de origem estranha à Igreja. Com efeito, a reforma litúrgica, o ecumenismo, a liberdade religiosa, a abertura ao mundo moderno são inovações que se impuseram de fora à Igreja. Isto é próprio de ser um morto. Na hipótese, porém, de se tratar de um processo vital, a imagem mais adequada para explicá-lo seria a do “mata-pau”.

Pe. João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa
Anápolis, 27 de dezembro de 2012
Festa de São João Evangelista