Tradução: A “tese Ocariz” contraditada também pela “tese Ratzinger”

Postado em 26-02-2012

O artigo abaixo, publicado em 11.02.12 pelo Diácono Daniel Pinheiro, IBP, no blog Disputationes Theologicae, é apresentado em tradução feita por Monfort.

Cardeal Ratzinger : “[A Instrução Donum Veritatisafirma – talvez pela primeira vez de maneira tão clara – que existem decisões do magistério que podem não constituir a última palavra sobre uma matéria enquanto tal, mas um encorajamento substancial em relação ao problema, e sobretudo uma expressão de prudência pastoral, uma espécie de disposição provisória. Sua substância permanece válida, mas os detalhes sobre os quais as circunstancias dos tempos exerceram uma influência podem ter necessidade de retificações ulteriores. Sob esse aspecto, pode-se pensar tanto nas declarações dos Papas do século passado sobre a liberdade religiosa, quanto nas decisões antimodernistas do começo deste século” (L’Osservatore Romano. Edição semanal em língua francesa, 10 de julho de 1990, p.9) [1].

Monsenhor Ocáriz: “O Concílio Vaticano II não definiu dogma algum, no sentido que não propôs mediante ato definitivo qualquer doutrina. Contudo o facto de que um ato do Magistério da Igreja não seja exercido mediante o carisma da infalibilidade não significa que ele poderá ser considerado «falível» no sentido que transmite uma «doutrina provisória» ou «opiniões influentes». Toda expressão de Magistério autêntico deve ser acolhida como é verdadeiramente: um ensinamento dado por Pastores que, na sucessão apostólica, falam com o «carisma da verdade» (Dei Verbum, n. 8), «revestidos da autoridade de Cristo» (Lumen gentium, n. 25), «à luz do Espírito Santo» (ibid.). (Osservatore Romano, 2 de dezembro de 2011, p.6)

O Cardeal Ratzinger afirma claramente que existe um Magistério que é provisório e dá um exemplo. Esse Magistério, segundo o Cardeal, não é a última palavra sobre uma matéria, ou seja, não se trata evidentemente de um Magistério infalível, mas de um Magistério puramente autêntico, que poderia ser falível sob certos aspectos e sujeito a retificações. Esse Magistério poderia ser a expressão de prudência pastoral, uma contribuição em relação ao problema. Ora, a prudência é provisória. As decisões prudenciais podem e, às vezes, devem mudar conforme as circunstâncias. Elas inclinam em direção a uma posição sem, no entanto, proibir ou condenar outra posição. Trata-se, portanto, de um Magistério exercido em um dado momento, para as circunstâncias desse momento, podendo portanto mudar se as circunstancias mudam. O Cardeal não afirma que todo Magistério não infalível é explicitamente provisório, mas que existe também um Magistério desse tipo. Classicamente, chama-se essa espécie de Magistério provisório aquele que afirma que tal doutrina é tuta vel non tuta. Esse Magistério não quer liquidar a questão, mas indica que tal doutrina, no contexto contemporâneo a esse ato do Magistério, pode ser ensinada sem perigo para a fé e a moral ou que, ao contrário, ela não pode ser ensinada sem colocar em risco a fé e a moral. Assim, por exemplo, uma tese filosófica pode ser condenada como non tuta, não porque o Magistério a considere falsa de uma maneira absoluta, mas porque nas circunstâncias dadas (considerando em particular o estado em que se encontram a teologia, a filosofia ou a ciência nesse dado momento) não se chega a conciliá-la facilmente com o Depósito Revelado e é, portanto, imprudente sustenta-la. Com o tempo, o Magistério pode condenar definitivamente essa teoria ou afirmar sua compatibilidade com a Revelação. Nesse quadro, poderia ser citada a condenação de Galileu, ao qual tinha sido pedido que não ensinasse de maneira peremptória o que, na época, era uma tese não comprovada. Em principio, portanto, um Magistério puramente autêntico e provisório pode existir, como afirma o Cardeal Ratzinger. Que seja o caso do Magistério contra a liberdade de consciência no século XIX e do Magistério contra o modernismo no começo do século XX, isso é, pelo menos, muito duvidoso [2].

Uma análise da afirmação de Monsenhor Ocáriz não é fácil, já que seu texto não é claro. Quer ele simplesmente dizer que o Magistério do Vaticano II não pertence a essa espécie de Magistério falível provisório? Magistério que existiria, aliás, mas não no último Concílio? Pode-se interpretar assim sua afirmação ambígua: “o facto de que um ato do Magistério da Igreja não seja exercido mediante o carisma da infalibilidade não significa que ele poderá ser considerado ‘falível’ no sentido que transmite uma ‘doutrina provisória’ ou ‘opiniões influentes’”? Deste modo, afirma ele que um ato do Magistério (puramente) autêntico não transmite necessariamente uma doutrina provisória, ainda que ele possa fazê-lo? Ou, no sentido contrário, quer ele dizer que nenhum ato do Magistério (puramente) autêntico pode ser provisório? Sua última frase parece indicar sobretudo isso, já que, para explicar a afirmação de que o Vaticano II não é provisório, ele acaba por englobar todo o Magistério autêntico: Toda expressão do Magistério autênticodeve ser acolhida como é verdadeiramente: um ensinamento dado por Pastores que, na sucessão apostólica, falam com o «carisma da verdade» (Dei Verbum, n. 8), «revestidos da autoridade de Cristo» (Lumen gentium, n. 25), «à luz do Espírito Santo» (ibid.).” Mons. Ocáriz parece mais portanto excluir a possibilidade de qualquer Magistério provisório, contrariando o Cardeal Ratzinger, a prática da Igreja e a doutrina comum dos teólogos.

É preciso aliás afirmar que um Magistério não infalível permanece sempre com um certo caráter provisório pois, de outra forma, se teria um Magistério sempre definitivo, imutável, irreformável, enfim, infalível. A distinção entre falível e infalível, dada pela própria Igreja, não teria nenhum sentido. Esse caráter provisório pode ser expresso, seja diretamente (ou explicitamente) pelo Magistério quando ele afirma que uma doutrina é tuta vel non tuta ou indiretamente (ou implicitamente) quando o Magistério afirma uma doutrina (ensinando sua verdade) ou a condena (ensinando sua falsidade), sem por isso liquidar definitivamente a questão. É preciso acrescentar que esse caráter provisório pode ter vários graus. E esse Magistério puramente autêntico, mesmo se ele não é diretamente ou explicitamente provisório, não é de jure infalível e permanece reformável. É um ensinamento que pode, portanto, conter erros, mesmo se isso permanece bastante raro, e ele não pode de modo algum, em consequência, exigir um assentimento absoluto pelo simples fato de que se trata de um ato magisterial da autoridade eclesiástica.

Diácono Daniel Pinheiro

[1] No texto original italiano, o termo traduzido por “encorajamento” é “ancoraggio”, o que significa antes “ancoragem”, cfr. Osservatore Romano 27 de junho de 1990, p.6. Notamos essa discordância entre os textos em circulação. Entretanto, o sentido do texto não é alterado.

[2] Esse magistério não é do Magistério Extraordinário Infalível, mas é, muito provavelmente, do Magistério Ordinário Pontifical Infalível, fundado sobre a própria Revelação. Esta posição tem, além disso, sólidas razões doutrinárias e teológicas em seu apoio. A respeito da liberdade religiosa, enviamos ao estudo de Dom Antônio de Castro Mayer.