Uma quaresma especial

Postado em 12-02-2013

Estava pensando em escrever algumas linhas sobre a doutrina de Santo Tomás sobre o jejum quando recebi a notícia surpreendente da declaração de renúncia do papa Bento XVI. Evito qualquer especulação a respeito mas confesso minha suspeita de que o Santo Padre tomou uma decisão tão grave porque se viu cerceado. Os acontecimentos das últimas semanas, sobretudo a controvertida declaração de mons. Paglia sobre a necessidade de encontrar um instrumento jurídico que resguardasse os direitos dos “casais” e “famílias” gays, aumentam a minha desconfiança de que houve um confronto, uma tensão, nos palácios apostólicos.

Apesar de descaracterizada há décadas, a quaresma continua a ser para os católicos um tempo litúrgico rico em graças e ensinamentos se for bem vivida. O caráter ascético da quaresma, pela prática do jejum, da esmola e outras obras de penitência, cedeu lugar a uma campanha ideológica de “conscientização” de sabor socialista, humanista, a pretexto de promoção da solidariedade e fraternidade entre os homens e as “religiões”.

De maneira que é muito conveniente recordar o essencial sobre a quaresma: uma preparação espiritual, por meio das obras de piedade referidas acima, para ressuscitar  na Páscoa de Cristo para uma vida nova. E como o jejum e a abstinência foram muito desvalorizados em nossos dias, vale a pena rever o que diz Santo Tomás a respeito.

Lendo a questão 147 da Secunda Secundae relativa ao jejum, uma coisa que logo chama a atenção, é como a disciplina do jejum foi mitigada. É impressionante o rigor dos velhos tempos! Uma refeição só por dia, abstinência total de carne, ovos e laticínios para reduzir a sensualidade : ut vertatur in materiam seminis, cuius multiplicatio est maximum incitamentum luxuriae (art. 8). De fato, a disciplina era tão rigorosa que o nosso Gilberto Freyre, em Casa-Grande e Senzala, não hesita em dizer que o jejum foi uma das causas da falta de vigor físico do brasileiro dos tempos coloniais.

No entanto, o mais importante é ter consciência clara do valor espiritual do jejum como um ato de virtude, conforme explicação do doutor angélico. É um ato virtuoso porque está ordenado a um bem honesto, por três razões:

1) Refreia a concupiscência da carne, pois pelo jejum conserva-se a castidade. E cita São Jerônimo: “Sem Ceres e Baco, Vênus fenece.

2) Eleva a mente à contemplação das coisas sublimes.

3) Satisfaz à justiça divina pelos nossos pecados. E cita, a propósito, Santo Agostinho: “O jejum purifica a alma, abranda os sentidos, sujeita a carne ao espírito, faz contrito e humilhado o coração, dissipa as brumas da concupiscência, extingue os ardores da libido, mas acende a luz da castidade.

É notável ainda a resposta à objeção de que muitas vezes o jejum não é agradável a Deus ( Is.58, 3) e, portanto, não seria um ato de virtude, pois a virtude é sempre agradável a Deus. Santo Tomás soluciona a objeção dizendo que um ato que de per si é virtuoso pode tornar-se vicioso por alguma circunstância alheia, conforme diz a Escritura Sagrada: “Nos dias do vosso jejum fazeis a vossa vontade.” Ao contrário, o verdadeiro jejum, o jejum agradável a Deus, no dizer de Santo Agostinho, citado pelo Angélico, não ama a verbosidade, julga supérfluas as riquezas, despreza a soberba, recomenda a humildade, auxilia o homem a reconhecer-se ínfimo e frágil.

Outro aspecto interessante da questão tratada por Santo Tomás consiste em saber se o jejum é um preceito. Na resposta o Santo Doutor desenvolve seu pensamento jurídico sobre a relação entre lei natural e lei positiva, explica a relação entre a esfera civil e a esfera eclesiástica: “Assim como compete aos príncipes seculares estabelecer os preceitos legais que concretizam  os princípios gerais do direito natural, com vista às coisas úteis ao bem comum temporal, assim também aos prelados compete estatuir aquelas coisas úteis ao bem espiritual dos fiéis. Ora, o jejum é útil para reprimir o pecado, elevar a mente às realidades espirituais. Assim, cada um, pela própria razão natural, está obrigado apenas a jejuar enquanto entende ser necessário para tal fim. Sob tal aspecto, o jejum é preceito da lei natural. A determinação, porém, do tempo e do modo do jejum segundo a conveniência e utilidade do povo cristão pertence ao direito positivo instituído pelo poder eclesiástico. Este jejum é eclesiástico, o outro, natural (q. 147, a. 3).

No artigo 2º da referida questão, Santo Tomás faz uma observação de grande atualidade. Diz que, embora o jejum consista proriamente na abstinência de alimentos, metaforicamente se pode falar de um jejum de todas as coisas nocivas, sobretudo as que são pecados. Ora, em nossos dias, quando vivemos mergulhados em uma cultura dos divertimentos, das baladas e entretenimentos eletrônicos, é conveniente o católico propor-se um jejum de internet, celular, msn etc.

Vale ainda acrescentar uma reflexão chistosa do Pe. Antonio Vieira: o jejum não acompanhado da esmola é mais poupança que penitência! Realmente, os  grandes santos sempre ensinaram que as duas asas da oração cristã são o jejum e  a esmola.

Este ano viveremos uma quaresma especial,em circunstâncias que exigem de nós um esforço redobrado. A renúncia do papa Bento XVI não deve ser vista apenas como uma decisão pessoal em virtude de sua debilidade que o impede de cumprir o seu ministério. Sua renúncia e sucessão devem ser ponderadas tendo em vista o seu pontificado, tão marcado pela má vontade, oposição e resistência de seus inimigos de dentro e de fora da Igreja. Como se sabe, o Santo Padre foi impiedosamente atacado quando declarou a legitimidade do rito romano tradicional, quando promoveu a justiça dentro da Igreja derrogando a excomunhão injusta dos bispos consagrados por Dom Lefèbvre (Ainda que na ocasião se dissesse que se tratava de um ato de misericórdia, foi, na verdade, ato de justiça, pois, como explica São João Crisóstomo, quase sempre todas as virtudes estão acompanhadas de algum defeito, exceto a caridade. No caso, a justiça, aos olhos de muitos no Vaticano, foi mesclada com o orgulho de não reconhecer que era justiça o que se fazia. Eu, particularmente, estou convencido de que o papa Bento XVI tem plena consciência de que a supressão canônica da Fraternidade São Pio X foi uma injustiça clamorosa cometida dentro da Igreja e queria repará-la apesar da divergência doutrinal entre o Vaticano e Ecône.  Como negar o reconhecimento canônico à Fraternidade São Pio X quando há bispos defendendo o casamento gay?). Por tudo isso, a sucessão do Santo Padre não será tão simples, embora confiemos na assistência do Espírito Santo.

Roguemos, pois a Nossa Senhora que nos ajude nesta quaresma a fazer penitência pelos nossos pecados. Supliquemos a misericórdia divina. Rezemos pelo Santo Padre a fim de que ele possa ter um bom sucessor.

O grande Joseph De Maistre dizia que cada povo tem o governo que merece. Numa paródia, poderíamos dizer que não merecemos um São Pio X, um São Pio V. Miserere nobis, Domine.

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

Anápolis, 12 de fevereiro de 2013

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