Arquivo de março de 2008

Mediator Dei – Sobre a autêntica liturgia romana

Postado por Admin.Capela em 21/mar/2008 - Sem Comentários

Papa Pio XII

 

CARTA ENCÍCLICA DO PAPA PIO XII

SOBRE A SAGRADA LITURGIA

 

 Aos veneráveis irmãos Patriarcas, Primazes,
Arcebispos, Bispos e aos outros Ordinários locais
em paz e comunhão com a Sé Apostólica

 

INTRODUÇÃO

1. “O mediador entre Deus e os homens”, (1) o grande pontífice que penetrou os céus, Jesus filho de Deus,(2) assumindo a obra de misericórdia com a qual enriqueceu o gênero humano de benefícios sobrenaturais, visou sem dúvida a restabelecer entre os homens e o Criador aquela ordem que o pecado tinha perturbado e a reconduzir ao Pai celeste, primeiro princípio e último fim, a mísera estirpe de Adão, infeccionada pelo pecado original. E por isso, durante a sua permanência na terra, não só anunciou o início da redenção e declarou inaugurado o reino de Deus, mas ainda cuidou de promover a salvação das almas pelo contínuo exercício da pregação e do sacrifício, até que, na cruz, se ofereceu a Deus qual vítima imaculada para “purificar a nossa consciência das obras mortas, para servir a Deus vivo”.(3) Assim, todos os homens, felizmente chamados do caminho que os arrastava à ruína e à perdição, foram ordenados de novo a Deus, a fim de que, com sua pessoal colaboração na obra da própria santificação, fruto do sangue imaculado do Cordeiro, dessem a Deus a glória que lhe é devida.

2. O Divino Redentor quis, ainda, que a vida sacerdotal por ele iniciada em seu corpo mortal com as suas preces e o seu sacrifício, não cessasse no correr dos séculos no seu corpo místico, que é a Igreja; e por isso instituiu um sacerdócio visível para oferecer em toda parte a oblação pura, (4) a fim de que todos os homens, do oriente ao ocidente, libertos do pecado, por dever de consciência servissem espontânea e voluntariamente a Deus.

3. A Igreja, pois, fiel ao mandato recebido do seu Fundador, continua o ofício sacerdotal de Jesus Cristo, sobretudo com a sagrada liturgia. E o faz em primeiro lugar no altar, onde o sacrifício da cruz é perpetuamente representado(5) e renovado, com a só diferença no modo de oferecer; em seguida, com os sacramentos, que são instrumentos particulares por meio dos quais os homens participam da vida sobrenatural; enfim, com o tributo cotidiano de louvores oferecido a Deus ótimo e máximo(6). “Que jubiloso espetáculo – diz o nosso predecessor de feliz memória Pio XI – oferece ao céu e à terra a Igreja que reza, enquanto continuamente dia e noite, se cantam na terra os salmos escritos por inspiração divina: nenhuma hora do dia transcorre sem a consagração de uma liturgia própria; cada etapa da vida tem seu lugar na ação de graças, nos louvores, preces e aspirações desta comum oração do corpo místico de Cristo, que é a Igreja.”(7)

4. Certamente conheceis, veneráveis irmãos, que, no fim do século passado e nos princípios do presente, houve singular fervor de estudos litúrgicos; já por louvável iniciativa de alguns particulares, já sobretudo pela zelosa e assídua diligência de vários mosteiros da ínclita ordem beneditina; assim que não somente em muitas regiões da Europa, mas ainda nas terras de além-mar, se desenvolveu a esse respeito uma louvável e útil emulação, cujas benéficas conseqüências foram visíveis, quer no campo das disciplinas sagradas, onde os ritos litúrgicos da Igreja oriental e ocidental foram mais ampla e profundamente estudados e conhecidos, quer na vida espiritual e íntima de muitos cristãos. As augustas cerimônias do sacrifício do altar foram mais conhecidas, compreendidas e estimadas; a participação aos sacramentos maior e mais freqüente; as orações litúrgicas mais suavemente saboreadas e o culto eucarístico tido, como verdadeiramente o é, por centro e fonte da verdadeira piedade cristã. Além disso, pôs-se em mais clara evidência o fato de que todos os fiéis constituem um só e compacto corpo de que é Cristo a cabeça, com o conseqüente dever para o povo cristão de participar, segundo a própria condição, dos ritos litúrgicos.

5. Sem dúvida, sabeis muito bem que esta Sé Apostólica sempre zelou para que o povo a ela confiado fosse educado num verdadeiro e ativo sentido litúrgico e que, com zelo não menor se tem preocupado em que os sagrados ritos brilhem até externamente por uma adequada dignidade. Nessa mesma ordem de idéias, falando, segundo o costume, aos pregadores quaresmais desta nossa excelsa cidade, em 1943, nós os havíamos calorosamente exortado a advertir os seus ouvintes que participassem, com maior empenho, do sacrifício eucarístico; e recentemente fizemos traduzir de novo em latim, do texto original, o livro dos Salmos para que as preces litúrgicas, de que são eles a parte maior na Igreja católica, fossem mais exatamente entendidas e a sua verdade e suavidade mais facilmente percebidas.(8)

6. Todavia, enquanto pelos salutares frutos que dele derivam, o apostolado litúrgico nos é de não pequeno conforto, o nosso dever nos impõe seguir com atenção esta “renovação” na maneira pela qual é concebida por alguns, e cuidar diligentemente para que as iniciativas não se tornem excessivas nem insuficientes.

7. Ora, se de uma parte verificamos com pesar que em algumas regiões o sentido, o conhecimento e o estudo da liturgia são às vezes escassos ou quase nulos; de outra, notamos, com muita apreensão, que há algumas pessoas muito ávidas de novidades e que se afastam do caminho da sã doutrina e da prudência. Na intenção e desejo de um renovamento litúrgico, esses inserem muitas vezes princípios que, em teoria ou na prática, comprometem esta santíssima causa, e freqüentemente até a contaminam de erros que atingem a fé católica e a doutrina ascética.

8. A pureza da fé e da moral deve ser a norma característica desta sagrada disciplina, que deve necessariamente conformar-se ao sapientíssimo ensinamento da Igreja. É, portanto, nosso dever louvar e aprovar tudo o que é bem feito, conter ou reprovar tudo o que se desvia do verdadeiro e justo caminho.

9. Não acreditem, pois, os inertes e os tíbios ter a nossa aprovação porque repreendemos os que erram e contemos os audazes; nem os imprudentes se tenham por louvados quando corrigimos os negligentes e os preguiçosos. Ainda que nesta nossa encíclica tratemos sobretudo da liturgia latina, não é que tenhamos em menor estima as venerandas liturgias da Igreja oriental, cujos ritos, transmitidos por nobres e antigos documentos, nos são igualmente caríssimos; mas visamos antes às condições particulares da Igreja ocidental, que são tais que reclamam a intervenção da nossa autoridade.

10. Ouçam, pois, os cristãos todos, com docilidade, a voz do Pai comum, o qual deseja ardentemente que todos, unidos a ele intimamente, se aproximem do altar de Deus, professando a mesma fé, obedecendo à mesma lei, participando do mesmo sacrifício com uma só inteligência e uma só vontade. O respeito devido a Deus o reclama; as necessidades dos tempos presentes o exigem. Após uma longa e cruel guerra que dividiu os povos com rivalidades e morticínios, os homens de boa vontade se esforçam do melhor modo possível, em reconduzir todos à concórdia. Acreditamos, todavia, que nenhum projeto e nenhuma iniciativa seja, neste caso, tão eficaz quanto um fervoroso espírito religioso e zelo ardente, do qual é necessário estejam animados e guiados todos os cristãos, a fim de que, aceitando de coração aberto as mesmas verdades e obedecendo docilmente aos legítimos pastores, no exercício do culto devido a Deus, constituam uma comunidade fraterna, porquanto, “ainda que muitos, somos um só corpo, participando todos do único pão.(9)

 

PRIMEIRA PARTE

NATUREZA, ORIGEM, PROGRESSO DA LITURGIA 


I. A liturgia é culto público

11. O dever fundamental do homem é certamente este de orientar a si mesmo e a própria vida para Deus. “A ele, com efeito, devemos principalmente unir-nos como indefectível princípio, ao qual deve ainda constantemente aplicar-se a nossa escolha como ao último fim, que perdemos pecando, mesmo por negligência, e que devemos reconquistar pela fé, crendo nele”.(10) Ora, o homem se volta ordinariamente para Deus quando lhe reconhece a suprema majestade e o supremo magistério, quando aceita com submissão as verdades divinamente reveladas, quando lhe observa religiosamente as leis, quando faz convergir para ele toda a sua atividade, quando – para dizer resumidamente – presta, mediante a virtude da religião, o devido culto ao único e verdadeiro Deus.

12. Esse é um dever que obriga antes de tudo os homens individualmente, mas é ainda um dever coletivo de toda a comunidade humana ordenada com recíprocos vínculos sociais, porque também ela depende da suma autoridade de Deus.

13. Note-se ainda que esse é um dever particular dos homens, porquanto Deus os elevou à ordem sobrenatural. Assim, se consideramos Deus como autor da antiga Lei, vemo-lo proclamar preceitos rituais e determinar acuradamente as normas que o povo deve observar ao render-lhe o legítimo culto. Estabeleceu, para isso, vários sacrifícios e designou várias cerimônias com que deviam realizar-se e determinou claramente o que se referia à arca da aliança, ao templo e aos dias festivos; designou a tribo sacerdotal e o sumo sacerdote, indicou e descreveu as vestes para uso dos sagrados ministros e tudo o mais que tinha relação com o culto divino.(11)

14. Esse culto, aliás, não era mais do que a sombra(12) daquele que o sumo sacerdote do Novo Testamento havia de render ao Pai celeste.

15. De fato, apenas “o Verbo se fez carne”,(13) manifesta-se ao mundo no seu ofício sacerdotal, fazendo ao Pai Eterno um ato de submissão que durará por todo o tempo de sua vida: “entrando no mundo, diz… eis que venho… para fazer, ó Deus, a tua vontade…”,(14) um ato que será consumado de modo admirável no sacrifício cruento da cruz: “Pelo poder desta vontade fomos santificados por meio da oblação do corpo de Jesus Cristo feita uma só vez para sempre”.(15) Toda a sua atividade entre os homens não tem outro escopo. Menino, é apresentando no templo ao Senhor; adolescente, ali volta ainda; em seguida ali vai freqüentemente para instruir o povo e para rezar. Antes de iniciar o ministério público jejua durante quarenta dias, e com seu conselho e o seu exemplo exorta todos a rezarem de dia e de noite. Como mestre de verdade, “ilumina todo homem”(16) para que os mortais reconheçam convenientemente o Deus imortal, e não “se afastem para sua perdição, mas guardem a fé para salvar a sua alma”.(17) Como Pastor, depois, ele governa o seu rebanho, conduzindo-o às pastagens da vida, e dá uma lei a observar, para que ninguém se afaste dele e da reta via que traçou, mas todos vivam santamente sob o seu influxo e a sua ação. Na última ceia, com rito e aparato solene, celebra a nova páscoa e provê a sua continuação mediante a divina instituição da eucaristia; no dia seguinte, elevado entre o céu e a terra, oferece o sacrifício salutar de sua vida; de seu peito rasgado faz, de certo modo, jorrar os sacramentos que distribuem às almas os tesouros da redenção. Fazendo isso, tem por único fim a glória do Pai e a crescente santificação do homem.

16. Entrando, depois, na sede da beatitude celeste, quer que o culto por ele instituído e prestado durante a sua vida terrena continue ininterrupto. Já que não deixou órfão o gênero humano, mas o assiste sempre com o seu contínuo e valioso patrocínio, fazendo-se nosso advogado no céu junto do Pai,(18) assim o ajuda mediante a sua Igreja, na qual está indefectivelmente presente no correr dos séculos, Igreja que constituiu coluna da verdade(19) e dispensadora de graça, e que, com o sacrifício da cruz, fundou, consagrou e conformou eternamente.(20)

17. A Igreja, portanto, tem em comum com o Verbo encarnado o escopo, o empenho e a função de ensinar a todos a verdade, reger e governar os homens, oferecer a Deus o sacrifício, aceitável e grato, e assim restabelecer entre o Criador e as criaturas aquela união e harmonia que o apóstolo das gentes claramente indica por estas palavras: “Não sois mais hóspedes ou adventícios, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus, educados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, com o próprio Jesus Cristo por pedra angular, sobre a qual todo o edifício bem ordenado se levanta para ser um templo santo no Senhor, e sobre ele vós sois também juntamente edificados em morada de Deus, pelo Espírito”.(21) Por isso a sociedade fundada pelo divino Redentor não tem outro fim, seja com a sua doutrina e o seu governo, seja com o sacrifício e os sacramentos por ele instituídos, seja enfim com o ministério que lhe contou, com as suas orações e o seu sangue, senão crescer e dilatar-se sempre mais – o que se dá quando Cristo é edificado e dilatado nas almas dos mortais, e quando, vice-versa, as almas dos mortais são educadas e dilatadas em Cristo; de maneira que, neste exílio terreno prospere o templo no qual a divina majestade recebe o culto grato e legítimo. Em toda ação litúrgica, junto com a Igreja está presente o seu divino Fundador: Cristo está presente no augusto sacrifício do altar, quer na pessoa do seu ministro, quer por excelência, sob as espécies eucarísticas; está presente nos sacramentos com a virtude que neles transfunde, para que sejam instrumentos eficazes de santidade; está presente, enfim, nos louvores e súplicas dirigidas a Deus, como vem escrito: “Onde estão duas ou três pessoas reunidas em meu nome aí estou no meio delas”.(22) A sagrada liturgia é, portanto, o culto público que o nosso Redentor rende ao Pai como cabeça da Igreja, e é o culto que a sociedade dos fiéis rende à sua cabeça, e, por meio dela, ao Eterno Pai. É, em uma palavra, o culto integral do corpo místico de Jesus Cristo, ou seja, da cabeça e de seus membros.

18. A ação litúrgica inicia-se com a fundação da própria Igreja. Os primeiros cristãos, com efeito, “eram assíduos aos ensinamentos dos apóstolos, e à comum fração do pão e à oração”.(23) Em toda a parte onde os pastores possam reunir um núcleo de fiéis, erigem um altar sobre o qual oferecem o sacrifício, e em torno dele vêm dispostos outros ritos adaptados à santificação dos homens e à glorificação de Deus. Entre esse ritos estão, em primeiro lugar, os sacramentos, isto é, as sete principais fontes de salvação; depois, está a celebração do louvor divino, com o qual os féis reunidos obedecem à exortação do Apóstolo: “Instruindo-vos e exortando-vos uns aos outros com toda a sabedoria, cantando a Deus em vosso coração, inspirados pela graça, salmos, hinos e cânticos espirituais”;(24) depois, ainda, a leitura da Lei, dos Profetas, do Evangelho e das epístolas apostólicas; e, enfim, a prática com a qual o presidente da assembléia recorda e comenta utilmente os preceitos do divino Mestre, os acontecimentos principais de sua vida, e admoesta todos os presentes com exortações oportunas e exemplos.

19. O culto se organiza e se desenvolve segundo as circunstâncias e as necessidades dos cristãos, se enriquece de novos ritos, cerimônias e fórmulas, sempre com o mesmo intento: “a fim de que sejamos estimulados por aqueles sinais… conheçamos o progresso realizado e nos sintamos solicitados a desenvolvê-lo com maior vigor; o efeito, de fato, é mais digno, se mais ardente é o afeto que o precede”.(25) Assim a alma se eleva a Deus mais e melhor; assim o sacerdócio de Jesus Cristo está sempre em ato na sucessão dos tempos, não sendo a liturgia outra coisa que o exercício desse sacerdócio. Como a sua cabeça divina, assim a Igreja assiste continuamente os seus filhos, ajuda-os e exorta-os à santidade, para que, ornados com essa dignidade sobrenatural, possam um dia voltar ao Pai que está nos céus. Ela restaura para a vida celeste os nascidos à vida terrena, dá-lhes a ajuda do Espírito Santo na luta contra o inimigo implacável; chama os cristãos em torno dos altares e, com insistentes convites, exorta-os a celebrar e tomar parte no sacrifício eucarístico, e nutre-os com o pão dos anjos, para que sejam sempre mais firmes; purifica e consola aqueles que o pecado feriu e maculou; consagra com legítimo rito aqueles que, por vocação divina, são chamados ao ministério sacerdotal; revigora com graças e dons divinos o casto conúbio daqueles que são destinados a fundar e constituir a família cristã; depois de ter confortado e restaurado com o viático eucarístico e a sagrada unção as últimas horas da vida terrena, acompanha ao túmulo com suma piedade os despojos dos seus filhos, dispondo-os religiosamente, protegendo-os ao abrigo da cruz, para que possam um dia ressurgir triunfando da morte; abençoa com particular solenidade quantos dedicam a sua vida ao serviço divino na consecução da perfeição religiosa; estende a sua mão caridosa às almas que, nas chamas da purificação, imploram preces e sufrágios, para conduzi-las finalmente à eterna beatitude.


II. A liturgia é culto externo e interno

20. Todo o conjunto do culto que a Igreja rende a Deus deve ser interno e externo. É externo porque o exige a natureza do homem composto de corpo e alma; porque Deus dispõe que “pelo conhecimento das coisas visíveis sejamos atraídos ao amor das invisíveis”; (26) porque tudo o que vem da alma é naturalmente expresso pelos sentidos; e ainda porque o culto divino pertence não somente ao particular mas também à coletividade humana e conseqüentemente é necessário que seja social, o que é impossível, no âmbito religioso, sem vínculos e manifestações exteriores; e, enfim, porque é um meio que põe particularmente em evidência a unidade do corpo místico, acrescenta-lhe santos entusiasmos, consolida-lhe as forças, intensifica-lhe a ação: “se bem que, com efeito, as cerimônias, em si mesmas, não contenham nenhuma perfeição e santidade, são todavia atos externos de religião que, como sinais, estimulam a alma à veneração das coisas sagradas, elevam a mente à realidade sobrenatural, nutrem a piedade, fomentam a caridade, aumentam a fé, robustecem a devoção, instruem os simples, ornam o culto de Deus, conservam a religião e distinguem os verdadeiros dos falsos cristãos e dos heterodoxos.(27)

21. Mas o elemento essencial do culto deve ser o interno. É necessário, com efeito, viver sempre em Cristo, dedicar-se todo a ele, a fim de que nele, com ele e por ele, se dê glória ao Pai. A sagrada liturgia requer que estes dois elementos estejam intimamente ligados; o que ela não se cansa jamais de repetir toda vez que prescreve um ato externo de culto. Assim, por exemplo, a propósito do jejum, nos exorta: “a fim de que se opere de fato em nosso íntimo o que a nossa observância professa externamente”.(28) De outro modo, a religião se torna um formalismo sem fundamento e sem conteúdo. Sabeis, veneráveis irmãos, que o divino Mestre considera indignos do templo sagrado e expulsa dele os que crêem honrar a Deus somente com o som de bem construídas palavras e com atitudes teatrais e estão persuadidos de poder prover de modo adequado à sua salvação sem arrancar da alma os vícios inveterados”.(29) A Igreja, portanto, quer que todos os fiéis se prostrem aos pés do Redentor para professar-lhe o seu amor e a sua veneração; quer que as multidões, como as crianças que andaram ao encontro de Cristo quando entrava em Jerusalém com alegres aclamações, acompanhem o Rei dos reis e o sumo autor de todos os benefícios, aclamando-o com o canto de glória e de agradecimento; quer que haja orações em seus lábios, ora súplices, ora alegres e agradecidas, com as quais, como os apóstolos junto ao lago de Tiberíades, possam experimentar o auxílio de sua misericórdia e de seu poder; ou como Pedro, no monte Tabor, a Deus se abandonem e a todas as suas coisas nos místicos transportes da contemplação.

22. Não têm, pois, noção exata da sagrada liturgia aqueles que a consideram como parte somente externa e sensível do culto divino ou como cerimonial decorativo; nem se enganam menos aqueles que a consideram como mero conjunto de leis e preceitos com que a hierarquia eclesiástica ordena a realização dos ritos.

23. Deve, portanto, ser bem conhecido de todos que não se pode honrar dignamente a Deus, se a alma não cuida de conseguir a perfeição da vida, e que o culto rendido a Deus pela Igreja em união com a sua Cabeça divina tem a eficácia suprema de santificação.

24. Essa eficácia, se se trata do sacrifício eucarístico e dos sacramentos, provém antes de tudo do valor da ação em si mesma (ex opere operato); se se considera ainda a atividade própria da imaculada esposa de Jesus Cristo com a qual orna de orações e de sacras cerimônias o sacrifício eucarístico e os sacramentos, ou, se se trata dos sacramentais e de outros ritos instituídos pela hierarquia eclesiástica, então a eficácia deriva principalmente da ação da Igreja (ex opere operantis Ecclesiae), enquanto esta é santa e opera sempre em íntima união com a sua Cabeça.

25. A esse propósito, veneráveis irmãos, desejamos que volvais a vossa atenção às novas teorias sobre “piedade objetiva” segundo as quais, esforçando-se para pôr em evidência o mistério do corpo místico, a realidade efetiva da graça santificante e a ação divina dos sacramentos e do sacrifício eucarístico, se pretenderia descuidar ou diminuir a “piedade subjetiva” ou pessoal.

26. Nas celebrações litúrgicas e, em particular, no augusto sacrifício do altar, continua-se, sem dúvida, a obra da nossa redenção, cujos frutos nos são aplicados. Cristo realiza a nossa salvação cada dia nos sacramentos e no seu sacrifício e, por meio deles, purifica continuamente e consagra a Deus o gênero humano. Têm, portanto, uma virtude objetiva, com a qual, de fato, fazem nossas almas participantes da vida divina de Jesus Cristo. Eles, pois, têm não por nossa, mas por divina virtude, a eficácia de reunir a piedade dos membros com a piedade da Cabeça e torná-la, de certo modo, uma ação de toda a comunidade. Desses profundos argumentos alguns concluem que toda a piedade cristã deve concentrar-se no mistério do corpo místico de Cristo, sem nenhuma consideração pessoal e subjetiva, e por isso acreditam que se deva descaidar das outras práticas religiosas não estritamente litúrgicas e realizadas fora do culto público.

27. Todos, no entanto, podem verificar que essas conclusões acerca das duas espécies de piedade, ainda que os princípios acima expostos sejam ótimos, são completamente falsas, insidiosas e perniciosíssimas.

28. É verdade que os sacramentos e o sacrifício do altar têm uma intrínseca virtude enquanto são ações do próprio Cristo que comunica e difunde a graça da Cabeça divina nos membros do corpo místico; mas, para terem a devida eficácia, exigem as boas disposições da nossa alma; como, a propósito da eucaristia, são Paulo admoesta: “cada um examine a si mesmo e coma deste pão e beba do cálice”.(30) Por isso mesmo, a Igreja define com brevidade e clareza todos os exercícios com os quais a nossa alma se purifica, especialmente durante a quaresma: “fortalezas da milícia cristã”; (31) são, com efeito, as ações dos membros que, com o auxílio da graça, desejam aderir à sua Cabeça a fim de que “nos seja manifesta – para repetir as palavras de santo Agostinho – na nossa Cabeça a própria fonte da graça”.(32) Mas deve-se notar que estes membros são vivos, providos de razão e de vontade própria; por isso é necessário que eles, encostando os lábios à fonte, retirem e assimilem o alimento vital e removam tudo o que lhe pode impedir a eficácia. Devemos, pois, afirmar que a obra da redenção, independente em si mesma da nossa vontade, requer o esforço íntimo da nossa alma para que possamos conseguir a eterna salvação.

29. Se a piedade privada e interna dos particulares se descuidasse do augusto sacrifício do altar e dos sacramentos, e se subtraísse ao influxo salvador que emana da Cabeça nos membros, seria, sem dúvida, reprovável e estéril; mas quando todas as providências e os exercícios de piedade não estritamente litúrgicos fixam o olhar da alma sobre atos humanos unicamente para endereçá-los ao Pai que está nos céus; para estimular salutarmente os homens à penitência e ao temor de Deus e arrancá-los da atração do mundo e dos vícios, para conduzi-los felizmente por árduo caminho ao vértice da santidade, então, não apenas são sumamente louváveis, mas necessários, porque descobrem os perigos da vida espiritual, estimulam-nos à aquisição da virtude e aumentam o fervor com o qual nos devemos dedicar todos ao serviço de Jesus Cristo. A genuína piedade que o Angélico chama “devoção” e que é o ato principal da virtude da religião com o qual os homens se ordenam retamente, se orientam oportunamente para Deus e livremente se consagram ao culto,(33) têm necessidade da meditação das realidades sobrenaturais e das práticas espirituais para que se alimente, estimule e fortifique e nos anime à perfeição. É que a religião cristã devidamente praticada requer, sobretudo, que a vontade se consagre a Deus e influa sobre as outras faculdades da alma. Mas todo ato da vontade pressupõe o exercício da inteligência e, antes que se conceba o desejo e o propósito de dar-se a Deus por meio do sacrifício, é absolutamente necessário o conhecimento dos argumentos e dos motivos que levam à religião, como, por exemplo, o fim último do homem e a grandeza da divina Majestade, o dever de obediência ao Criador, os tesouros inexauríveis do amor com o qual ele nos quis enriquecer, a necessidade da graça para alcançar a meta assinalada, e o caminho particular que a divina Providência nos preparou unindo-nos todos, como membros de um corpo, a Jesus Cristo Cabeça. E já que nem sempre os motivos do amor dominam a alma agitada pelas paixões, é muito oportuno que nos impressione ainda a consideração salutar da divina justiça para levar-nos à humildade cristã, à penitência e à emenda.

30. Todas estas considerações não devem ser uma vazia e abstrata lembrança, mas devem visar efetivamente a submeter os nossos sentidos e as suas faculdades à razão iluminada pela fé, a purificar a alma que se une cada dia mais intimamente a Cristo e sempre mais a ele se conforma e dele recebe a inspiração e a força divina de que tem necessidade; e para que sejam aos homens estímulo sempre mais eficaz ao bem, à fidelidade ao próprio dever, à prática da religião, ao fervoroso exercício da virtude, é necessário ter presente este ensinamento: “Sois de Cristo e Cristo é de Deus”.(34) Tudo, pois, seja orgânico e teocêntrico se queremos que tudo seja em verdade endereçado à glória de Deus pela vida e pela virtude que nos vêm da nossa Cabeça divina: “tendo, pois, confiança de entrar no santo dos santos pelo sangue de Cristo, pelo novo e vivo caminho que ele inaugurou para nós através da sua carne, e tendo um grande sacerdote que preside à casa de Deus, aproximemo-nos com um coração sincero, com plenitude de fé, alma purificada da consciência de culpa, lavado o corpo com água limpa, apeguemo-nos firmes à profissão da nossa esperança… e sejamos solícitos uns para com os outros, para nos estimularmos à caridade e às boas obras”. (35)

31. Disso deriva o harmonioso equilíbrio dos membros do corpo místico de Jesus Cristo. Com o ensino da fé católica, com a exortação à observância dos preceitos cristãos, a Igreja prepara o caminho à sua ação propriamente sacerdotal e santificadora; dispõe-nos a uma contemplação mais íntima da vida do divino Redentor e nos conduz a uma consciência mais profunda dos mistérios da fé para que recebamos o alimento sobrenatural e a força para seguro progresso na vida perfeita por meio de Jesus Cristo. Não somente pelas obras de seus ministros mas ainda pelas obras dos fiéis particulares imbuídos do espírito de Jesus Cristo, a Igreja se esforça em fazer penetrar esse mesmo espírito na vida e na atividade privada, familiar, social, e até econômica e política dos homens, para que todos os que são chamados filhos de Deus possam mais facilmente conseguir o seu próprio fim.

32. Dessa maneira a ação particular e o esforço ascético dirigido à purificação da alma estimulam as energias dos fiéis e os preparam a participar com melhores disposições do augusto sacrifício do altar e a receber os sacramentos com maior fruto, e a celebrar os sagrados ritos, de modo a torná-los mais animados e formados para a oração e para a abnegação cristã para cooperar ativamente nas inspirações e nos convites da graça, para imitar cada dia mais a virtude do Redentor, não somente para vantagem própria mas ainda para a vantagem de todo o corpo da Igreja, no qual todo o bem que se cumpre provém da virtude da Cabeça e redunda em benefício dos membros.

33. Por isso na vida espiritual nenhuma oposição ou repugnância pode haver entre a ação divina que infunde a graça nas almas para continuar a nossa redenção e a operosa colaboração do homem que não deve tornar vão o dom de Deus; (36) entre a eficácia do rito externo dos sacramentos que provém do seu intrínseco valor (ex opere operato), e o mérito de quem os administra ou recebe (opus operantis); entre as orações privadas e as preces públicas; entre a ética e a contemplação; entre a vida ascética e a piedade litúrgica; entre o poder de jurisdição e de legítimo magistério e o poder eminentemente sacerdotal que se exercita no próprio sagrado ministério.

34. Por graves motivos a Igreja prescreve aos ministros do altar e aos religiosos, precisamente porque são destinados de modo particular a realizar as funções litúrgicas do sacrifício e do louvor divino, que, nos tempos estabelecidos, atendam à meditação piedosa, ao exame diligente e à emenda da consciência e aos outros exercícios espirituais.(37) Sem dúvida, a prece litúrgica, sendo pública oração da ínclita esposa de Jesus Cristo, tem maior dignidade do que a das orações privadas; mas esta superioridade não quer dizer que entre estes dois gêneros de oração haja contraste ou oposição. Ambas as duas se fundem e se harmonizam porque animadas de um único espírito: “tudo e em todos, Cristo” (38) e tendem ao mesmo fim: até que Cristo seja formado em nós.(39)


III. A liturgia é regulada pela hierarquia eclesiástica

35. Para melhor compreender, ainda, a sagrada liturgia é necessário considerar outro seu caráter importante.

A Igreja é uma sociedade; exige, por isso, uma autoridade e hierarquia próprias. Se todos os membros do corpo místico participam dos mesmos bens e tendem aos mesmos uns, nem todos gozam do mesmo poder e são habilitados a cumprir as mesmas ações. O divino Redentor estabeleceu, com efeito, o seu reino sob fundamentos da ordem sagrada, que é reflexo da hierarquia celeste. (36). Somente aos apóstolos e àqueles que, depois deles, receberam dos seus sucessores a imposição das mãos, é conferido o poder sacerdotal em virtude do qual, como representam diante do povo que lhes foi confiado a pessoa de Jesus Cristo, assim representam o povo diante de Deus. Esse sacerdócio não vem transmitido nem por herança, nem por descendência carnal, nem resulta da emanação da comunidade cristã ou de delegação popular. Antes de representar o povo, perante Deus, o sacerdote representa o divino Redentor, e porque Jesus Cristo é a cabeça daquele corpo do qual os cristãos são membros, ele representa Deus junto do povo. O poder que lhe foi conferido não tem, pois, nada de humano em sua natureza; é sobrenatural e vem de Deus: “assim como o Pai me enviou, assim eu vos envio:..’ ;(40) “quem vos ouve, a mim ouve…”; (41) “percorrendo todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura; quem crer e for batizado, será salvo”.(42)
37. Por isso o sacerdócio externo e visível de Jesus Cristo se transmite na Igreja não de modo universal, genérico e indeterminado, mas é conferido a indivíduos eleitos, com a geração espiritual da ordem, um dos sete sacramentos, o qual não somente confere uma graça particular, própria deste estado e deste ofício, mas ainda um caráter indelével que configura os ministros sagrados a Jesus Cristo sacerdote, demonstrando-os capazes de cumprir aqueles atos legítimos de religião com os quais os homens são santificados e Deus é glorificado, segundo as exigências da economia sobrenatural.
38. Com efeito, como o lavacro do batismo distingue os cristãos e os separa dos outros que não foram lavados na água purificadora e não são membros de Cristo, assim o sacramento da ordem distingue os sacerdotes de todos os outros cristãos não consagrados, porque somente eles, por vocação sobrenatural, foram introduzidos no augusto ministério que os destina aos sagrados altares e os constituem instrumentos divinos por meio dos quais se participa da vida sobrenatural com o corpo místico de Jesus Cristo. Além disso, como já dissemos, somente estes são marcados com caráter indelével que os configura ao sacerdócio de Cristo e somente as suas mãos são consagradas “para que seja abençoado tudo o que abençoam e tudo o que consagram seja consagrado e santificado em nome de nosso Senhor Jesus Cristo”.(43) Aos sacerdotes, pois, deve recorrer quem quer que deseje viver em Cristo, a fim de receber deles o conforto, o alimento da vida espiritual, o remédio salutar que o curará e o fortificará para que possa felizmente ressurgir da perdição e do abismo dos vícios; deles, enfim, receberá a bênção que consagra a família e por eles o último suspiro da vida mortal será dirigido ao ingresso na beatitude eterna.
39. Já que a sagrada liturgia é exercida sobretudo pelos sacerdotes em nome da Igreja, a sua organização, o seu regulamento e a sua forma não podem depender senão da autoridade da Igreja. Esta é não somente uma conseqüência da natureza mesma do culto cristão, mas é ainda confirmada pelo testemunho da história.
40. Esse direito inconcusso da hierarquia eclesiástica é provado ainda pelo fato de ter a sagrada liturgia estreita ligação com aqueles princípios doutrinários que a Igreja propõe como fazendo parte de verdades certíssimas, e por isso deve conformar-se aos ditames da fé católica proclamados pela autoridade do supremo magistério para proteger a integridade da religião revelada por Deus.
41. A esse propósito, veneráveis irmãos, fazemos questão de pôr em sua justa luz uma coisa que pensamos não ignorais, isto é, o erro daqueles que pretenderam que a sagrada liturgia fosse como uma experimentação do dogma, de modo que, se uma destas verdades tivesse, através dos ritos da sagrada liturgia, trazido frutos de piedade e de santidade, a Igreja deveria aprová-la, e repudiá-la em caso contrário. Donde o princípio: “a lei da oração é lei da fé”.
42. Não é, porém, assim que ensina e manda a Igreja. O culto que ela rende a Deus é, como de modo breve e claro diz santo Agostinho, uma contínua profissão de fé católica, e um exercício da esperança e da caridade: “a Deus se deve honrar com a fé, a esperança e a caridade”.(44) Na sagrada liturgia fazemos explícita profissão de fé não somente com a celebração dos divinos mistérios, com o cumprimento do sacrifício e a administração dos sacramentos, mas ainda recitando e cantando o Símbolo da fé, que é como o distintivo e a téssera dos cristãos, com a leitura de outros documentos e das sagradas letras escritas por inspiração do Espírito Santo. Toda a liturgia tem, pois, um conteúdo de fé católica enquanto atesta publicamente a fé da Igreja.
43. Por esse motivo, sempre que se tratou de definir um dogma, os sumos pontífices e os concílios, abeberando-se das chamadas “fontes teológicas”, não raramente tiraram argumentos também dessa sagrada disciplina, como fez, por exemplo, o nosso predecessor de imortal memória Pio IX quando definiu a imaculada conceição de Maria virgem. Do mesmo modo, a Igreja e os santos padres, quando se discutia uma verdade controversa ou posta em dúvida, não deixaram de pedir luz também aos ritos veneráveis transmitidos pela antiguidade. Assim se tornou conhecida e venerada a sentença: “A lei da oração estabeleça a lei da fé”.(45) A liturgia, portanto, não determina nem constitui em sentido absoluto e por virtude própria a fé católica, mas antes, sendo ainda uma profissão da verdade celeste, profissão dependente do supremo magistério da Igreja, pode fornecer argumentos e testemunhos de não pouco valor para esclarecer um ponto particular da doutrina cristã. Se queremos distinguir e determinar, de modo geral e absoluto, as relações que intercorrem entre fé e liturgia, podemos afirmar com razão que “a lei da fé deve estabelecer a lei da oração”. O mesmo deve dizer-se ainda quando se trata das outras virtudes teológicas: “na… fé, na esperança e na caridade oramos sempre com desejo contínuo”(46).


IV. Progresso e desenvolvimento da liturgia 

44. A hierarquia eclesiástica tem usado sempre desse seu direito em matéria litúrgica, preparando e ordenando o culto divino e enriquecendo-o sempre de novo esplendor e decoro para glória de Deus e vantagem dos féis. Não duvidou, além disto – salva a substância do sacrifício eucarístico e dos sacramentos – em mudar aquilo que não julgava adaptado, em acrescentar o que parecia contribuir melhor para a glória de Jesus Cristo e da augusta Trindade, para instrução e estímulo salutar do povo cristão.(47)
45. A sagrada liturgia, com efeito, consta de elementos humanos e de elementos divinos. Esses, tendo sido instituídos pelo divino Redentor, não podem, evidentemente, ser mudados pelos homens; aqueles, ao contrário, podem sofrer várias modificações, aprovadas pela hierarquia sagrada, assistida do Espírito Santo, segundo as exigências dos tempos, das coisas e das almas. Disso se origina a estupenda variedade dos ritos orientais e ocidentais; o desenvolvimento progressivo de hábitos particulares religiosos e práticas de piedade inicialmente apenas acenadas; disso advém que muitas vezes são repristinadas e renovadas pias instituições obliteradas pelo tempo. Tudo isso testemunha a vida da intemerata esposa de Jesus Cristo durante tantos séculos; exprime a linguagem usada por ela para manifestar ao Esposo divino a fé e o amor inexauríveis dela e das gentes que lhe foram confiadas; demonstra a sua sábia pedagogia para estimular e incrementar nos crentes “o sentido de Cristo”.
46. Em verdade, não poucas são as causas pelas quais se explica e desenvolve o progresso da sagrada liturgia durante a longa e gloriosa história da Igreja.

Assim, por exemplo, uma formação mais certa e ampla da doutrina católica sobre a encarnação do Verbo de Deus, sobre os sacramentos, sobre o sacrifício eucarístico, e sobre a virgem Maria Mãe de Deus, contribuiu para a adoção de novos ritos, por meio dos quais a luz, mais esplendidamente brilhante na declaração do magistério eclesiástico, veio a refletir melhor e mais claramente nas ações litúrgicas para unir-se com maior facilidade à mente e ao coração do povo cristão
47. O ulterior desenvolvimento da disciplina eclesiástica na administração dos sacramentos, por exemplo, do sacramento da penitência, a instituição e depois o desaparecimento do catecumenato, a comunhão eucarística sob uma só espécie na Igreja latina, contribuíram não pouco para a modificação dos antigos ritos e a gradual adoção de novos e mais condizentes com as disposições disciplinares mudadas.
48. Para essa evolução e para essas mudanças contribuíram notavelmente as iniciativas e as práticas piedosas não estritamente ligadas à sagrada liturgia, nascidas em épocas sucessivas por admirável disposição de Deus e assim difundidas no povo, como, por exemplo, o culto mais amplo e mais fervoroso da divina eucaristia, da acerbíssima paixão do nosso Redentor, do sacratíssimo coração de Jesus, da virgem Mãe de Deus e do seu puríssimo esposo.
48. Entre as circunstâncias exteriores, tiveram a sua parte as peregrinações públicas de devoção aos sepulcros dos mártires, a observância de jejuns particulares instituídos para o mesmo fim, as procissões estacionais de penitência que se celebravam nesta excelsa cidade e às quais, não raro, comparecia o próprio sumo pontífice.
50. Também facilmente se compreende como o progresso das belas artes, especialmente da arquitetura, da pintura e da música tenham influído não pouco sobre a determinação e a diversa conformação dos elementos exteriores da sagrada liturgia.
51. Do mesmo direito seu em matéria litúrgica serviu-se a Igreja para tutelar a santidade do culto contra os abusos temerariamente introduzidos por indivíduos e por Igrejas particulares. Assim aconteceu que nosso predecessor de imortal memória, Sixto V, vendo multiplicar-se os usos e costumes deste gênero durante o século XVI e as iniciativas privadas porem em perigo a integridade da fé e da piedade, com grande vantagem dos hereges e da propaganda do seu erro, instituiu em 1588, para defender os legítimos ritos da Igreja e impedir as infiltrações espúrias, a Congregação dos ritos,(48) órgão a que compete ainda hoje ordenar e prescrever, com cuidado vigilante, tudo o que diz respeito à sagrada liturgia.(49)


V. Tal progresso não pode ser deixado ao arbítrio dos particulares

52. Por isso, somente o sumo pontífice tem o direito de reconhecer e estabelecer quaisquer praxes do culto, de introduzir e aprovar novos ritos, e mudar aqueles que julgar devem ser mudados;(50) os bispos têm o direito e o dever de vigiar diligentemente para que as prescrições dos sagrados cânones relativamente ao culto divino sejam pontualmente observadas.(51) Não é possível deixar ao arbítrio dos particulares, ainda que sejam membros do clero, as coisas santas e venerandas relativas à vida religiosa da comunidade cristã, ao exercício do sacerdócio de Jesus Cristo e ao culto divino, à honra que se deve à santíssima Trindade, ao Verbo encarnado, à sua augusta Mãe e aos outros santo, e à salvação dos homens; pelo mesmo motivo a ninguém é permitido regular neste campo ações externas que têm nexo íntimo com a disciplina eclesiástica, com a ordem, a unidade, a concórdia do corpo místico e, não raro, com a própria integridade da fé católica. Certamente, a Igreja é um organismo vivo e, por isso, ainda no que diz respeito à sagrada liturgia, firme a integridade de seu ensinamento, cresce e se desenvolve, adaptando-se e conformando-se às circunstâncias e às exigências que se verificam no correr dos tempos; deve-se, todavia, reprovar severamente a temerária audácia daqueles que introduzem de propósito novos costumes litúrgicos ou fazem reviver ritos já caídos em desuso e que não concordam com as leis e as rubricas vigentes. Assim, não sem grande pesar, sabemos que isso acontece não somente em coisas de pouca monta, mas ainda de gravíssima importância; não falta, com efeito, quem use a língua vulgar na celebração do sacrifício eucarístico, quem transfira para outros tempos festas fixadas já por razões ponderáveis; quem exclua dos legítimos livros da oração pública os escritos sagrados do Antigo Testamento, reputando-os pouco adaptados e pouco oportunos para os nossos tempos.
53. O uso da língua latina vigente em grande parte da Igreja, é um caro e nobre sinal de unidade e um eficaz remédio contra toda corruptela da pura doutrina. Em muitos ritos o uso da língua vulgar pode ser assaz útil para o povo, mas somente a Sé Apostólica tem o poder de concedê-lo, e por isso, neste campo, nada é lícito fazer sem o seu juízo e a sua aprovação, porque, como havíamos dito, a regulamentação da sagrada liturgia é de sua exclusiva competência.
54. Do mesmo modo se devem julgar os esforços de alguns para revigorar certos antigos ritos e cerimônias. A liturgia da época antiga é, sem dúvida, digna de veneração, mas o uso antigo não é, por motivo somente de sua antiguidade, o melhor, seja em si mesmo, seja em relação aos tempos posteriores e às novas condições verificadas. Os ritos litúrgicos mais recentes também são respeitáveis, pois que foram estabelecidos por influxo do Espírito Santo que está com a Igreja até à consumação dos séculos, (52) e são meios dos quais se serve a ínclita esposa de Jesus Cristo para estimular e conseguir a santidade dos homens.
55. É certamente coisa sábia e muito louvável retornar com a inteligência e com a alma às fontes da sagrada liturgia, porque o seu estudo, reportando-se às origens, auxilia não pouco a compreender o significado das festas e a penetrar com maior profundidade e agudeza o sentido das cerimônias, mas não é certamente coisa tão sábia e louvável reduzir tudo e de qualquer modo ao antigo. Assim, para dar um exemplo, está fora do caminho quem quer restituir ao altar a antiga forma de mesa; quem quer eliminar dos paramentos litúrgicos a cor negra; quem quer excluir dos templos as imagens e as estátuas sagradas; quem quer suprimir na representação do Redentor crucificado as dores acérrimas por ele sofridas; quem repudia e reprova o canto polifônico, ainda quando conforme às normas emanadas da santa sé.
56. Como, em verdade, nenhum católico fiel pode rejeitar as fórmulas da doutrina cristã compostas e decretadas com grande vantagem em época mais recente da Igreja, inspirada e dirigida pelo Espírito Santo, para voltar às antigas fórmulas dos primeiros concílios, ou repudiar as leis vigentes para voltar às prescrições das antigas fontes do direito canônico; assim, quando se trata da sagrada liturgia, não estaria animado de zelo reto e inteligente aquele que quisesse voltar aos antigos ritos e usos, recusando as recentes normas introduzidas por disposição da divina Providência e por mudança de circunstâncias.
57. Este modo de pensar e de proceder, com efeito, faz reviver o excessivo e insano arqueologismo suscitado pelo ilegítimo concílio de Pistóia, e se esforça em revigorar os múltiplos erros que foram as bases daquele conciliábulo e os que se lhe seguiram com grande dano das almas, e que a Igreja – guarda vigilante do “depósito da fé” confïado pelo seu divino Fundador – condenou com todo o direito.(53) De fato, deploráveis propósitos e iniciativas tendem a paralisar a ação santificadora com a qual a sagrada liturgia orienta salutarmente ao Pai celeste os filhos de adoção.
58. Tudo, pois, seja feito em indispensável união com a hierarquia eclesiástica. Ninguém se arrogue o direito de ser lei para si mesmo e de impô-la aos outros por sua vontade. Somente o sumo pontífice, na qualidade de sucessor de Pedro, ao qual o divino Redentor confiou o rebanho universal, (54) e juntamente os bispos, que sob a dependência da Sé Apostólica “o Espírito Santo colocou para reger a Igreja de Deus”,(55) têm o direito e o dever de governar o povo cristão. Por isso, veneráveis irmãos, toda vez que defendeis a vossa autoridade – oportunamente, ainda que com severidade salutar não somente cumpris o vosso dever, mas defendeis a própria vontade do Fundador da Igreja.

 

SEGUNDA PARTE

O CULTO EUCARÍSTICO


I. Natureza do sacrifício eucarístico

59. O mistério da santíssima eucaristia, instituída pelo sumo sacerdote Jesus Cristo e, por vontade sua, perpetuamente renovada pelos seus ministros, é como a súmula e o centro da religião cristã. Em se tratando do ápice da sagrada liturgia, julgamos oportuno, veneráveis irmãos, deter-nos um pouco, chamando a vossa atenção para esta importantíssima temática.
60. O Cristo Senhor, “sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedeque” (56) “tendo amado os seus que estavam no mundo”,(57) “na última ceia, na noite em que foi traído, para deixar à Igreja, sua esposa dileta, um sacrifício visível, como exige a natureza dos homens, o qual representasse o sacrifício cruento que devia cumprir-se na cruz uma só vez, e para que a sua lembrança permanecesse até o fim dos séculos e nos fosse aplicada sua salutar virtude em remissão dos nossos pecados cotidianos… ofereceu a Deus Pai o seu corpo e o seu sangue sob as espécies de pão e de vinho e deu-os aos apóstolos então constituídos sacerdotes do Novo Testamento, para que sob essas mesmas espécies o recebessem, e ordenou a eles e aos seus sucessores no sacerdócio, que o oferecessem”.(58)
61. O augusto sacrifício do altar não é, pois, uma pura e simples comemoração da paixão e morte de Jesus Cristo, mas é um verdadeiro e próprio sacrifício, no qual, imolando-se incruentamente, o sumo Sacerdote faz aquilo que fez uma vez sobre a cruz, oferecendo-se todo ao Pai, vítima agradabilíssima. “Uma… e idêntica é a vítima: aquele mesmo, que agora oferece pelo ministério dos sacerdotes, se ofereceu então sobre a cruz; é diferente apenas, o modo de fazer a oferta”.(59)
62. Idêntico, pois, é o sacerdote, Jesus Cristo, cuja sagrada pessoa é representada pelo seu ministro. Este, pela consagração sacerdotal recebida, assemelha-se ao sumo Sacerdote e tem o poder de agir em virtude e na pessoa do próprio Cristo;(60) por isso, com sua ação sacerdotal, de certo modo, “empresta a Cristo a sua língua, e lhe oferece a sua mão”.(61)
63. Também idêntica é a vítima, isto é, o divino Redentor, segundo a sua humana natureza e na realidade do seu corpo e do seu sangue. Diferente, porém, é o modo pelo qual Cristo é oferecido. Na cruz, com efeito, ele se ofereceu todo a Deus com os seus sofrimentos, e a imolação da vítima foi realizada por meio de morte cruenta livremente sofrida; no altar, ao invés, por causa do estado glorioso de sua natureza humana, “a morte não tem mais domínio sobre ele”(62) e, por conseguinte, não é possível a efusão do sangue; mas a divina sabedoria encontrou o modo admirável de tornar manifesto o sacrifício de nosso Redentor com sinais exteriores que são símbolos de morte. Já que, por meio da transubstanciação do pão no corpo e do vinho no sangue de Cristo, têm-se realmente presentes o seu corpo e o seu sangue; as espécies eucarísticas, sob as quais está presente, simbolizam a cruenta separação do corpo e do sangue. Assim o memorial da sua morte real sobre o Calvário repete-se sempre no sacrifício do altar, porque, por meio de símbolos distintos, se significa e demonstra que Jesus Cristo se encontra em estado de vítima.
64. Idênticos, finalmente, são os fins, dos quais o primeiro é a glorificação de Deus. Do nascimento à morte, Jesus Cristo foi abrasado pelo zelo da glória divina e, da cruz, a oferenda do sangue chegou ao céu em odor de suavidade. E porque este cântico não havia de cessar, no sacrifício eucarístico os membros se unem à Cabeça divina e com ela, com os anjos e os arcanjos, cantam a Deus louvores perenes, (63) dando ao Pai onipotente toda honra e glória.(64)
65. O segundo fim é a ação de graças a Deus. O divino Redentor somente, como Filho de predileção do Eterno Pai de quem conhecia o imenso amor, pôde entoar-lhe um digno cântico de ação de graças. A isso visou e isso desejou “rendendo graças”(65) na última ceia, e não cessou de fazê-lo na cruz, não cessa de realizá-lo no augusto sacrifício do altar, cujo significado é justamente a ação de graças ou eucaristia; e porque isso é “verdadeiramente digno e justo e salutar”.(66)
66. O terceiro fim é a expiação e a propiciação. Certamente ninguém, fora Cristo, podia dar a Deus onipotente satisfação adequada pelas culpas do gênero humano; ele, pois, quis imolar-se na cruz, “propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas ainda pelos de todo o mundo”.(67) Nos altares se oferece igualmente cada dia pela nossa redenção, afim de que, libertados da eterna condenação, sejamos acolhidos no rebanho dos eleitos. E isso não somente por nós que estamos nesta vida mortal, mas ainda “por todos aqueles que repousam em Cristo, os quais nos precederam com o sinal da fé, e dormem o sono da paz”,(68) pois, quer vivamos, quer morramos, “não nos separamos do único Cristo”.(69)
67. O quarto fim é a impetração. Filho pródigo, o homem malbaratou e dissipou todos os bens recebidos do Pai celeste, por isso está reduzido à suprema miséria e inanição; da cruz, porém, Cristo, “tendo em alta voz e com lágrimas oferecido orações e súplicas… foi ouvido pela sua piedade”,(70) e nos sagrados altares exercita a mesma mediação eficaz; a fim de que sejamos cumulados de toda bênção e graça.
68. Compreende-se, portanto, facilmente, porque o sacrossanto concílio de Trento afirma que com o sacrifício eucarístico nos é aplicada a salutar virtude da cruz para a remissão dos nossos pecados cotidianos.(71)
69. Também o apóstolo das gentes, proclamando a superabundante plenitude e perfeição do sacrifício da cruz, declarou que Cristo com uma só oblação, tornou perfeitos para sempre os santificados.(72) Os infinitos e imensos méritos desse sacrifício, com efeito, não têm limites: estendem-se à universalidade dos homens de todo lugar e de todo tempo, porque, nele, o sacerdote e a vítima é Deus Homem; porque a sua imolação como a sua obediência à vontade do Eterno Pai foi perfeitíssima, e porque foi como Cabeça do gênero humano, que ele quis morrer. “Considera como foi tratado o nosso resgate: Cristo pende do madeiro; vê a que preço comprou; …derramou o seu sangue, comprou com o seu sangue, com o sangue do Cordeiro imaculado, com o sangue do unigênito Filho de Deus… Quem compra é Cristo, o preço é o sangue, a aquisição é todo o mundo”.(73)
70. Esse resgate, porém, não teve logo o seu pleno efeito: é necessário que, depois de haver resgatado o mundo com o elevadíssimo preço de si mesmo, Cristo entre na real e efetiva posse das almas. Conseqüentemente, a fim de que, com o beneplácito de Deus, se cumpra para todos os indivíduos e para todas as gerações até o fim dos séculos, a sua redenção e salvação, é absolutamente necessário que cada um tenha vital contato com o sacrifício da cruz, e assim os méritos que dele derivam lhe sejam transmitidos e aplicados. Pode-se dizer que Cristo construiu no Calvário uma piscina de purificação e de salvação e a encheu com o sangue por ele derramado; mas se os homens não mergulham nas suas ondas e aí não lavam as manchas de sua iniqüidade, não podem certamente ser purificados e salvos.
71. A fim de que, pois, os pecadores individualmente se purifiquem no sangue do Cordeiro, é necessária a colaboração dos fiéis. Se bem que, falando em geral, Cristo haja reconciliado com o Pai por meio da sua morte cruenta todo o gênero humano, quis todavia que todos se aproximassem e fossem conduzidos à cruz por meio dos sacramentos e do sacrifício da eucaristia, para poderem conseguir os frutos salutares por ele granjeados na cruz. Com esta atual e pessoal participação assim como os membros se configuram cada dia mais à sua Cabeça divina, assim também a salvação que vem da Cabeça flui para os membros, de modo que cada um de nós pode repetir as palavras de são Paulo: “Estou crucificado com Cristo na cruz, e vivo não mais eu, mas Cristo vive em mim”.(74) Como realmente, em outra ocasião, de propósito e concisamente dissemos, Jesus Cristo enquanto morria na cruz, deu à sua Igreja, sem nenhuma cooperação da parte dela, o imenso tesouro da Redenção; quando, ao invés, se trata de distribuir tal tesouro, não só participa com sua esposa incontaminada desta obra de santificação, mas deseja que tal atividade jorre, de certo modo, por ação dela.(75)
72. O augusto sacrifício do altar é insigne instrumento para aos crentes distribuir os méritos derivados da cruz do divino Redentor: “toda vez que se oferece este sacrifício, cumpre-se a obra da nossa redenção”.(76) Isso, porém, longe de diminuir a dignidade do sacrifício cruento, dele faz ressaltar a grandeza, como afirma o concílio de Trento,”(77) e lhe proclama a necessidade. Renovado cada dia, admoesta-nos que não há salvação fora da cruz de nosso Senhor Jesus Cristo;(78) que Deus quer a continuação deste sacrifício “do surgir ao pôr-do-sol”, (79) para que não cesse jamais o hino de glorificação e de ação de graças que os homens devem ao Criador, visto que têm necessidade de seu contínuo auxílio e do sangue do Redentor para redimir os pecados que ofendem a sua justiça.


II. Participação dos fiéis no sacrifício eucarístico 

73. É necessário, pois, veneráveis irmãos, que todos os fiéis tenham por seu principal dever e suma dignidade participar do santo sacrifício eucarístico, não com assistência passiva, negligente e distraída, mas com tal empenho e fervor que os ponha em contato íntimo com o sumo sacerdote, como diz o Apóstolo: “Tende em vós os mesmos sentimentos que Jesus Cristo experimentou”,(80) oferecendo com ele e por ele, santificando-se com ele.
74. É bem verdade que Jesus Cristo é sacerdote, mas não para si mesmo, e sim para nós, apresentando ao Eterno Pai os votos e sentimentos religiosos de todo o gênero humano; Jesus é vítima, mas por nós, substituindo-se ao homem pecador; ora, o dito do Apóstolo: “Alimentai em vós os mesmos sentimentos que existiram em Jesus Cristo” exige de todos os cristãos que reproduzam em si, enquanto está em poder do homem, o mesmo estado de alma que tinha o divino Redentor quando fazia o sacrifício de si mesmo, a humilde submissão do espírito, isto é, a adoração, a honra, o louvor e a ação de graças à majestade suprema de Deus; requer, além disso, que reproduzam em si mesmos as condições da vítima: a abnegação de si conforme os preceitos do evangelho, o voluntário e espontâneo exercício da penitência, a dor e a expiação dos próprios pecados. Exige, em uma palavra, a nossa morte mística na cruz com Cristo, de modo que possamos dizer com Paulo: “Estou crucificado com Cristo na cruz”.(81)
75. É necessário, veneráveis irmãos, explicar claramente a vosso rebanho como o fato de os fiéis tomarem parte no sacrifício eucarístico não significa todavia que eles gozem de poderes sacerdotais. Há, de fato, em nossos dias, alguns que, avizinhando-se de erros já condenados,(82) ensinam que em o Novo Testamento se conhece apenas um sacerdócio pertencente a todos os batizados, e que o preceito dado por Jesus aos apóstolos na última ceia – fazer o que ele havia feito – se refere diretamente a toda a Igreja dos cristãos e só depois é que foi introduzido o sacerdócio hierárquico. Sustentam, por isso, que só o povo goza de verdadeiro poder sacerdotal, enquanto o sacerdote age unicamente por ofício a ele confiado pela comunidade. Afirmam, em conseqüência, que o sacrifício eucarístico é uma verdadeira e própria “concelebração”, e que é melhor que os sacerdotes “concelebrem” junto com o povo presente, do que, na ausência destes, ofereçam privadamente o sacrifício.
76. É inútil explicar quanto esses capciosos erros estejam em contraste com as verdades acima demonstradas, quando falamos do lugar que compete ao sacerdote no corpo místico de Jesus. Recordemos apenas que o sacerdote faz as vezes do povo porque representa a pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo enquanto é Cabeça de todos os membros e se oferece a si mesmo por eles: por isso vai ao altar como ministro de Cristo, inferior a ele, mas superior ao povo.(83) O povo, ao invés, não representando por nenhum motivo a pessoa do divino Redentor, nem sendo mediador entre si próprio e Deus, não pode de nenhum modo gozar dos poderes sacerdotais.


1. Os fiéis oferecem junto com o sacerdote

77. Tudo isso consta da fé verdadeira; mas deve-se, além disso, afirmar que também os fiéis oferecem a vítima divina, sob um aspecto diverso.

Já o declararam abertamente alguns dos nossos predecessores e doutores da Igreja. “Não somente – assim afirmava Inocêncio III, de imortal memória – oferecem os sacerdotes, mas ainda todos os fiéis; pois isto que em particular se cumpre pelo ministério dos sacerdotes, cumpre-se universalmente por voto dos fiéis”.(84) E apraz-nos citar ao menos um dos muitos textos de são Roberto Belarmino a esse propósito: “O sacrifício – diz ele – é oferecido principalmente na pessoa de Cristo. Por isso a oblação que segue à consagração atesta que toda a Igreja consente na oblação feita por Cristo e oferece juntamente com ele”.(85)
78. Com clareza não menor, os ritos e as orações do sacrifício eucarístico significam e demonstram que a oblação da vítima é feita pelos sacerdotes em união com o povo. De fato, não somente o sagrado ministro, depois da oferta do pão e do vinho, voltado para o povo diz explicitamente: “Orai, irmãos, para que o meu e o vosso sacrifício sejam aceitos junto a Deus-Pai onipotente”,(86) mas ainda as orações com as quais é oferecida a vítima divina são, além do mais, ditas no plural, e nelas se indica que também o povo toma parte como ofertante neste augusto sacrifício. Diz-se, por exemplo: “Pelos quais nós te oferecemos, e que te oferecem ainda eles… Por isso te suplicamos, ó Senhor, aceitar aplacado esta oferta dos teus servos e de toda a tua família… Nós, teus servos, como ainda o teu povo santo, oferecemos à tua excelsa majestade os dons e dádivas que tu mesmo nos deste, a hóstia pura, a hóstia santa, a hóstia imaculada”.(87)
79. Nem é de admirar que os fiéis sejam elevados a uma tal dignidade. Com a água do batismo, com efeito, os cristãos se tornam, a título comum, membros do corpo místico de Cristo sacerdote, e, por meio do “caráter” que se imprime nas suas almas, são delegados ao culto divino, participando, assim, de modo condizente ao próprio estado, do sacerdócio de Cristo.
80. Na Igreja católica, a razão humana iluminada pela fé sempre se esforçou por ter a maior consciência possível das coisas divinas; por isso é natural que também o povo cristão pergunte piamente em que sentido se diz no Cânon do sacrifício eucarístico que também ele o oferece. Para satisfazer esse piedoso desejo apraz-nos tratar aqui do assunto com clareza e concisão.
81. Há, acima de tudo, razões muito remotas: freqüentemente acontece que os fiéis, assistindo aos sagrados ritos, unam alternadamente as suas orações às orações do sacerdote; alguma vez; ainda, acontece – isto antigamente se verificava com maior freqüência – que ofereçam ao ministro do altar o pão e o vinho para que se tornem corpo e sangue de Cristo; e, enfim, porque, com as esmolas, fazem com que o sacerdote ofereça por eles a vítima divina.
82. Mas há ainda uma razão mais profunda para que se possa dizer que todos os cristãos e especialmente aqueles que assistem ao altar realizem a oferta.
83. Para não dar ensejo a erros perigosos neste importantíssimo argumento, é necessário precisar com exatidão o significado do termo “oferta”. A imolação incruenta por meio da qual, depois que foram pronunciadas as palavras da consagração, Cristo está presente no altar no estado de vítima, é realizada só pelo sacerdote enquanto representa a pessoa de Cristo e não enquanto representa a pessoa dos fiéis. Colocando, porém, no altar a vítima divina, o sacerdote a apresenta a Deus Pai como oblação à glória da SS. Trindade e para o bem de todas as almas. Dessa oblação propriamente dita os fiéis participam do modo que lhes é possível e por um duplo motivo: porque oferecem o sacrifício não somente pelas mãos do sacerdote, mas, de certo modo ainda, junto com ele; e ainda porque com essa participação também a oferta feita pelo povo pertence ao culto litúrgico. Que os fiéis oferecem o sacrifício por meio do sacerdote, é claro, pois o ministro do altar age na pessoa de Cristo enquanto Cabeça, que oferece em nome de todos os membros; pelo que, em bom direito, se diz que toda a Igreja, por meio de Cristo, realiza a oblação da vítima. Quando, pois, se diz que o povo oferece juntamente com o sacerdote, não se afirma que os membros da Igreja de maneira idêntica à do próprio sacerdote realizam o rito litúrgico visível – o que pertence somente ao ministro de Deus para isso designado – mas sim que une os seus votos de louvor, de impetração, de expiação e a sua ação de graças à intenção do sacerdote, aliás do próprio sumo pontífice, a fim de que sejam apresentados a Deus Pai na própria oblação da vítima, embora com o rito externo do sacerdote. É necessário, com efeito, que o rito externo do sacrifício manifeste, por sua natureza, o culto interno; ora, o sacrifício da nova Lei significa aquele obséquio supremo com o qual o próprio principal ofertante, que é Cristo, e com ele e por ele todos os seus membros místicos, honram devidamente a Deus.
84. Com grande alegria da alma fomos informados de que essa doutrina, especialmente nos últimos tempos, pelo intenso estudo da disciplina litúrgica da parte de muitos, foi posta em sua luz; mas não podemos deixar de deplorar vivamente os exageros e os desvios da verdade, que não concordam com os genuínos preceitos da Igreja.
85. Alguns, com efeito, reprovam de todo as missas que se celebram privadamente e sem a assistência do povo, como se se desviassem da forma primitiva do sacrifício; nem falta quem afirme que os sacerdotes não possam oferecer a divina vítima ao mesmo tempo em muitos altares, porque desse modo dissociam a comunidade e põem em perigo a unidade; também não falta quem chegue ao ponto de crêr necessária a confirmação e a ratificação do sacrifício por parte do povo, para que possa ter sua força e eficácia.
86. Erroneamente, nesse caso, se faz apelo à índole social do sacrifício eucarístico. Toda vez, com efeito, que o sacerdote repete o que fez o divino Redentor na última ceia, o sacrifício é realmente consumado e tem sempre e em qualquer lugar necessariamente e por sua intrínseca natureza, uma função pública e social, enquanto o ofertante age em nome de Cristo e dos cristãos, dos quais o divino Redentor é Cabeça, e oferece a Deus pela santa Igreja católica e pelos vivos e defuntos.(88) E isso se verifica certamente, quer assistam os fiéis – e desejamos e recomendamos que estejam presentes numerosíssimos e fervorosíssimos – quer não assistam, não sendo de nenhum modo requerido que o povo ratifique o que faz o sagrado ministro.
87. Se, pois, daquilo que foi dito resulta claramente que o santo sacrifício da missa é oferecido validamente em nome de Cristo e da Igreja, nem fica privado dos seus frutos sociais, mesmo quando celebrado sem assistência de nenhum acólito todavia, pela dignidade deste mistério, queremos e insistimos, como sempre quis a madre Igreja, que nenhum sacerdote se aproxime do altar sem ter quem o ajude e lhe responda, como prescreve o cân. 813.


2. Os féis oferecem também a si mesmos como vítimas 

88. Para que, pois, a oblação, com a qual neste sacrifício os fiéis oferecem a vítima divina ao Pai celeste, tenha o seu efeito pleno, requer-se ainda outra coisa: é necessário que eles se imolem a si mesmos como vítimas.
89. Essa imolação não se limita somente ao sacrifício litúrgico. Quer, com efeito, o príncipe dos apóstolos que pelo fato mesmo de sermos edifïcados como pedras vivas sobre Cristo, possamos como “sacerdócio santo, oferecer vítimas espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo”; (89) e Paulo apóstolo, sem nenhuma distinção de tempo, exorta os cristãos com as seguintes palavras: “Eu vos conjuro, ó irmãos, que ofereçais os vossos corpos como vítima viva, santa, agradável a Deus, como vosso culto racional.”(90) Mas quando, sobretudo, os féis participam da ação litúrgica com tanta piedade e atenção que se pode verdadeiramente dizer deles: “dos quais te é conhecida a fé e a devoção”(91) não é possível que a fé de cada um deles não se torne mais alegremente operante por meio da caridade, nem se revigore e brilhe a piedade e não se consagrem todos à conquista da glória divina, desejando com ardor tornarem-se intimamente semelhantes a Jesus Cristo que sofreu acerbas dores, oferecendo-se ao sumo Sacerdote e por meio dele como hóstia espiritual.
90. Isso ensinam ainda as exortações que o bispo endereça em nome da Igreja aos ministros sagrados no dia da sua ordenação: “Compenetrai-vos daquilo que fazeis, imitai o que tratais, de modo que, ao celebrardes o mistério da morte do Senhor, procureis mortificar os vossos membros de seus vícios e da concupiscência”.(92) E quase do mesmo modo nos livros litúrgicos são exortados os cristãos que se aproximam do altar a participarem dos sagrados mistérios: “esteja sobre… este altar o culto da inocência, nele se imole a soberba, nele se apague a ira, se debele a luxúria e toda concupiscência, ofereça-se ao invés de rolas o sacrifício da castidade e em lugar de pombas o sacrifício da inocência”.(93) Assistindo, pois, ao altar, devemos transformar a nossa alma de modo que se apague radicalmente todo o pecado que está nela, e com toda diligência se restaure e reforce tudo aquilo que, mediante Cristo, dá a vida sobrenatural: e assim nos tornemos, junto com a hóstia imaculada, uma vítima agradável a Deus Pai.
91. A Igreja se esforça com os preceitos da sagrada liturgia por levar a efeito, da maneira mais perfeita, este santíssimo propósito. A isso visam não somente as leituras, as homílias e as outras exortações dos ministros sagrados, e todo o ciclo dos mistérios que nos são recordados durante o ano, mas também as vestes, os ritos sagrados e seu aparato exterior que tem por fim “fazer pensar na majestade de tão grande sacrifício, excitar a mente dos fnéis, por meio dos sinais visíveis de piedade e de religião, à contemplação das altíssimas” coisas encerradas neste sacrifício”.(94)
92. Todos os elementos da liturgia tendem, pois, a reproduzir em nossa alma a imagem do divino Redentor através do mistério da cruz, segundo a palavra do apóstolo das gentes: “Estou cravado com Cristo na cruz e vivo, não mais eu, mas é Cristo que vive em mim”.(95) Por isso nos tornamos hóstia junto com Cristo para a maior glória do Pai.
93. A isso, pois, devem dirigir e elevar a sua alma os féis que oferecem a vítima divina no sacrifício eucarístico. Se, com efeito, como escreve santo Agostinho, sobre a mesa do Senhor é posto o nosso mistério, isto é, o próprio Cristo Senhor, (96) enquanto a cabeça é símbolo daquela união em virtude da qual somos o corpo de Cristo(97) e membros do seu corpo;(98) se são Roberto Belarmino ensina, segundo o pensamento do doutor de Hipona, que no sacrifício do altar está significado o sacrifício geral com o qual todo o corpo místico de Cristo, isto é, toda a cidade redimida, é oferecida a Deus por meio de Cristo grão-sacerdote, (99) nada se pode encontrar de mais reto e de mais justo que nos imolarmos ao eterno Pai, nós todos, com nossa Cabeça, que sofreu por nós. No sacramento do altar, segundo o mesmo Agostinho, torna-se patente à Igreja que no sacrifício que oferece, ela mesma é oferecida.(100)
94. Considerem, pois, os fiéis a que dignidade os eleva a sagrada água do batismo; e não se contentem em participar do sacrifício eucarístico com a intenção geral que convém aos membros de Cristo e filhos da Igreja, mas livre e intimamente unidos ao sumo sacerdote e ao seu ministro na terra, segundo o espírito da sagrada liturgia, se unam a ele de modo particular no momento da consagração da  hóstia divina, e a ofereçam junto com ele quando são pronunciadas aquelas solenes palavras “por ele, com ele, nele, a ti, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória por todos os séculos dos séculos”;(101) à essas palavras o povo responde: Amém. Nem se esqueçam os cristãos de oferecer-se, com a divina Cabeça crucificada, a si mesmos e as suas preocupações, angústias, dores, misérias e necessidades.


3. Os meios de promover a participação dos fiéis

95. São, pois, dignos de louvor aqueles que, com o fim de tornar mais fácil e frutuosa ao povo cristão a participação no sacrifício eucarístico, se esforçam em colocar oportunamente nas mãos do povo o “Missal romano” de modo que os fiéis, unidos ao sacerdote, orem com ele, com as suas próprias palavras e com os mesmos sentimentos da Igreja; como também os que visam a fazer da liturgia, ainda que externamente, uma ação sagrada, na qual têm parte de fato todos os assistentes. Isso pode acontecer de vários modos: quando todo o povo, segundo as normas rituais, responde disciplinadamente às palavras do sacerdote ou executa cânticos correspondentes às várias partes do sacrifício, ou faz uma e outra coisa, ou, enfim, quando, na missa solene, responde alternadamente às orações dos ministros de Jesus Cristo e se associa ao canto litúrgico.
96. Todavia, essas maneiras de participar do sacrifício são para louvar e aconselhar, quando obedecem escrupulosamente aos preceitos da Igreja e às normas dos sagrados ritos. São ordenadas sobretudo para alimentar e fomentar a piedade dos cristãos e a sua íntima união com Cristo e com o seu ministro visível e a estimular aqueles sentimentos e aquelas disposições interiores com as quais é necessário que a nossa alma se assemelhe ao sumo sacerdote do Novo testamento. Não obstante, se bem que isto demonstre no modo exterior, que o sacrifício por sua natureza, enquanto é realizado pelo mediador de Deus e dos homens (102) deve ser considerado obra de todo o corpo místico de Cristo, não são porém necessárias para constituir-lhe o caráter público e comum. Além disso, a missa “dialogada” não pode substituir a missa solene, a qual, ainda que celebrada na presença apenas dos ministros, goza de uma particular dignidade pela majestade dos ritos e aparato das cerimônias; se bem que o seu esplendor e solenidade muito ganhem se, como o prefere a Igreja, o povo numeroso e devoto a ela assistir.
97. Deve-se ainda observar que estão fora da verdade e do caminho da reta razão os que, arrastados por falsas opiniões, tanto valor atribuem a todas essas circunstâncias que não duvidam asseverar que, omitindo-as, a ação sagrada não pode alcançar o fim prefixado.
98. Não poucos fiéis, com efeito, são incapazes de usar o “Missal Romano” ainda quando escrito em língua vulgar; nem todos são capazes de compreender corretamente, como convém, os ritos e as cerimônias litúrgicas. A inteligência, o caráter e a índole dos homens são tão vários e dissemelhantes que nem todos podem igualmente impressionar-se e serem guiados pelas orações, pelos cantos ou pelas ações sagradas feitas em comum. Além disso, as necessidades e as disposições das almas não são iguais em todos, nem ficam sempre as mesmas em cada um. Quem, pois, poderá dizer, levado por tal preconceito, que tantos cristãos não podem participar do sacrifício eucarístico e aproveitar-lhe os benefícios? Certamente que o podem fazer de outra maneira, e para alguns mais fácil: por exemplo, meditando piamente os mistérios de Jesus Cristo ou fazendo exercícios de piedade e outras orações que, embora na forma difiram dos sagrados ritos, a eles todavia correspondem pela sua natureza. Por isso vos exortamos, veneráveis irmãos, a que na vossa diocese ou jurisdição eclesiástica reguleis e ordeneis o modo mais adequado mediante o qual o povo consiga participar da ação litúrgica segundo as normas estabelecidas no “Missal Romano” e segundo os preceitos da Sagrada Congregação dos ritos e do Código de direito canônico. Faça-se, pois, tudo com a necessária ordem e decoro, nem seja permitido a ninguém, ainda que sacerdote, usar os sagrados edifícios para experimentações arbitrárias. A esse propósito desejamos ainda, como já existe para a arte e a música sacra, também se constitua nas dioceses, uma comissão para promover o apostolado litúrgico, a fim de que, sob o vosso vigilante cuidado, tudo se faça diligentemente segundo as prescrições da Sé Apostólica.
99. Nas comunidades religiosas observe-se cuidadosamente tudo o que as próprias constituições estabeleceram nesta matéria, e não se introduzam novidades que não tenham sido primeiro aprovadas pelos superiores. Na realidade, ainda que possam ser várias as circunstâncias exteriores da participação do povo no sacrifício eucarístico e nas outras ações litúrgicas, sempre deve procurar-se com todo o cuidado que as almas dos assistentes se unam ao divino Redentor com os mais estreitos laços possíveis e que a sua vida se enriqueça de santidade sempre maior e cresça todo dia a glória do Pai celeste.


III. A comunhão eucarística

100. O augusto sacrifício do altar conclui-se com a comunhão do divino banquete. Mas, como todos sabem, para haver integridade do sacrifício, somente é exigido que o sacerdote se nutra do alimento celeste e não que o povo – coisa aliás sumamente desejável – participe da santa comunhão.
101. Agrada-nos a esse propósito repetir as considerações de Nosso predecessor Bento XIV sobre as definições do concílio de Trento: “Em primeiro lugar… devemos dizer que a nenhum fiel pode vir à mente que as missas privadas, nas quais apenas o sacerdote comunga, percam por isso o valor do verdadeiro, perfeito e íntegro sacrifício instituído por Cristo Senhor e devam, portanto, ser consideradas ilícitas. Nem os fiéis ignoram – pelo menos podem ser facilmente instruídos – que o sacrossanto concílio de Trento, fundando-se na doutrina guardada na ininterrupta tradição da Igreja, condenou a nova e falsa doutrina de Lutero, contraria a esta”(103). Quem disser que as missas nas quais só o sacerdote comunga sacramentalmente são ilícitas, e por isso devam ser abolidas, seja anátema”.(104)
102. Afastam-se, pois, do caminho da verdade os que recusam celebrar, se o povo cristão não se aproximar da mesa divina; e ainda mais se afastam os que, para sustentar a absoluta necessidade de que os fiéis se nutram do banquete eucarístico juntamente com o sacerdote, afirmam capciosamente que não se trata somente de um sacrifício, mas de sacrifício e banquete de união fraterna, e fazem da santa comunhão em comum quase o ápice de toda a celebração.
103. Deve-se ainda uma vez notar que o sacrifício eucarístico consiste essencialmente na imolação incruenta da vítima divina, imolação que é misticamente manifestada pela separação das sagradas espécies e pela sua oblação feita ao Pai Eterno. A santa comunhão pertence à integridade do sacrifício, e à participação nele por meio da recepção do augusto sacramento; e enquanto é absolutamente necessária ao ministro sacrificador, aos fiéis é vivamente recomendável.
104. Como, porém, a Igreja, enquanto mestra de verdade, se esforça com todo o cuidado por guardar a integridade da fé católica, assim, enquanto mãe solícita de seus filhos exorta-os instantemente a participarem com avidez e freqüência deste máximo benefício da nossa religião.
105. Deseja antes de tudo, que os cristãos – especialmente quando não possam facilmente receber de fato o alimento eucarístico – o recebam ao menos em desejo; de sorte que se unam a ele com fé viva, com ânimo reverentemente humilde e confiante na vontade do Redentor divino e com o amor mais ardente.
106. Mas isso não lhe basta. Já que, como acima dissemos, podemos participar do sacrifício também pela comunhão sacramental, por meio do banquete do pão dos anjos, a madre Igreja, para que mais eficazmente “possamos sentir em nós continuamente o fruto da redenção” (105) repete a todos os seus filhos o convite de Cristo Senhor: “tomai e comei… fazei isto em minha memória”.(106) Nesse propósito o concílio de Trento, fazendo eco aos desejos de Jesus Cristo e de sua esposa imaculada, insta por “que em todas as missas os fiéis presentes participem não só espiritualmente, mas ainda sacramentalmente da eucaristia, para que lhes venha mais abundante o fruto deste sacrifício”.(107) Aliás, para melhor e mais claramente manifestar-se a participação dos fiéis no sacrifício divino por meio da comunhão eucarística, o nosso imortal predecessor Bento XIV louva a devoção daqueles que, não só desejam nutrir-se do alimento celeste durante a assistência ao sacrifício, mas preferem alimentar-se com hóstias consagradas no mesmo sacrifício, se bem que, como ele declara, participemos verdadeira e realmente do sacrifício, mesmo quando se trate de pão eucarístico devidamente consagrado antes. Assim, com efeito, escreve: “Embora participem do mesmo sacrifício não só aqueles aos quais o sacerdote celebrante dá parte da Vítima por ele oferecida na mesma missa, mas também aqueles aos quais o sacerdote dá a eucaristia que se costuma conservar; nem por isso a Igreja proibiu no passado, ou proíbe atualmente, que o sacerdote satisfaça à devoção e ao justo pedido daqueles que assistem à missa e pedem para participar do mesmo sacrifício, também por eles oferecido na maneira que lhes é apropriada; antes aprova e deseja que assim se faça e reprovaria os sacerdotes que, por sua culpa ou negligência privassem os fiéis desta participação”. (108)
107. Queira, pois, Deus que todos, espontanea e livremente, correspondam a esses solícitos convites da Igreja; queira Deus que os fiéis, mesmo todos os dias se o puderem, participem não só espiritualmente do sacrifício divino, mas ainda da comunhão do augusto sacramento, recebendo o corpo de Jesus Cristo, oferecido por todos ao Pai Eterno. Estimulai, veneráveis irmãos, nas almas confïadas aos vossos cuidados, a apaixonada e insaciável fome de Jesus Cristo; vosso ensinamento cerque os altares de crianças e de jovens que ofereçam ao Redentor divino a sua inocência e o seu entusiasmo: aproximem-se freqüentemente os cônjuges para que, nutridos na sagrada mesa e graças a ela, possam educar no espírito e na caridade de Jesus Cristo a prole que lhes foi confiada; sejam convidados os operários para que possam receber o alimento eficaz e indefectível que lhes restaura as forças e prepara às suas fadigas a recompensa eterna no céu; aproximai enfim os homens de todas as classes e “compeli-os a entrar”,(109) porque este é o pão da vida do qual todos têm necessidade. A Igreja de Jesus Cristo só dispõe desse pão para saciar as aspirações e os desejos das nossas almas, para uni-las intimamente a Jesus Cristo, afim de, por ele, se tornarem “um só corpo”(110) e confraternizarem quantos se sentam à mesma mesa para tomar o remédio da imortalidade (111) com a fração do pão único.
108. É assaz oportuno, ainda – o que aliás é estabelecido pela liturgia – que o povo compareça à santa comunhão depois que o sacerdote tomou no altar o alimento divino; e, como já dissemos, são para louvar aqueles que, assistindo à missa, recebem as hóstias consagradas no mesmo sacrifício, verificando-se destarte que “quantos, participando deste altar, hajamos recebido o sacrossanto corpo e sangue de teu Filho, sejamos cumulados de toda a graça e bênção celeste”.(112)
109. Todavia, não faltam nem são raras as causas pelas quais se deva distribuir o pão eucarístico, antes ou depois do sacrifício, como também que se comungue com hóstias anteriormente consagradas, embora se distribua a comunhão em seguida à do sacerdote. Mesmo nesses casos – como aliás já advertimos antes – o povo participa regularmente do sacrifício eucarístico e pode freqüentemente, com maior facilidade, aproximar-se da mesa de vida eterna. Se a Igreja com maternal condescendência se esforça por vir ao encontro das necessidades espirituais dos seus filhos, estes, contudo, de sua parte, não devem facilmente desdenhar o que a sagrada liturgia aconselha e, sempre que não haja motivo plausível em contrário, devem fazer tudo o que mais claramente manifesta no altar a viva unidade do corpo místico.
110. Finda a sagrada ação, regulada pelas normas litúrgicas particulares, não dispensa a ação de graças de quem saboreou o alimento celeste; é, aliás muito conveniente que, recebido o alimento eucarístico e terminados os ritos públicos, se recolha e, intimamente unido com o divino Mestre, se entretenha com ele tanto quanto as circunstâncias lho permitam, em dulcíssimo e salutar colóquio. Afastam-se, pois, do reto caminho da verdade aqueles que, baseando-se nas palavras mais que no sentido, afirmam e ensinam que, terminada a missa, não se deve prolongar a ação de graças, não só porque o sacrifício do altar é por natureza uma ação de graças mas ainda porque isso pertence à piedade privada, pessoal e não ao bem da comunidade. Pelo contrário, a própria natureza do Sacramento requer do cristão que o recebe, que se locuplete com abundantes frutos de santidade.
111. Certamente a pública assembléia da comunidade está dissolvida, mas é necessário que os indivíduos unidos com Cristo não interrompam na sua alma o cântico de louvor, “agradecendo sempre tudo em nome de nosso Senhor Jesus Cristo a Deus e Pai”.(113) A isso nos exorta ainda a própria liturgia do sacrifício eucarístico, quando nos manda rezar com estas palavras: “Concede, nós te pedimos, render-te contínuas graças (114) e não cessar jamais de louvar-te”.(115) Se se deve, pois, sempre agradecer a Deus e jamais cessar de louvá-lo, quem ousaria repreender e desaprovar a Igreja que aconselha aos seus sacerdotes (116) e aos fiéis entreterem-se ao menos um pouco de tempo depois da comunhão em colóquio com o divino Redentor, e que inseriu nos livros litúrgicos oportunas orações enriquecidas de indulgências com as quais os sagrados ministros se possam convenientemente preparar antes de celebrar e de comungar e, acabada a santa missa, manifestar a Deus a sua ação de graças? A sagrada liturgia, longe de sufocar os íntimos sentimentos particulares dos cristãos, os facilita e estimula a que sejam assimilados a Jesus Cristo e por meio dele dirigidos ao Pai; portanto ela mesma exige que aquele que se aproxima da mesa eucarística agradeça devidamente a Deus. O divino Redentor compraz-se em ouvir as nossas orações, falar conosco de coração aberto e oferecer-nos refúgio no seu Coração ardente.
112. Esses atos próprios dos indivíduos são absolutamente necessários para aproveitar-nos mais abundantemente de todos os sobrenaturais tesouros de que é rica a eucaristia e para transmiti-los aos outros segundo as nossas possibilidades, a fim de que Cristo Senhor consiga em todas as almas a plenitude de sua virtude. Por que, pois, veneráveis irmãos; não louvaremos aqueles que, recebido o alimento eucarístico, ainda depois que se dissolveu oficialmente a assembléia cristã, se demoram em íntima familiaridade com o divino Redentor, não só para tratar docemente com ele, mas ainda para agradecê-lo, louvá-lo e especialmente para pedir-lhe ajuda, e, assim, afastar de sua alma tudo quanto possa diminuir a eficácia do sacramento, ao passo que se aproveita de tudo o que logra favorecer a atualíssima ação de Jesus? Antes, nós os exortamos a fazê-lo, de modo particular, quer traduzindo na prática os propósitos concebidos e exercitando as virtudes cristãs, quer adaptando às próprias necessidades quanto tenham recebido com real liberalidade. Falava deveras segundo os preceitos e espírito da liturgia o autor do áureo livrinho a “Imitação de Cristo”, quando aconselhava a quem tivesse comungado: “Recolhe-te em segredo e goza de teu Deus para que possuas aquele que o mundo inteiro não poderá tirar-te”.(117)
113. Assim, pois, intimamente unidos a Cristo, procuremos todos mergulhar em sua santíssima alma e unir-nos com ele para participar dos atos de adoração com os quais ele oferece à Trindade Augusta a homenagem mais grata e aceita; aos atos de louvor e de ação de graças que ele oferece ao Pai Eterno e a que faz eco o cântico do céu e da terra: “Bendigam ao Senhor todas as suas obras”; (118) participando dos atos, imploremos a ajuda celeste no momento mais oportuno para pedir e obter socorro em nome de Cristo (119) mas, sobretudo, ofereçamo-nos e imolemo-nos como vítimas clamando: “Faze que sejamos oferta eterna a ti”,(120)
114. O divino Redentor repete incessantemente o seu insistente convite: “Permanecei em mim”.(121) por meio do sacramento da eucaristia, Cristo fica em nós e nós ficamos em Cristo; e como Cristo, permanecendo em nós, vive e opera, assim é necessário que nós, permanecendo em Cristo, por ele vivamos e operemos.


IV. Adoração da eucaristia

115. Contém o alimento eucarístico, como todos sabem, “verdadeira, real e substancialmente o corpo e o sangue junto com a alma e a divindade de nosso Senhor Jesus Cristo”; (122) não é de admirar, pois, se a Igreja, desde as origens adorou o corpo de Cristo sob as espécies eucarísticas, como se vê dos ritos mesmos do augusto sacrifício, com os quais se prescreve aos sagrados ministros que adorem o santíssimo sacramento com genuflexões e inclinações profundas.
116. Os sagrados concílios ensinam que, desde o início de sua vida, foi transmitido à Igreja que se deve honrar “com uma única adoração o Verbo Deus encarnado e a sua própria carne” (123); e santo Agostinho afirma: “Ninguém come esta carne sem tê-la primeiro adorado”, acrescentando que não só não pecamos adorando, antes pecamos não adorando.(124)
117. Desses princípios doutrinários nasceu e se foi pouco a pouco desenvolvendo o culto eucarístico da adoração, distinto do santo sacrifício. A conservação das sagradas espécies para os enfermos e para todos os que viessem a encontrar-se em perigo de morte, introduziu o louvável uso de adorar este alimento celeste conservado nas igrejas. Esse culto de adoração tem um válido e sólido motivo. A eucaristia, de fato, é sacrifício e é, também, sacramento; e difere dos outros sacramentos enquanto não só produz a graça, mas ainda contém de modo permanente o próprio autor da graça. Quando, por isso, a Igreja nos manda adorar a Cristo sob os véus eucarísticos e suplicar-lhe os dons sobrenaturais e terrenos de que temos sempre necessidade, manifesta a fé viva com a qual crê presente sob aqueles véus o seu Esposo divino, manifesta-lhe o seu reconhecimento e goza da sua íntima familiaridade.
118. Nesse culto, a Igreja, no decurso dos tempos, introduziu várias formas cada dia certamente mais belas e salutares, como, por exemplo: devotas e mesmo cotidianas visitas ao divino tabernáculo; bênção do santíssimo sacramento; procissões solenes por vilas e cidades, especialmente por ocasião dos congressos eucarísticos, e adoração do augusto sacramento publicamente exposto, as quais algumas vezes duram pouco e outras vezes se prolongam por horas inteiras e até, por quarenta horas; em alguns lugares são estabelecidas durante o ano todo, por turnos, em cada Igreja; em outros lugares se continuam de dia e de noite ao cuidado de comunidades religiosas e nelas freqüentemente tomam parte também os fiéis.
119. Esses exercícios de devoção contribuíram de modo admirável para a fé e a vida sobrenatural da Igreja militante na terra, a qual, assim fazendo, se torna, de certo modo, eco da Igreja triunfante que eternamente canta o hino de louvor a Deus e ao Cordeiro “que foi imolado”.(125) Por isso, a Igreja não só aprovou mas fez seus e confirmou com a sua autoridade estes exercícios devotos propagados em toda a parte no correr dos séculos.(126) Eles fluem do espírito da sagrada liturgia; e por isso, desde que sejam cumpridos com o decoro, a fé e a devoção requeridas pelos sagrados ritos e pelas prescrições da Igreja, certamente ajudam muitíssimo a viver a vida litúrgica.
120. Nem se diga que tal culto eucarístico provoca uma errônea confusão entre o Cristo histórico, como dizem, que viveu na terra, o Cristo presente no augusto sacramento do altar, e o Cristo triunfante no céu e dispensador de graças; deve-se, pelo contrário, afirmar que, desse modo, os fiéis testemunham e manifestam solenemente a fé da Igreja, com a qual se crê que um e idêntico é o Verbo de Deus e o Filho de Maria virgem, que sofreu na cruz, que está presente e oculto na eucaristia, e que reina no céu. Assim afirma são João Crisóstomo: “Quando vês a ti; apresentado (o corpo de Cristo) dize a ti mesmo: por este corpo não sou mais terra e pó, não mais escravo, porém livre: por isso, espero alcançar o céu e os bens que aí se encontram, a vida imortal, a herança dos anjos, a companhia de Cristo; este corpo transpassado pelos cravos, dilacerado pelos açoites, não foi presa da morte… Este é aquele corpo que foi ensangüentado, transpassado pela lança, do qual brotaram duas fontes salutares: uma de sangue, outra de água… Este corpo foi-nos dado para o possuir e para o comer, e isso foi conseqüência de intenso amor”.(127)
121. De modo particular, ademais, é muito de louvar-se o costume segundo o qual muitos exercícios de piedade entrados no uso do povo cristão, se encerram com o rito da bênção eucarística. Nada melhor nem mais vantajoso que o gesto com o qual o sacerdote, levantando ao céu o pão dos anjos, em presença da multidão cristã ajoelhada, e movendo-o em forma de cruz, invoca o Pai Celeste para que se digne volver benignamente os olhos a seu Filho crucificado por nosso amor, e, graças a ele, que quis ser nosso Redentor e irmão, difunda por sua intervenção, os seus dons celestes sobre os remidos pelo sangue imaculado do Cordeiro.(128)
122. Procurai, pois, veneráveis irmãos, com a vossa habitual e grande diligência, que os templos edificados pela fé e pela piedade das gerações cristãs no decurso dos séculos como um perene hino de glória a Deus onipotente e como digna habitação do nosso Redentor oculto sob as espécies eucarísticas, sejam o mais possível abertos aos sempre mais numerosos fiéis, para que eles, recolhidos aos pés de nosso Salvador, ouçam o seu dulcíssimo convite: “Vinde a mim, vós todos que estais atribulados e oprimidos, e eu vos aliviarei”.(129) Os templos sejam em verdade a casa de Deus, na qual quem entra para pedir favores se alegre de tudo conseguir (130) e alcance a consolação celeste.
123. Somente assim poderá acontecer que toda a família humana se pacifique na ordem e, com inteligência e coração concordes, cante o hino da esperança e do amor: “Bom Pastor, pão verdadeiro – ó Jesus, compadece-te de nós – apascenta-nos, guarda-nos, – faze-nos contemplar a felicidade na terra dos vivos”.(131)

 

TERCEIRA PARTE

O OFÍCIO DIVINO E O ANO LITÚRGICO 


I. O ofício divino

124. O ideal da vida cristã consiste em se unir cada um intimamente a Deus. Por isso, o culto que a Igreja rende ao Eterno e que se sintetiza no sacrifício eucarístico e no uso dos sacramentos é ordenado e disposto, de modo que, com o ofício divino, se estenda a todas as horas do dia, às semanas, a todo o curso do ano, a todos os tempos e a todas as condições da vida humana.
125. Tendo o divino Mestre recomendado: “É necessário rezar sempre, sem esmorecer”,(132) a Igreja, obedecendo fielmente a essa recomendação, não cessa de rezar e exortar-nos com o apóstolo das gentes: “Por seu intermédio (de Jesus) ofereçamos sempre a Deus o sacrifício de louvor”.(133)
126. A oração pública e coletiva endereçada a Deus por todos juntos, realizava-se na antiguidade somente em certos dias e outros momentos do dia. Contudo rezava-se não só nas reuniões públicas, mas ainda nas casas particulares e, às vezes, com os vizinhos e amigos. Bem cedo, porém, nas várias partes da cristandade, introduziu-se o uso de reservar à oração tempos particulares, por exemplo, a última hora do dia, quando o sol se esconde e se acende o lampadário; ou à primeira hora, quando termina a noite, isto é, depois do canto do galo e ao surgir do sol. Outros momentos do dia são indicados como mais próprios para a oração pela Sagrada Escritura, pelo costume tradicional hebráico e práticas cotidianas. Segundo os Atos dos Apóstolos, os discípulos de Jesus Cristo reuniam-se para orar na terceira hora, quando “ficaram todos repletos do Espírito Santo” ;(134) o príncipe dos apóstolos, antes de tomar alimento, “subiu à parte superior da casa para rezar por volta da hora sexta”;(135) Pedro e João “subiam ao templo para a oração na hora nona”; (136) e Paulo e Silas “louvavam a Deus à meia noite”.(137)
127. Essas várias orações especialmente por iniciativa e obra dos monges e dos ascetas, aperfeiçoaram-se cada dia mais, e pouco a pouco foram introduzidas no uso da sagrada liturgia por autoridade da Igreja.
128. O Ofício divino é, pois, a oração do corpo místico de Cristo, dedicada a Deus em nome de todos os cristãos e em seu beneficio, feita pelos sacerdotes, por outros ministros da Igreja e pelos religiosos delegados da própria Igreja para isso.
129. Qual deva ser o caráter e eficácia desse louvor divino, deduz-se das palavras que a Igreja sugere dizer antes de iniciar-se a oração do Ofício, prescrevendo que sejam recitadas “digna, atenta e devotamente”.
130. Assumindo a natureza humana, o Verbo de Deus introduziu no exílio terreno o hino que se canta no céu por toda a eternidade. Une a si toda a comunidade humana e a associa no canto deste hino de louvores. Confessemos com humildade que “não sabemos o que devemos convenientemente pedir, mas o próprio Espírito reza por nós com gemidos inenarráveis”. (138) E ainda Cristo, por meio do seu Espírito, invoca em nós o Pai. “Deus não poderia fazer aos homens um dom maior… reza (Jesus) por nós como nosso sacerdote; reza em nós como nossa cabeça; é invocado por nós como nosso Deus… reconheçamos, pois, as nossas vozes nele e a sua voz em nós… Rezamos a ele como a Deus, ele reza como servo: lá o Criador, aqui um ser criado, enquanto, sem sofrer mudança, tomou uma natureza mutável, fazendo de nós um só homem com ele: cabeça e corpo”.(139)
131. A excelsa dignidade dessa oração da Igreja deve corresponder a intensa devoção da nossa alma e, visto que a voz do orante repete os poemas escritos por inspiração do Espírito Santo, que proclamam e exaltam a perfeitíssima grandeza de Deus, é ainda necessário que a essa voz se junte o movimento interior do nosso espírito para fazer nossos aqueles mesmos sentimentos com os quais nos elevamos ao céu, adoramos a santíssima Trindade e lhe rendemos os devidos louvores e ações de graças: “Devemos salmodiar de modo que a nossa mente concorde com a nossa voz”. (140) Não se trata, pois, de uma recitação somente, ou de um canto que, embora perfeitíssimo segundo as leis da arte musical e as normas dos sagrados ritos, chegue apenas ao ouvido; mas sobretudo de uma elevação da nossa mente e da nossa alma a Deus para que nos consagremos, nós e todas as nossas ações, a ele, unidos com Jesus Cristo.
132. Disso depende certamente, em não pequena parte, a eficácia das orações, as quais, se não se dirigem ao próprio Verbo feito homem, concluem com estas palavras: “Por nosso Senhor Jesus Cristo” que, mediador entre nós e Deus, mostra ao Pai celeste os seus estigmas gloriosos, “sempre viva para interceder por nós”.(141)
133. Os salmos, como todos sabem, constituem parte principal do Oficio divino. Eles abrangem todo o curso do dia e lhe dão um contato e um ornamento de santidade. Cassiodoro disse belamente a propósito dos salmos distribuídos no Oficio divino do seu tempo: “Eles… com júbilo matutino nos tornam favorável o dia que está para começar, santificam a primeira hora do dia, consagram a terceira hora, alegram a sexta na fração do pão, assinalam, à nona, o fim do jejum, concluem o término do dia e impedem o nosso espírito de obscurecer-se ao avizinhar-se a noite”.(142)
134. Eles lembram as verdades reveladas por Deus ao povo eleito, às vezes terríveis, às vezes impregnadas de suavíssima doçura; repetem e acendem a esperança no Libertador prometido que outrora era animada com o canto em torno da lareira doméstica e na própria majestade do templo; põem em maravilhosa luz a profetizada glória de Jesus Cristo e o seu sumo e eterno poder, a sua vinda e o seu aniquilamento neste exílio terreno, a sua dignidade real e o seu poder sacerdotal, as suas benéficas fadigas e o seu sangue derramado pela nossa redenção. Exprimem igualmente a alegria das nossas almas, a tristeza, a esperança, o temor, a correspondência do amor e o abandono a Deus qual mística ascensão para os divinos tabernáculos.
135. “O salmo… é a bênção do povo, o louvor de Deus, o elogio do povo, o aplauso de todos, a linguagem geral, a voz da Igreja, a harmoniosa confissão de fé, o pleno devotamento à autoridade, a alegria da liberdade, o grito de entusiasmo, o eco da alegria.”(143)
136. Na antiguidade, a assistência dos fiéis a essas orações do Ofício era maior; mas gradativamente diminuiu como dissemos; e como acabamos de dizer, a sua recitação atualmente é reservada ao clero e aos religiosos. Em rigor de lei, nada é prescrito aos leigos nesta matéria, mas é muito de desejar que eles tomem parte ativa no canto ou na recitação do Oficio de Vésperas nos dias festivos, na própria paróquia. Recomendamos vivamente, veneráveis irmãos, a vós e aos vossos féis que não cesse este piedoso hábito e que, se possível, se ponha em vigor onde tiver desaparecido. Isso acontecerá certamente com frutos salutares se as Vésperas forem cantadas não só digna e decorosamente mas de maneira que nutra suavemente de vários modos a piedade dos fiéis. Seja sagrada a observância dos dias festivos que devem ser dedicados e consagrados a Deus de modo particular; e; sobretudo, do domingo, que os apóstolos, instruídos pelo Espírito Santo, substituíram ao sábado. Se foi ordenado aos judeus: “Trabalhareis durante seis dias; no sétimo dia que é sábado, repouso santo do Senhor, quem trabalhar neste dia será condenado à morte”;(144) como não terão a morte espiritual aqueles cristãos que fazem obra servil nos dias festivos e durante o repouso festivo não se dedicam à piedade nem à religião, mas se abandonam demasiadamente aos atrativos deste século? O domingo e os dias festivos devem ser consagrados ao culto divino com o qual se adora a Deus e a alma se nutre do alimento celeste; e se bem que a Igreja prescreva somente que os fiéis devam abster-se do trabalho servil e devam assistir ao sacrifício eucarístico, e não dê nenhum preceito para o culto vespertino, note-se que, além dos preceitos existem também suas insistentes recomendações e desejos, o que ainda mais é exigido pela necessidade que todos têm de tornar propício o Senhor para impetrar benefícios. Contrista-se profundamente nossa alma ao ver como em nossos tempos o povo cristão passa a tarde do dia festivo: enchem-se os lugares de espetáculos públicos e de jogos, enquanto as igrejas são menos freqüentadas do que conviria. Mas é necessário, sem dúvida, que todos vão aos nossos templos para ser instruídos na verdade da fé “católica, para cantar os louvores de Deus, para serem enriquecidos pelo sacerdote com a bênção eucarística e munidos do auxílio celeste contra a adversidade da vida presente. Procurem todos aprender as fórmulas que se cantam nas Vésperas e penetrar-lhes o íntimo sentido; sob o influxo dessas orações experimentarão aquilo que santo Agostinho afirmava de si mesmo: “Quanto chorei entre hinos e cânticos, vivamente comovido pelo canto suave da tua Igreja! Aquelas vozes ressoavam nos meus ouvidos, instilavam a verdade no meu coração, em mim ardiam sentimentos de devoção, e as lágrimas corriam, fazendo-me bem”.(145)


II. Ciclo dos mistérios do ano litúrgico

137. Durante todo o correr do ano a celebração do sacrifício eucarístico e o Oficio divino se desenvolvem sobretudo em torno da pessoa de Jesus Cristo e se organizam de modo tão harmonioso e adequado que faz dominar o nosso Salvador nos seus mistérios de humilhação, de redenção e de triunfo.
138. Evocando esses mistérios de Jesus Cristo, a sagrada liturgia visa a fazer deles participar todos os crentes de modo que a divina Cabeça do corpo místico viva na plenitude da sua santidade nos membros. Sejam as almas dos cristãos como altares nos quais se repetem e se reavivam as várias fases do sacrifício que o sumo Sacerdote imola; isto é, as dores e as lágrimas que lavam e expiam os pecados; a oração dirigida a Deus que se eleva até o céu; a própria imolação feita com ânimo pronto, generoso e solícito e, enfim, a íntima união com a qual nos abandonamos, nós e nossas coisas a Deus e nele repousamos “sendo o essencial da religião imitar aquele que adoras”. (146)
139. Conforme esses modos e motivos com os quais a liturgia propõe à nossa meditação em tempos fixos a vida de Jesus Cristo, a Igreja nos mostra os exemplos que devemos imitar e os tesouros de santidade que fazemos nossos, porque é necessário crer com a mente aquilo que se canta com a boca, e traduzir na prática dos costumes particulares e públicos o que se crê com a mente.
140. Com efeito, no tempo do advento, excita em nós a consciência dos pecados miseramente cometidos; e nos exorta a fim de que, refreando os desejos com a mortificação voluntária do corpo, nos recolhamos em pia meditação e sejamos impelidos pelo desejo de voltar a Deus que, só ele, pode com a sua graça libertar-nos da mancha dos pecados e dos males que nos afligem.
141. Na ocorrência do Natal do Redentor parece quase reconduzir-nos à gruta de Belém para que aí aprendamos que é absolutamente necessário nascer de novo e reformar-nos radicalmente, o que só é possível quando nos unimos íntima e vitalmente ao Verbo de Deus feito homem e nos tornamos participantes da sua divina natureza à qual fomos elevados.
142. Com a solenidade da Epifania, recordando a vocação das gentes à fé cristã, quer que agradeçamos cada dia ao Senhor por tão grande benefício, desejemos com grande fé o Deus vivo, compreendamos com devoção e profundamente as coisas sobrenaturais e amemos o silêncio e a meditação para poder facilmente compreender e conseguir os dons celestes.
143. Nos dias da Septuagésima e da Quaresma, a Igreja, nossa mãe, multiplica os seus cuidados para que diligencie cada qual por se compenetrar da sua miséria, ativamente se incite à emenda dos costumes, e deteste de modo particular os pecados, suprimindo-os com a oração e a penitência, já que a assídua oração e a penitência dos pecados cometidos nos obtêm o auxílio divino sem o qual é inútil e estéril toda obra nossa. No tempo sagrado em que a liturgia nos propõe as atrozes dores de Jesus Cristo, a Igreja nos convida ao Calvário, a seguir as pegadas sanguinolentas do divino Redentor a fim de que de bom grado carreguemos a cruz com ele, tenhamos em nós os mesmos sentimentos de expiação e de propiciação e juntos morramos todos com ele.
144. Na solenidade pascal, que comemora o triunfo de Cristo, sente-se a nossa alma penetrada de íntima alegria, e devemos oportunamente pensar que também nós, junto com o Redentor, surgiremos, de uma vida fria e inerte para uma vida mais santa e fervorosa, a Deus oferecendo-nos todos, com generosidade e esquecendo-nos desta mísera terra para só aspirar ao céu: “Se ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas supernas, aspirai às coisas do alto”.(147)
145. No tempo de Pentecostes, finalmente, exorta nossa Igreja, com os seus preceitos e a sua obra, a oferecer-nos docilmente à ação do Espírito Santo, o qual quer acender em nossos corações a divina caridade para progredirmos na virtude com maior empenho, e assim nos santificar, como são santos Cristo Senhor e o seu Pai Celeste.
146. Todo o ano litúrgico, assim, pode dizer-se um magnífico hino de louvor que a família cristã dirige ao Pai celeste por meio de Jesus, seu eterno mediador; mas requer de nós ainda um cuidado diligente e bem ordenado para conhecer e louvar sempre mais o nosso Redentor; um esforço intenso e eficaz, um adestramento incansável para imitar os seus mistérios, entrar voluntariamente no caminho de suas dores, e participar, finalmente, de sua glória e eterna beatitude.
147. De quanto foi exposto aparece claramente, veneráveis irmãos, quanto estejam longe do verdadeiro e genuíno conceito da liturgia escritores modernos, que, enganados por uma pretensa disciplina mística mais alta, ousam afirmar que não nos devemos concentrar no Cristo histórico mas no Cristo “pneumático e glorificado”; e não duvidam asseverar que na piedade dos fiéis se tenha verificado certa mudança, pela qual Cristo foi como que destronado com o apegamento de Cristo glorificado que vive e reina nos séculos dos séculos, assentado à direita do Pai, enquanto em seu lugar foi colocado o Cristo da vida terrena. Alguns, por isso, chegam ao ponto de querer tirar das Igrejas as imagens do divino Redentor que sofre na cruz.
148. Mas essas falsas opiniões são de todo contrárias à sagrada doutrina tradicional. “Crê em Cristo nascido na carne – diz santo Agostinho – e chegarás a Cristo nascido de Deus, Deus de Deus”.(148) A sagrada liturgia, ademais, nos propõe todo o Cristo, nos vários aspectos de sua vida; isto é, Cristo que é Verbo do Eterno Pai, que nasce da virgem Mãe de Deus, que nos ensina a verdade, que cura os enfermos, que consola os aflitos, que sofre, que morre; que, enfim, ressurge triunfante da morte; que, reinando na glória do céu, nos envia o Espírito Paráclito e vive sempre na sua Igreja: “Jesus Cristo ontem e hoje: ele por todos os séculos”. (149) E, além disso, não no-lo apresenta somente como um exemplo a imitar mas ainda como um mestre a ouvir, um pastor a seguir, como mediador da nossa salvação, princípio da nossa santidade e Cabeça mística de que somos membros, vivendo da sua própria vida.
149. E assim como as suas acerbas dores constituem o mistério principal de que provém a nossa salvação, é conforme às exigências da fé católica, colocar isto na sua máxima luz, porque é como o centro do culto divino, por ser o sacrifício eucarístico a sua cotidiana representação e renovação, e estarem todos os sacramentos unidos com estreitíssimo vínculo à cruz.(150)
150. Assim o ano litúrgico, que a piedade da Igreja alimenta e acompanha, não é uma fria e inerte representação de fatos que pertencem ao passado, ou uma simples e nua evocação da realidade de outros tempos. É, antes, o próprio Cristo, que vive sempre na sua Igreja e que prossegue o caminho de imensa misericórdia por ele iniciado, piedosamente, nesta vida mortal, quando passou fazendo o bem!(151) com o fim de colocar as almas humanas em contato com os seus mistérios e fazê-las viver por eles, mistérios que estão perenemente presentes e operantes, não de modo incerto e nebuloso, de que falam alguns escritores recentes, mas porque, como nos ensina a doutrina católica e segundo a sentença dos doutores da Igreja, são exemplos ilustres de perfeição cristã e fonte de graça divina pelos méritos e intercessão do Redentor; e porque perduram em nós no seu efeito, sendo cada um deles, de modo consentâneo à própria índole, a causa da nossa salvação. Acresce que a pia Madre Igreja, enquanto propôs à nossa contemplação os mistérios de Cristo, invoca com as suas preces os dons sobrenaturais pelos quais os seus filhos se compenetram do espírito desses mistério por virtute de Cristo. Por influxo e virtude dele podemos, com a colaboração da nossa vontade, assimilar a força vital como ramos da árvore, como membros da cabeça, e progressiva e laboriosamente transformar-nos “segundo a medida da idade plena de Cristo”.(152)


III. As festas dos santos

151. No decurso do ano litúrgico relembram-se não só os mistérios de Jesus Cristo, mas ainda as festas dos santos, nas quais, se bem que se trate de uma ordem inferior e subordinada, a Igreja tem sempre a preocupação de propôr aos fiéis exemplos de santidade que os levem a adornar-se das mesmas virtudes do Divino Redentor. (152). É necessário, com efeito, que imitemos as virtudes dos santos, nas quais brilha, de modo vário, a própria virtude de Cristo, porque dele foram imitadores, visto que, em alguns fulgiu o zelo do apostolado; em outros se demonstrou a fortaleza dos nossos heróis até a efusão do sangue; em outros brilhou a constante vigilância na espera do Redentor; em outros resplandeceu o candor virginal da alma e a modesta doçura da humildade cristã; em todos arde uma fervidíssima caridade para com Deus e para com o próximo. A liturgia põe diante de nossos olhos todos esses belos ornamentos de santidade, para que salutarmente os olhemos e para que “nós que gozamos dos seus méritos sejamos inflamados pelos seus exemplos”. (153) É necessário, pois, conservar “a inocência na simplicidade”, a concórdia na caridade, a modéstia na humildade, a diligência no governo, a atenção em ajudar o que sofre, a misericórdia em cuidar dos pobres, a constância em defender a verdade, a justiça na severidade da disciplina, para que não falte em nós nenhuma de todas as virtudes que nos foram propostas para exemplo. Essas são as pegadas que os santos, na sua volta à pátria nos deixaram, para, palmilhando os seus caminhos, podermos segui-los na bem-aventurança… (154) E para salutarmente impressionar também os nossos sentidos, quer a Igreja que em nossos templos estejam expostas as imagens dos santos, sempre, porém, com o mesmo fim, isto é, que “imitemos as virtudes daqueles cujas imagens veneramos”.(155)
153. Mas há ainda outro motivo no culto do povo cristão aos santos: o de implorar a sua ajuda, e o de “ser amparados pelo patrocínio daqueles em cujo louvor nos deleitamos”. (156) Disso facilmente se deduz o porquê das numerosas fórmulas de oração que a Igreja nas propõe para invocar a proteção dos santos.
154. Entre os santos há um culto proeminente a Maria virgem Mãe de Deus. A sua vida, pela missão comada por Deus, está estreitamente inserida nos mistérios de Jesus Cristo e ninguém, certamente, mais do que ela, seguiu tão de perto e com maior eficácia, as pegadas do Verbo encarnado, ninguém goza de maior graça e poder junto do coração sacratíssimo do Filho de Deus e, através do Filho, junto do Pai celeste ela é mais santa do que os querubins e os serafins e, sem nenhuma comparação, mais gloriosa do que todos os outros santos, porque é “cheia de graça”, (157 ) Mãe de Deus, e por nos haver dado, com o seu parto feliz, o Redentor. A ela, que é “mãe de misericórdia, vida, doçura e esperança nossa” recorramos todos nós “gemendo e chorando neste vale de lágrimas”.(158) À sua proteção, entreguemo-nos confiantes, nós e todas as nossas coisas. Ela se tornou nossa mãe quando o divino Redentor cumpria o sacrifício de si mesmo, e por isso, ainda por esse título, somos seus filhos. Ela nos ensina todas as virtudes, dá-nos seu Filho e, com ele, todos os auxílios que nos são necessários, porque Deus “quis que tudo nos viesse por meio de Maria”.(159)
155. Por esse caminho litúrgico que nos é, cada ano, aberto de novo, sob a ação santificadora da Igreja, confortados com os auxílios e os exemplos dos santos, sobretudo da imaculada virgem Maria, “aproximemo-nos com sincero coração, com plenitude de fé, purificado o coração da consciência de culpa e lavado o corpo com água pura”, (160) do “grande Sacerdote”,(161) para viver e sentir com ele e penetrar por seu intermédio “até além do véu” (162) e aí honrar o Pai celeste por toda a eternidade.
156. Tal é a essência e a razão de ser da sagrada liturgia. Ela cuida do sacrifício, dos sacramentos e do louvor a Deus; da união das nossas almas com Cristo e da santificação por meio do divino Redentor, afim de ser honrado Cristo e, por ele e nele, a Santíssima Trindade. Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.
QUARTA PARTE 
DIRETRIZES PASTORAIS


I.. Não se descuidem as outras formas de piedade 

157. Para afastar da Igreja os erros e os exageros de que acima falamos e para que possam os fiéis, guiados por mais seguras normas, praticar o apostolado litúrgico com abundantes frutos, achamos oportuno, veneráveis irmãos, acrescentar alguma coisa para a prática da doutrina exposta.
158. Tratando da genuína piedade, afirmamos que entre a liturgia e os outros atos de religião – desde que sejam retamente ordenados e tendam ao justo fim – não pode haver verdadeiro contraste; há, até, alguns exercícios de piedade que a Igreja recomenda grandemente ao clero e aos religiosos.
159. Ora, desejamos que também o povo cristão não fique alheio destes exercícios. Estes são – para falar apenas dos principais – a meditação de assuntos espirituais, o exame de consciência, os retiros espirituais, instituídos para a reflexão mais intensa das verdades eternas, a visita ao santíssimo sacramento e as orações particulares em honra da bem-aventurada virgem Maria, entre as quais excele, como todos sabem, o rosário.(163)
160. A essas múltiplas formas de piedade não pode ser estranha a inspiração e a ação do Espírito Santo; elas, com efeito – se bem que de várias maneiras – visam todas a voltar e dirigir para Deus as nossas almas, porque as purificam dos pecados, as dispõem à conquista da virtude e as estimulam à verdadeira piedade, habituando-as à meditação das verdades eternas, e tornando-as mais capazes da contemplação dos mistérios da natureza humana e divina de Cristo. Além disso, nutrindo intensamente nos fiéis a vida espiritual, preparam-nos para participar das sagradas funções com fruto maior, e evitam o perigo de se reduzirem as orações litúrgicas a um ritualismo vão.
161. Não vos canseis, pois, veneráveis irmãos, no vosso zelo pastoral, recomendando e encorajando esses exercícios de piedade, dos quais brotam sem dúvida para o povo que vos foi confiado frutos salutares. Sobretudo, não permitais – como alguns pretendem, ou com a desculpa de renovação da liturgia, ou falando com leviandade de uma eficácia e dignidade exclusivas dos ritos litúrgicos – que as Igrejas sejam fechadas durante as horas não destinadas às funções públicas, como já acontece em algumas regiões; que a adoração e a visita ao santíssimo sacramento sejam menosprezadas; que se desaconselhe a confissão dos pecados feita com o fim único de devoção; que se desleixe, especialmente entre a juventude, o culto da virgem Mãe de Deus, que, no dizer dos santos, é sinal de predestinação. São esses frutos envenenados, sumamente nocivos à piedade cristã, que repontam de ramos infectos de uma árvore sã; é necessário, por isso, extirpá-los, para que a seiva da árvore possa nutrir somente frutos agradáveis e ótimos.
162. Visto que as opiniões manifestadas por alguns a propósito da confissão freqüente são de todo alheias ao Espírito de Cristo e de sua esposa imaculada, e verdadeiramente funestas para a vida espiritual, recordamos o que a propósito escrevemos, com pesar, na encíclica “Mystici Corporis“; e insistimos de novo para que proponhais à séria meditação e à docil atuação dos vossos rebanhos e especialmente dos candidatos ao sacerdócio e do jovem clero, quanto ali vos dissemos em graves palavras.
163. Zelai, pois, de modo particular, para que muitíssimos, não só do clero mas ainda do laicato, e especialmente os pertencentes aos sodalícios religiosos e às fileiras da Ação católica, tomem parte nos retiros mensais e nos exercícios espirituais realizados em determinados dias para incrementar a piedade. Como dissemos acima, esses exercícios espirituais são utilíssimos e até necessários, para instilar nas almas a genuína piedade, e para formá-las à santidade, de modo que possam haurir da sagrada liturgia benefícios mais eficazes e abundantes.
164. Quanto aos vários modos sob os quais se costuma praticar esses exercícios, fique bem conhecido e claro a todos, que na Igreja terrena, como na celeste, há “muitas moradas”; (164) e que a ascética não pode ser monopólio de ninguém. Um é o Espírito, o qual, porém, “sopra onde quer”;(165) e com diversos dons e por diversas vias dirige as almas por ele iluminadas à consecução da santidade. A sua liberdade e a ação sobrenatural do Espírito Santo nelas seja coisa sacrossanta, que a ninguém é lícito, a nenhum título, perturbar e conculcar.
165. É sabido, entretanto, que os exercícios espirituais de santo Inácio foram plenamente aprovados e insistentemente recomendados pelos nossos predecessores por causa de sua admirável eficácia; e nós, também, pela mesma razão, os aprovamos e recomendamos, como presentemente com prazer o tornamos a fazer.
166. É absolutamente necessário, porém, que a inspiração a seguir e praticar determinados exercícios de piedade, venha do Pai das luzes, do qual provém todo bem, e todo dom perfeito;(166) e disso será índice a eficácia com a qual servirão para que o culto divino seja sempre mais amado e amplamente promovido, e os fiéis sejam solicitados por um mais intenso desejo à participação dos sacramentos e à devida honra e respeito de todas as coisas sagradas. Se eles, ao contrário, se transformassem em obstáculo ou se revelassem em contraste com os princípios e normas do culto divino, então sem dúvida se deveria tê-los como não ordenados por pensamento reto, nem guiados por zelo iluminado.
167. Além disso, há outros exercícios de piedade que, se bem não pertençam a rigor e de direito à sagrada liturgia, se revestem de particular dignidade e importância, de modo que são tidos por insertos no quadro litúrgico, e gozam de repetidas aprovações e louvores desta Sé Apostólica e dos bispos. Entre esses se devem enumerar as orações que se costuma fazer durante o mês de maio em honra da virgem Mãe de Deus, ou durante o mês de junho em honra do sacratíssimo coração de Jesus, os tríduos e novenas, a “Via sacra” e outros semelhantes.
168. Essas piedosas práticas, que exercitam o povo cristão a uma assídua freqüência do sacramento da penitência e a uma devota participação no sacrifício eucarístico e na mesa divina, como também à meditação dos mistérios da nossa Redenção e à imitação dos grandes exemplos dos santos, por isso mesmo contribuem com fruto salutar para a nossa participação no culto litúrgico.
169. Por isso faria obra perniciosa e de todo errônea quem ousasse temerariamente assumir a reforma desses exercícios de piedade, para enquadrá-los apenas nos esquemas litúrgicos. É necessário, todavia, que o espírito da sagrada liturgia e os seus preceitos influam beneficamente neles, para evitar que aí se introduza algo de inepto ou de indigno ao decoro da casa de Deus, ou seja em detrimento das sagradas funções e contrário à sã piedade.
170. Cuidai, pois, veneráveis irmãos, para que essa pura e genuína piedade prospere sob os vossos olhos, e floresça sempre mais. Não vos canseis, sobretudo, de inculcar a cada um que a vida cristã não consiste na multiplicidade e variedade das orações e dos exercícios de piedade, mas acima de tudo em que eles contribuam realmente para o progresso espiritual dos fiéis e ao incremento de toda a Igreja, porquanto o Pai Eterno “nos elegeu nele (Cristo) antes da fundação do mundo, para sermos santos e imaculados na sua presença”. (167) Devem, pois, tender todas as nossas orações e todas as nossas práticas devotas a dirigir todos os nossos recursos espirituais à realização desse supremo e nobilíssimo fim.


II. Espírito litúrgico e apostolado litúrgico 

171. Nós vos exortamos instantemente, veneráveis irmãos, a que, desfeitos os erros e a falsidade, e proibido tudo o que está fora da verdade e da ordem, promovais as iniciativas que dão ao povo um mais profundo conhecimento da sagrada liturgia, de modo que ele possa mais adequada e mais facilmente participar dos ritos divinos, com disposição verdadeiramente cristã.
172. É necessário, antes de tudo, empenhar-vos por que todos obedeçam com a devida reverência e fé aos decretos publicados pelo concílio de Trento, pelos pontífices romanos, pela Congregação dos ritos, e a todas as disposições dos livros litúrgicos naquilo que respeita à ação externa do culto público.
173. Em todas as coisas da liturgia devem brilhar sobretudo estes três ornamentos de que fala o nosso predecessor Pio X: a santidade, que rejeita toda influência profana; a nobreza das imagens e das formas, às quais serve toda arte genuína e superior; a universalidade, enfim, a qual – conservando os legítimos usos e costumes regionais – exprime a unidade católica da Igreja.(168)
174. Desejamos e recomendamos calorosamente, ainda uma vez, o decoro dos sagrados edifícios e altares. Sinta-se cada um animado pela palavra divina: “O zelo de tua casa me devora”(169) e se empenhe segundo as suas forças para que tudo, quer nos sagrados edifícios, quer nas vestes e nas alfaias litúrgicas, ainda que não brilhe por excessiva riqueza e esplendor, seja, todavia, apropriado e limpo, estando tudo consagrado à divina Majestade. Se já reprovamos, acima, o modo não reto de proceder daqueles que, a pretexto de restaurar o antigo, querem excluir dos templos as imagens sagradas temos que é nossa obrigação repreender a piedade não bem formada daqueles que, nas Igrejas e em seus próprios altares, propõem à veneração, sem justo motivo, múltiplos simulacros e efígies; daqueles que expõem relíquias não reconhecidas pela legítima autoridade; daqueles, enfim, que insistem em coisas particulares e de pouca importância, enquanto descuram as principais e necessárias, e, assim, tornam ridícula a religião, e envilecem a gravidade do culto.
175. Lembramos ainda o decreto “sobre novas formas de culto e de devoção a não introduzir”,(170) cuja religiosa observância recomendamos à vossa vigilância.
176. Quanto à música, observem-se escrupulosamente as determinadas e claras normas emanadas desta Sé Apostólica. O canto gregoriano que a Igreja romana considera coisa sua, porque recebido da antiga tradição e guardado no correr dos séculos sob a sua cuidadosa tutela e que propõe aos fiéis como coisa também deles, prescrito como é de modo absoluto em algumas partes da liturgia,(171) não só acrescenta decoro e solenidade à celebração dos divinos mistérios, antes contribui extremamente até para aumentar a fé e a piedade dos assistentes. A esse propósito nossos predecessores de imortal memória, Pio X e Pio XI, estabeleceram – e nós de bom grado confirmamos com a nossa autoridade as disposições por eles dadas – que nos seminários e nos Institutos religiosos seja cultivado com estudo e diligência o canto gregoriano, e que, ao menos nas Igrejas mais importantes, sejam restauradas as antigas “Scholae cantorum“; como já foi feito com feliz resultado em não poucos lugares.(172)
177. Além disso, “para que os féis participem mais ativamente do culto divino, seja restaurado o canto gregoriano até no uso popular na parte que respeita ao povo. E urge verdadeiramente que os fiéis assistam às sagradas cerimônias não como espectadores mudos e estranhos, mas penetrados, intimamente, da beleza da liturgia… que alternem, segundo as normas prescritas, sua voz com a voz do sacerdote e dos cantores; se isso graças a Deus se verificar, então não acontecerá mais que o povo responda apenas com um leve e submisso murmúrio às orações comuns ditas em latim e em língua vulgar”.(173) A multidão que assiste atentamente ao sacrifício do altar, no qual nosso Salvador, junto com os seus filhos remidos pelo seu sangue, canta o epitalâmio da sua imensa caridade, certamente não poderá calar, pois “cantar é proprio de quem ama”,(174) e como já dizia o provérbio antigo: “Quem canta bem, reza duas vezes”. Assim, a Igreja militante, clero e povo juntos, une a sua voz aos cantos da Igreja triunfante e aos coros angélicos, e todos juntos cantam um magnífico e eterno hino de louvor à Santíssima Trindade, como está escrito: “Com os quais te imploramos que sejam ouvidas ainda as nossas vozes”.(175)
178. Não se pode, todavia, asseverar que a música e o canto moderno devam ser de todo excluídos do culto católico. Aliás, se nada têm de profano e de inconveniente à santidade do lugar e da ação sagrada, nem derivam de uma procura vã de efeitos extraordinários, certamente devemos abrir-lhes as portas de nossas Igrejas, podendo ambos contribuir não pouco para o esplendor dos ritos sagrados, para a elevação das mentes e, ao mesmo tempo, para a verdadeira devoção.
179. Nós vos exortamos ainda, veneráveis irmãos, a que tomeis cuidado em promover o canto religioso popular e a sua acurada execução feita com a dignidade conveniente, podendo isso estimular e aumentar a fé e a piedade das populações cristãs. Suba ao céu o canto uníssono e possante de nosso povo como o fragor das ondas do mar,(176) expressão canora e vibrante de um só coração e uma só alma, (177) como convém a irmãos e filhos de um mesmo Pai.(180). O que dissemos da música, se aplica às outras artes e especialmente à arquitetura, à escultura e à pintura. Não se devem desprezar e repudiar genericamente e por preconceitos as formas e imagens recentes, mais adaptadas aos novos materiais com os quais são hoje confeccionados; mas, evitando com sábio equilíbrio o excessivo realismo de uma parte e o exagerado simbolismo de outra, e tendo em conta as exigências da comunidade cristã, mais do que o juízo e o gosto pessoal dos artistas, é absolutamente necessário dar livre campo também à arte moderna, se esta serve com a devida reverência e a devida honra aos sagrados edifícios e ritos; de modo que ela possa unir a sua voz ao admirável cântico de glória que os gênios cantaram nos séculos passados a fé católica.

Não podemos deixar, porém, por dever de consciência, de deplorar e reprovar aquelas imagens e formas por alguns recentemente introduzidas, que parecem ser depravação e deformação da verdadeira arte e que, muitas vezes, repugnam abertamente ao decoro, à modéstia e à piedade cristã e ofendem, lamentavelmente, o genuíno sentimento religioso; elas devem ser mantidas absolutamente afastadas e postas fora das nossas igrejas como “em geral tudo que não está em harmonia com a santidade do lugar”.(178)
181. Fiéis às normas e decretos dos pontífices, cuidai diligentemente, veneráveis irmãos, de iluminar e dirigir a mente e a alma dos artistas, aos quais será confiado hoje o encargo de restaurar e reconstruir tantas Igrejas destruídas ou arruinadas pela violência da guerra; possam e queiram eles, inspirando-se na religião, encontrar os motivos mais dignos e adaptados às exigências do culto; assim, com efeito, felizmente acontecerá que as artes humanas, como vindas do céu, brilhem com luz serena, promovam sumamente a humana civilização e contribuam para a glória de Deus e a santificação das almas, pois que as artes são, em verdade, como armas para a religião, quando servem “como nobilíssimas servas do culto divino”.(179)
182. Mas há ainda uma coisa mais importante, veneráveis irmãos, que recomendamos de modo especial à vossa solicitude e ao vosso zelo apostólico. Tudo o que diz respeito ao culto religioso externo tem sua importância, mas urge sobretudo que os cristãos vivam a vida litúrgica e alimentem e fortaleçam seu espírito sobrenatural.
183. Providenciai, pois, alacremente, porque o jovem clero seja formado na inteligência das cerimônias sagradas, na compreensão de sua beleza e majestade, e aprenda diligentemente as rubricas, em harmonia com a sua formação ascética, teológica, jurídica e pastoral. E isso não somente por razões de cultura, não apenas para que o seminarista possa um dia cumprir os ritos da religião com a ordem, o decoro e a dignidade necessárias, mas sobretudo para que seja educado em íntima união com Cristo sacerdote e se torne um santo ministro de santidade.
184. Velai ainda de todo o modo para que, com os meios e subsídios que a vossa prudência julgar mais aptos, sejam o clero e o povo uma só mente e uma só alma; e, assim, o povo cristão participe ativamente da liturgia que se tornará em verdade a ação sagrada, pela qual o sacerdote que atende ao cuidado das almas em sua paróquia, unido com a assembléia do povo, renda ao Senhor o culto devido.
185. Para obter isso, será certamente útil que, piedosos meninos, bem instruídos sejam escolhidos entre todas as classes de fiéis, para que, com desinteresse e boa vontade, sirvam devota e assiduamente ao altar – encargo que deveria ser tido em grande consideração pelos pais, ainda que de alta condição social e cultura. Se esses jovens forem instruídos com o necessário cuidado e sob a vigilância de um sacerdote para que cumpram este seu ofício com reverência e constância, e em horas determinadas, tornar-se-á fácil o brotar entre eles de novas vocações sacerdotais; e não se queixará o clero de não encontrar – como infelizmente acontece por vezes até em regiões catolicíssimas – alguém que na celebração do augusto sacrifício lhe responda e o sirva.
186. Procurai, sobretudo, obter, com o vosso diligentíssimo zelo, que todos os fiéis assistam ao sacrifício eucarístico e dele recebam os mais abundantes frutos de salvação; exortai-os portanto assiduamente a dele participarem com devoção por todos aqueles modos legítimos dos quais falamos acima. O augusto sacrifício do altar é o ato fundamental do culto divino; é necessário, por isso, que ele seja a fonte, o centro da piedade cristã. Considerai que não tereis jamais suficientemente satisfeito ao vosso zelo apostólico senão quando virdes os vossos filhos aproximarem-se em grande número do celestial banquete que é “sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade”. (180)
187. Para que, pois, o povo cristão possa conseguir esses dons sobrenaturais, sempre com maior abundância, instrui-o com zelo por meio de pregações oportunas e, especialmente, com discursos e ciclos de conferências, com semanas de estudo e com outras manifestações semelhantes, a respeito dos tesouros de piedade contidos na sagrada liturgia. Para esse fim estarão certamente à vossa disposição os membros da Ação católica, sempre prontos a colaborar com a hierarquia em promover o reino de Jesus Cristo.
188. É absolutamente necessário, porém, que em tudo isso vigieis atentamente a fim de que, no campo do Senhor, não se introduza o inimigo para semear a cizânia no meio do trigo,(181) para que, em outras palavras, não se infiltrem no vosso rebanho os perniciosos e sutis erros de um falso “misticismo” e de um nocivo “quietismo” – erros por nós já condenados como sabeis(182) – e para que as almas não sejam seduzidas por um perigoso “humanismo”, nem se introduza uma falsa doutrina que altera a própria noção da fé, nem, enfim, um excessivo “arqueologismo” em matéria litúrgica. Cuidai com igual diligência por que não se difundam as falsas opiniões daqueles que erradamente crêem e ensinam que a natureza humana de Cristo glorificada esteja realmente e com a sua continua presença nos justificados, ou que uma graça única e idêntica junte Cristo com os membros do seu Corpo.
189. Não vos deixeis desanimar pelas dificuldades que nascem; jamais se desencoraje o vosso zelo pastoral. “Fazei soar a trombeta em Sião, convocai a assembléia, reuni o povo, santificai a Igreja, juntai os velhos, recolhei os meninos e os recém-nascidos” (183) e fazei por todos os meios que se encham em todos os lugares as Igrejas e os altares de cristãos, os quais, como membros vivos unidos à sua Cabeça divina, sejam revigorados pelas graças dos sacramentos, celebrem o augusto sacrifício com ele e por ele e dêem ao Eterno Pai os louvores devidos.
EPÍLOGO
190. Todas essas coisas, veneráveis irmãos, pretendíamos escrever-vos e o fazemos a fim de que os nossos e os vossos filhos compreendam melhor e mais estimem o preciosíssimo tesouro contido na sagrada liturgia – isto é, o sacrifício eucarístico que representa e renova o sacrifício da cruz, os sacramentos, rios de graça e de vida divina, e o hino de louvor que o céu e a terra elevam cada dia a Deus.
191. Seja-nos lícito esperar que estas nossas exortações excitem os tíbios e os recalcitrantes não somente a um estudo mais intenso e iluminado da liturgia, mas ainda a traduzir na prática da vida o seu espírito sobrenatural, como diz o apóstolo: “Não queirais extinguir o Espírito”.(184)
192. Àqueles que um zelo excessivo leva muitas vezes a dizer e a fazer coisas que nos pesa não poder aprovar,  repetimos a advertência de são Paulo: “Ponde tudo à prova; ficai com o que é bom”;(185) e os admoestamos com ânimo paterno a consentirem haurir o seu modo de pensar e de agir da doutrina cristã, conforme os preceitos da imaculada esposa de Jesus Cristo e mãe dos santos.
193. A todos, enfim, lembramos a necessidade de uma generosa e fel obediência aos pastores, aos quais compete o direito e incumbe o dever de regular toda a vida da Igreja, sobretudo a espiritual. “Obedecei aos vossos superiores e sede-lhes dóceis. Eles, com efeito, velam sobre as vossas almas, e disso prestarão contas. Assim poderão fazê-lo com alegria e não gemendo”.(186)
194. O Deus que adoramos, e que “não é Deus de discórdia mas de paz”(187), conceda, benigno a todos nós, participar neste exílio terreno, com uma só mente e um só coração, na sagrada liturgia, a qual seja como que preparação e prenúncio daquela celeste liturgia, com a qual, segundo confiamos, em companhia da excelsa Mãe de Deus e dulcíssima mãe nossa, cantaremos: “Àquele que se senta no trono e ao Cordeiro: louvor, honra e gloria por todos os séculos”.(188)

Com essa exultante esperança a vós todos e a cada um, veneráveis irmãos e aos rebanhos confiados à vossa vigilância, como penhor dos dons celestes, e atestado da nossa particular benevolência, concedemos com grandíssimo afeto a bênção apostólica.

Dado em Castel Gandolfo, junto de Roma, no dia 20 de novembro do ano de 1947, IX do nosso pontificado. 

 

PIO PP. XII

 


Notas

1. Tm 2, 5.

2. Cf. Hb 4,14.

3. Cf. Hb 9,14.

4. Cf. Ml 1,11.

5. Cf. Conc. Trid., sess. XXII, c.l.

6.  Cf. Ibid., c.2.

7. Carta. Encicl, Caritate Christi de 3 de maio do ano 1932.

8. Cf. Carta. Ap., Motu Proprio In cotidianis precibus do dia 24 de março do ano 1945.

9. 1Cor 10,17

10. S. Tomás, Summa Theol., II-II, q. 81, a. 1.

11. Cf.  Levítico.

12. Cf. Hb 10,1.

13. Jo 1,14.

14. Hb 10,5-7.

15. Hb 10,10.

16. Jo 1,9.

17. Hb 10,39.

18. Cf. 1Jo 2, 1.

19. Cf. 1Tm 3,15.

20. Cf. Bonif. IX, Ab origine mundi, do dia 7 de Outubro do ano 1391; Callist. III, Summus Pontifex, de 1 de janeiro do ano 1456; Pius II, Triumphans Pastor, de 22 de abril de 1459; Innoc. XI,  Triumphans Pastor, de 3 de outubro do ano 1678.

21. Ef 2,19-22.

:22. Mt 18,20.

23. At 2,42.

24. Cl 3,16.

25. S. Agostinho, Epist.130, ad Probam, 18.

.26. Missal Rom., Prefácio da Nativ.

27. I. Card. Bona, De divina psalmodia, c 19, § 3,1.

28. Missal Rom., Secreta da féria V depois do II Dom. de Quaresma.

29. Cf. Mc 7,6 e Is 29,13.

30. 1Cor 11, 28.

31. Missal Rom., Féria IV de Cinzas: oração depois da imposição das cinzas.

32. De praedestinatione sanctorum, 31.

33. Cf.  s. Tomás, Summa Theol., II-II, q. 82, a, 1.

34. Cf. 1Cor 3,23.

35. Hb 10,19-24.

36. Cf. 2Cor 6,1.

37.Cf. CIC, cân 125,126, 565, 571, 595,1367.

38. Col 3,11.

39. Cf. Gl 4,19.

40. Jo 20,21.

41. Lc 10, 16

42. Mc 16,15-16.

43. Pont. Rom., De ordinatione presbyteri, in manuum unctione.

44. Enchiridion, c. 3.

45. De gratia Dei “Indiculus”; Dz 246.

46. S. Agostinho, Epist.130, ad Probam, 18.

47. Cf. Const. Divini cultus, de 20 de dezembro do ano 1928.

48. Const. Immensa, do dia 22 de janeiro de 1588.

49. Cf. CIC, cân. 253.

50. Cf. CIC, cân.1257.

51. Cf. CIC, cân.1261.

52. Cf. Mt 28,20.

53. Cf. Pio VI, Const. Auctorem fidei, do dia 28 de agosto de 1794, nn. XXXI, XXXIV, XXXIX, LXII, LXVI, LXIX-LXXIV

54. Cf. Jo 21,15-17.

55. At 20,28,

56. Sl 109,4.

57. Jo 13,1.

58. Conc. Trid., Sess. XXII. c, 1.

59. Ibidem, c. 2.

60. Cf. s. Tomás, Summa Theol., III, q. 22, a. 4.

61. João Cris. In Joan. Hom., 86,4.

62. Rm 6,9.

63. Cf . Missal Rom., Prefácio.

64. Cf. Ibidem, Cânon.

65. Mc 14,23.

66. Missal Rom., Prefácio.

67. 1Jo 2,2 .

68. Missal Rom., Cânon.

69. S. Agostinho, De Trinit., 1. XIII, c.19.

70. Hb 5, 7.

71. Cf. Sess. XXII, c.1.

72. Cf. Hb 10,14.

73. S. Agostinho, Enarr. in Ps,147, n.16.

74. Gl 2,19-20.

75. Carta. Encicl. Mystici Corporis, do dia 29 de junho de 1943.

76. Missal Rom., Secreta do Dom. IX depois de Pentec.

77. Cf. Sess. XXII. c. 2 e cân. 4.

78. Cf. Gl 6,14.

79. Ml 1,11.

80. Fl 2,5.

81.Gl 2,19.

82. Cf. Conc. Trid. Sess., XXIII, c. 4.

83. Cf. s. Roberto Bellarm., De Missa, II, c 4.

84. De Sacro Altaris Mysterio, III, 6.

85. De Missa, I. cap. 27.

86. Missal Rom., Ordinário da Missa.

87. Ibidem, Cânon da Missa.

88. Missal Rom., Cânon da Missa.

92. Pontif. Rom., De Ordinatione presbyteri.

93. Ibidem, De altaris consecrat., Praefatio.

94. Cf. Conc. Trid. Sess. XXII, c. 5.

95. Gl ,19-20.

96. Cf. Serm. 272.

97. Cf. lCor 12,27.

98. Cf. Ef 5,30.

99. Cf. s. Roberto Bellarm., De Missa , II, c. 8

100. De Civ. Dei, 1. X. c. 6.

101. Missal Rom., Cânon da Missa.

102. Cf. 1Tm 2,5.

103. Carta Encicl. Certiores effecti, de 13 de novembro de 1742, § 1.

104. Conc. Trid. Sess. XXII, cân. 8.

105. Missal Rom., Coleta da Festa Corp. Christi.

106. 1Cor 11,24.

107. Sess. XXII, c. 6.

108. Carta. Encicl. Certiores effecti, de 13 de novembro de 1742, § 3.

109. Cf. Lc 14,23.

110. Cor 10,17.

111. Cf. S. Inácio. Mártir, Ad. Ephes., 20.

112. Missal Rom., Cânon da Missa.

113. Ef 5,20.

114. Missal Rom., Postcommunio do Domingo da Oitava da Ascensão.

115. Ibidem, Postcommunio do Domingo I depois de Pentec.

116. CIC, cân. 810

117. Lib . IV, cap.l2.

118. Dn 3,57.

119. Cf. Jo 16,23.

120. Missal Rom., Secreta da Missa da SS. Trindade.

121. Jo 15,4.

122. Conc. Trid., Sess. XIII, can. 1.

123. Conc. Constant. II, Anath. de trib. Capit., cân. 9 collat. Con. Efes. Anath. Cyrill, cân. 8. Cf. Conc. Trid. Sess. XIII, cân. 6; Pio VI, Const. Auctorem fidei n. LXI.

124. Cf. Enarr. in, Ps. 98, 9.

125. Ap 5,12; 7,10.

126. Cf. Conc. Trid., Sess., XIII, c. 5 e cân. 6.

127. In ad Cor., XXIV, 4.

128. Cf. 1Pd 1,19.

129. Mt 11,28.

130. Cf. Missal Rom., Coll. da Missa da Dedic. de uma Igreja.

131. Missal Rom., Seq. Lauda Sion na festa do Corpus Christi.

132. Lc 18, 1.

133. Hb 13,15.

134. Cf. At 2,1-15.

135.  At 10,9.

136. At 3,1.

137. At 16,25

138. Rm 8,26.

139. S. Agostinho, Enarr. in Ps. 85, n. 1.

140. S. Bento, Regula Monachorum, c. XIX.

141. Hb 7,25.

142. Explicatio in Psalterium, Prefácio; PL 70,10.

143. S. Ambrósio, Enarrat. in Ps. l, n. 9.

144. Ex 31,15.

145. Confess. I. IX, c. 6.

146. S. Agostinho, De Civ. Dei, 1. VIII, cap.l7.

147.  Col 3,1-2.

148. S. Agostinho, Enarr. in Ps.123, 2.

149. Hb 13,8.

150. S. To más, Summa Theol. III, q. 49 e q. 62, a. 5.

151. Cf. At 10, 38.

152. Ef 4,13.

153. Missal Rom., Coleta da III Missa pro plur. Martyr. extra T.P

154. S. Beda Vener., Hom. LXX na solenidade de todos os santos.

155. Missal Rom., Coleta da Missa de s. João Damasceno.

156. S. Bernardo, Sereno II in festo omnium Sanct.

157. Luc.1, 28.

158. “Salve Regina”.

159. S. Bernardo, In Nativ. B.M.V., 7.

160. Hb 10,22.

161. Hb10,21.

162. Hb 6, 19

163. Cf. CIC, cân.125.

164. Cf. Jo 14,2.

165. Jo 3,8.

166.  Cf.  Tg 1,17.

167. Ef 1,4.

168. Cf. Carta. Apost. Motu Proprio Tra le sollecitudini; de 22 de nov de 1903.

169. Sl 68,10; Jo 2,17.

170. Congr. S. Oficio: Decretum de 26 de maio de 1937.

171. Cf. Pio X, Carta. Apost. Motu Proprio Tra le sollecitudini.

172. Cf. Pio X, loc. cit.; Pio XI, Const. Divini Cultus, II, V.

173. Pio XI, Const. Divini Cultus, IX.

174. S. Agostinho, Serm. 336, n. 1.

175. Missal Rom., Prefácio.

176. Cf. s. Ambrosio, Hexameron, III, 5, 23.

177.  Cf. At 4,32.

178. CIC, can.1178.

179. Pio XI, Const. Divini Cultus.

180. Cf. s. Agostinho, Tract. XXVI in Joan., 13.

181. Cf.  Cf. Mt 13,24-25.

182. Carta. Encicl. Mystici Corporis.

183. Jl 2,5-16.

184. 1Ts 5,19.

185. 1Ts 5,21.

186. Hb 13,17.

187. 1Cor 14,33.

188.  Ap 5,13.

 

Papa Pio XIIMediator Dei
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Online, 17/03/2008 às 13:29h .

Mortalium animos – Contra o falso ecumenismo

Postado por Admin.Capela em 20/mar/2008 - Sem Comentários

Papa Pio XI

 

Sobre a promoção da verdadeira unidade de Religião

(Apud Acta Apostolicae Sedis, anno XX, vol. XX, n.1, p.5, 10/01/1928)

Carta Encíclica aos Rev.mos Senhores Padres Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e outros Ordinários dos lugares em paz e união com a Sé Apostólica

 

 

 

Veneráveis irmãos,
Saúde e Bênção Apostólica.

1. Ânsia universal de paz e fraternidade

Talvez jamais em uma outra época os espíritos dos mortais foram tomados por um tão grande desejo daquela fraterna amizade, pela qual em razão da unidade e identidade de natureza – somos estreitados e unidos entre nós, amizade esta que deve ser robustecida e orientada para o bem comum da sociedade humana, quanto vemos ter acontecido nestes nossos tempos.

Pois, embora as nações ainda não usufruam plenamente dos benefícios da paz, antes, pelo contrário, em alguns lugares, antigas e novas discórdias vão explodindo em sedições e em conflitos civis; como não é possível, entretanto, que as muitas controvérsias sobre a tranquilidade e a prosperidade dos povos sejam resolvidas sem que exista a concórdia quanto à ação e às obras dos que governam as Cidades e administram os seus negócios; compreende-se facilmente (tanto mais que já ninguém discorda da unidade do gênero humano) porque, estimulados por esta irmandade universal, também muitos desejam que os vários povos cada dia se unam mais estreitamente.

2. A Fraternidade na religião. Congressos ecumênicos

Entretanto, alguns lutam por realizar coisa não dissemelhante quanto à ordenação da Lei Nova trazida por Cristo, Nosso Senhor.

Pois, tendo como certo que rarissimamente se encontram homens privados de todo sentimento religioso, por isto, parece, passaram a Ter a esperança de que, sem dificuldade, ocorrerá que os povos, embora cada um sustente sentença diferente sobre as coisas divinas, concordarão fraternalmente na profissão de algumas doutrinas como que em um fundamento comum da vida espiritual.

Por isto costumam realizar por si mesmos convenções, assembléias e pregações, com não medíocre frequência de ouvintes e para elas convocam, para debates, promiscuamente, a todos: pagãos de todas as espécies, fiéis de Cristo, os que infelizmente se afastaram de Cristo e os que obstinada e pertinazmente contradizem à sua natureza divina e à sua missão.

3. Os Católicos não podem aprová-lo

Sem dúvida, estes esforços não podem, de nenhum modo, ser aprovados pelos católicos, pois eles se fundamentam na falsa opinião dos que juogam que quaisquer religiões são, mais ou menos, boas e louváveis, pois, embora não de uma única maneira, elas alargam e significam de modo igual aquele sentido ingênito e nativo em nós, pelo qual somos levados para Deus e reconhecemos obsequiosamente o seu império.

Erram e estão enganados, portanto, os que possuem esta opinião: pervertendo o conceito da verdadeira religião, eles repudiam-na e gradualmente inclinam-se para o chamado Naturalismo e para o Ateísmo. Daí segue-se claramente que quem concorda com os que pensam e empreendem tais coisas afasta-se inteiramente da religião divinamente revelada.

4. Outro erro. A união de todos os cristãos. Argumentos falazes

Entretanto, quando se trata de promover a unidade entre todos os cristãos, alguns são enganados mais facilmente por uma disfarçada aparência do que seja reto.

Acaso não é justo e de acordo com o dever – costumam repetir amiúde – que todos os que invocam o nome de Cristo se abstenham de recriminações mútuas e sejam finalmente unidos por mútua caradade?

Acaso alguém ousaria afirmar que ama a Cristo se, na medida de suas forças, não procura realizar as coisas que Ele desejou, ele que rogou ao Pai para que seus discípulos fossem “UM” (Jo 17,21)?

Acaso não quis o mesmo Cristo que seus discípulos fossem identificados por este como que sinal e fossem por ele distinguidos dos demais, a saber, se mutuamente se amassem: “Todos conhecerão que sois meus discípulos nisto: se tiverdes amor um pelo outro?” (Jo 13,35).

Oxalá todos os cristão fossem “UM”, acrescentam: eles poderiam repelir muito melhor a peste da impiedade que, cada dia mais, se alastra e se expande, e se ordena ao enfraquecimento do Evangelho.

5. Debaixo desses argumentos se oculta um erro gravíssimo

Os chamados “pancristãos” espalham e insuflam estas e outras coisas da mesma espécie. E eles estão tão longe de serem poucos e raros mas, ao contrário, cresceram em fileiras compactas e uniram-se em sociedades largamente difundidas, as quais, embora sobre coisas de fé cada um esteja imbuído de uma doutrina diferente, são, as mais das vezes, dirigidas por acatólicos.

Esta iniciativa é promovida de modo tão ativo que, de muitos modos, consegue para si a adesão dos cidadão e arrebata e alicia os espíritos, mesmo de muitos católicos, pela esperança de realizar uma união que parecia de acordo com os desejos da Santa Mãe, a Igreja, para Quem, realmente, nada é tão antigo quanto o reconvocar e o reconduzir os filhos desviados para o seu grêmio.

Na verdade, sob os atrativos e os afagos destas palavras oculta-se um gravíssimo erro pelo qual são totalmente destruídos os fundamentos da fé.

6. A verdadeira norma nesta matéria

Advertidos, pois, pela consciência do dever apostólico, para que não permitamos que o rebanho do Senhor seja envolvido pela nocividade destas falácias, apelamos, veneráveis irmãos, para o vosso empenho na precaução contra este mal. Confiamos que, pelas palavras e escritos de cada um de vós, poderemos atingir mais facilmente o povo, e que os princípios e argumentos, que a seguir proporemos, sejam entendidos por ele pois, por meio deles, os católicos devem saber o que devem pensar e praticar, dado que se trata de iniciativas que dizem respeitos a eles, para unir de qualquer maneira em um só corpo os que se denominam cristãos.

7. Só uma Religião pode ser verdadeira: a revelada por Deus

Fomos criados por Deus, Criador de todas as coisas, para este fim: conhecê-lO e serví-lO. O nosso Criador possui, portanto, pleno direito de ser servido.

Por certo, poderia Deus Ter estabelecido apenas uma lei da natureza para o governo do homem. Ele, ao criá-lo, gravou-a em seu espírito e poderia portanto, a partir daí, governar os seus novos atos pela providência ordinária dessa mesma lei. Mas, preferiu dar preceitos aos quais nós obedecêssemos e, no decurso dos tempos, desde os começos do gênero humano até a vinda e a pregação de Jesus Cristo, Ele próprio ensinou ao homem, naturalmente dotado de razão, os deveres que dele seriam exigidos para com o Criador: “Em muitos lugares e de muitos modos, antigamente, falou Deus aos nossos pais pelos profetas; ultimamente, nestes dias, falou-nos por seu Filho” (Heb 1,1 Seg).

Está, portanto, claro que a religião verdadeira não pode ser outra senão a que se funda na palavra revelada de Deus; começando a ser feita desde o princípio, essa revelação prosseguiu sob a Lei Antiga e o próprio crisot completou-a sob a Nova Lei.

Portanto, se Deus falou – e comprova-se pela fé histórica Ter ele realmente falado – não há quem não veja ser dever do homem acreditas, de modo absoluto, em deus que se revela e obedecer integralmente a Deus que impera. Mas, para a glória de Deus e para a nossa salvação, em relação a uma coisa e outra, o Filho Unigênito de Deus instituiu na terra a sua Igreja.

8. A única religião revelada é a Igreja Católica

Acreditamos, pois, que os que afirma serem cristão, não possam fazê-lo sem crer que uma Igreja, e uma só, foi fundada por Cristo. Mas, se se indaga, além disso, qual deva ser ela pela vontade do seu Autor, já não estão todos em consenso.

Assim, por exemplo, muitíssimos destes negam a necessidade da Igreja de Cristo ser visível e perceptível, pelo menos na medida em que deva aparecer como um corpo único de fiéis, concordes em uma só e mesma doutrina, sob um só magistério e um só regime. Mas, pelo contrário, julgam que a Igreja perceptível e visível é uma Federação de várias comunidades cristãs, embora aderentes, cada uma delas, a doutrinas opostas entre si.

Entretanto, cristo Senhor instituiu a sua Igreja como uma sociedade perfeita de natureza externa e perceptível pelos sentidos, a qual, nos tempos futuros, prosseguiria a obra da reparação do gênero humano pela regência de uma só cabeça (Mt 16,18 seg.; Lc 22,32; Jo 21,15-17), pelo magistério de uma voz viva (Mc 16,15) e pela dispensação dos sacramentos, fontes da graça celeste (Jo 3,5; 6,48-50; 20,22 seg.; cf. Mt 18,18; etc.). Por esse motivo, por comparações afirmou-a semelhante a um reino (Mt, 13), a uma casa (Mt 16,18), a um redil de ovelhas (Jo 10,16) e a um rebanho (Jo 21,15-17).

Esta Igreja, fundada de modo tão admirável, ao Lhe serem retirados o seu Fundador e os Apóstolos que por primeiro a propagaram, em razão da morte deles, não poderia cessar de existir e ser extinta, uma vez que Ela era aquela a quem, sem nenhuma discriminação quanto a lugares e a tempos, fora dado o preceito de conduzir todos os homens à salvação eterna: “Ide, pois, ensinai a todos os povos” (Mt 28,19).

Acaso faltaria à Igreja algo quanto à virtude e eficácia no cumprimento perene desse múnus, quando o próprio Cristo solenemente prometeu estar sempre presente a ela: “Eis que Eu estou convosco, todos os dias, até a consumação dos séculos?” (Mt 28,20).

Deste modo, não pode ocorrer que a Igreja de Cristo não exista hoje e em todo o tempo, e também que Ela não exista hoje e em todo o tempo, e também que Ela não exista como inteiramente a mesma que existiu à época dos Apóstolos. A não ser que desejemos afirmar que: Cristo Senhor ou não cumpriu o que propôs ou que errou ao afirmar que as portas do inferno jamais prevaleceriam contra Ela (Mt 16,18).

9. Um erro capital do movimento ecumênico na pretendida união das igrejas cristãs

Ocorre-nos dever esclarecer e afastar aqui certa opinião falsa, da qual parece depender toda esta questão e proceder essa múltipla ação e conspiração dos acatólicos que, como dissemos, trabalham pela união das igrejas cristãs.

Os autores desta opinião acostumaram-se a citar, quase que indefinidamente, a Cristo dizendo: “Para que todos sejam um”… “Haverá um só rebanho e um só Pastos”(Jo 27,21; 10,16). Fazem-no todavia de modo que, por essas palavras, queriam significar um desejo e uma prece de cristo ainda carente de seu efeito.

Pois opinam: a unidade de fé e de regime, distintivo da verdadeira e única Igreja de Cristo, quase nunca existiu até hoje e nem hoje existe; que ela pode, sem dúvida, ser desejada e talvez realizar-se alguma vez, por uma inclinação comum das vontades; mas que, entrementes, deve existir apenas uma fictícia unidade.

Acrescentam que a Igreja é, por si mesma, por natureza, dividida em partes, isto é, que ela consta de muitas igreja ou comunidades particulares, as quais, ainda separadas, embora possuam alguns capítulos comuns de doutrina, discordam todavia nos demais. Que cada uma delas possui os mesmos direitos, Que, no máximo, a Igreja foi única e una, da época apostólica até os primeiros concílios ecumênicos.

Assim, dizem, é necessários colocar de lado e afastar as controvérsias e as antiquíssimas variedade de sentenças que até hoje impedem a unidade do nome cristão e, quanto às outras doutrinas, elaborar e propor uma certa lei comum de crer, em cuja profissão de fé todos se conhecam e se sintam como irmãos, pois, se as múltiplas igrejas e comunidades forem unidas por um certo pacto, existiria já a condição para que os progessos da impiedade fossem futuramente impedidos de modo sólido e frutuoso.

Estas são, Veneráveis Irmãos, as afirmações comuns.

Existem, contudo, os que estabelecem e concedem que o chamado Protestantismo, de modo bastante inconsiderado, deixou de lado certos capítulos da fé e alguns ritos do culto exterior, sem dúvida gratos e úteis, que, pelo contrário, a Igreja Romana ainda conserva.

Mas, de imediato, acrescentam que esta mesma Igreja também agiu mal, corrompendo a religião primitiva por algumas doutrinas alheias e repugnantes ao Evangelho, propondo acréscimos para serem cridos: enumeram como o principal entre estes o que versa sobre o Primado de Jurisdição atribuído a Pedro e a seus Sucessores na Sé Romana.

Entre os que assim pensam, embora não sejam muitos, estão os que indulgentemente atribuem ao Pontífice Romano um primado de honra ou uma certa jurisdição e poder que, entretanto, julgam procedente não do direito divino, mas de certo consenso dos fiéis. Chegam outros ao ponto de, por seus conselhos, que diríeis serem furta-cores, quererem presidir o próprio Pontífice.

E se é possível encontrar muitos acatólicos pregando à boca cheia a união fraterna em Jesus Cristo, entretanto não encontrareis a nenhum deles em cujos pensamentos esteja a submissão e a obediência ao Vigário de Jesus Cristo enquanto docente ou enquanto governante.

Afirmam eles que tratariam de bom grado com a Igreja Romana, mas com igualdade de direitos, isto é, iguais com um igual. Mas, se pudessem fazê-lo, não parece existir dúvida de que agiriam com a intenção de que, por um pacto que talvez se ajustasse, não fossem coagidos a afastarem-se daquelas opiniões que são a causa pela qual ainda vagueiem e errem fora do único aprisco de Cristo.

10. A Igreja Católica não pode participar de semelhantes reuniões

Assim sendo, é manifestamente claro que a Santa Sé, não pode, de modo algum, participar de suas assembléias e que, aos católicos, de nenhum modo é lícito aprovar ou contribuir para estas iniciativas: se o fizerem concederão autoridade a uma falsa religião cristã, sobremaneira alheia à única Igreja de Cristo.

11. A verdade revelada não admite transações

Acaso poderemos tolera – o que seria bastante iníquo – , que a verdade e , em especial a revelada, seja diminuída através de pactuações?

No caso presente, trata-se da verdade revelada que deve ser defendida.

Se Jesus Cristo enviou os Apóstolos a todo o mundo, a todos os povos que deviam ser instruídos na fé evangélica e, para que não errassem em nada, quis que, anteriormente, lhes fosse ensinada toda a verdade pelo Espírito Santo, acaso esta doutrina dos Apóstolos faltou inteiramente ou foi alguma vez perturbada na Igreja em que o próprio Deus está presente como regente e guardião?

Se o nosso Redentor promulgou claramente o seu Evangelho não apenas para os tempos apostólicos, mas também para pertencer às futuras épocas, o objeto da fé pode tornar-se de tal modo obscuro e incerto que hoje seja necessários tolerar opiniões pelo menos contrárias entre si?

Se isto fosse verdade, dever-se-ia igualmente dizer que o Espírito Santo que desceu sobre os Apóstolos, que a perpétua permanência dele na Igreja e também que a própria pregação de Cristo já perderam, desde muitos séculos, toda a eficácia e utilidade: afirmar isto é, sem dúvida, blasfemo.

12. A Igreja Católica, depositária infalível da verdade

Quando o Filho /unigênito de Deus ordenou a seus enviados que ensinassem a todos os povos, vinculou então todos os homens pelo dever de crer nas coisas que lhes fossem anunciadas pela “testemunha pré-ordenadas por Deus” (At. 10,41). Entretanto, um e outro preceito de Cristo, o de ensinar e o de crer na consecução da salvação eterna, que não podem deixar de ser cumpridos, não poderiam ser entendidos a não ser que a Igreja proponha de modo íntegro e claro a doutrina evangélica e que, ao propô-la, seja imune a qualquer perigo de errar.

Afastam-se igualmente do caminho os que julgam que o depósito da verdade existe realmente na terra, mas que é necessário um trabalho difícil, com tão longos estudos e disputas para encontrá-lo e possuí-lo que a vida dos homens seja apenas suficiente para isso, com se Deus benigníssimo tivesse falado pelos profetas e pelo seu Unigênito para que apenas uns poucos, e estes mesmos já avançados em idade, aprendessem perfeitamente as coisas que por eles revelou, e não para que preceituasse uma doutrina de fé e de costumes pela qual, em todo o decurso de sua vida mortal, o homem fosse regido.

13. Sem fé, não há verdadeira caridade

Estes pancristãos, que empenham o seu espírito na união das igrejas, pareceriam seguir, por certo, o nobilíssimo conselho da caridade que deve ser promovida entre os cristãos. Mas, dado que a caridade se desvia em detrimento da fé, o que pode ser feito?

Ninguém ignora por certo que o próprio João, o Apóstolo da Caridade, que em seu Evangelho parece ter manifestado os segredos do Coração Sacratíssimo de Jesus e que permanentemente costumavas inculcar à memória dos seus o mandamento novo: “Amai-vos uns aos outros”, vetou inteiramente até mesmo manter relações com os que professavam de forma não íntegra e incorrupta a doutrina de Cristo: “Se alguém vem a vós e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem digais a ele uma saudação” (2 Jo. 10).

Pelo que, como a caridade se apóia na fé íntegra e sincera como que em um fundamento, então é necessário unir os discípulos de Cristo pela unidade de fé como no vínculo principal.

14. União irracional

Assim, de que vale excogitar no espírito uma certa Federação cristã, na qual ao ingressar ou então quando se tratar do objeto da fé, cada qual retenha a sua maneira de pensar e de sentir, embora ela seja repugnante às opiniões dos outros?

E de que modo pedirmos que participem de um só e mesmo Conselho homens que se distanciam por sentenças contrárias como, por exemplo, os que afirmam e os que negam ser a sagrada Tradição uma fonte genuína da Revelação Divina?

Como os que adoram a Cristo realmente presente na Santíssima Eucaristia, por aquela admirável conversão do pão e do vinho que se chama transubstanciação e os que afirmam que, somente pela fé ou por sinal e em virtude do Sacramento, aí está presente o Corpo de Cristo?

Como os que reconhecem nela a natureza do Sacrifício e a do Sacramento e os que dizem que ela não é senão a memória ou comemoração da Ceia do Senhor?

Como os que crêem ser bom e útil invocar súplice os Santos que reinam junto de Cristo – Maria, Mãe de Deus, em primeiro lugar – e tributar veneração às suas imagens e os que contestam que não pode ser admitido semelhante culto, por ser contrário à honra de Jesus Cristo, “único mediador de Deus e dos homens”? (1 Tim. 2,5).

15. Princípio até o indiferentismo e o modernismo

Não sabemos, pois, como por essa grande divergência de opiniões seja defendida o caminho para a realização da unidade da Igreja: ela não pode resultar senão de um só magistério, de uma só lei de crer, de uma só fé entre os cristãos. Sabemos, entretanto, gerar-se facilmente daí um degrau para a negligência com a religião ou o Indiferentismo e para o denominado Modernismo. os que foram miseravelmente infeccionados por ele defendem que não é absoluta, mas relativa a verdade revelada, isto é, de acordo com as múltiplas necessidades dos tempos e dos lugares e com as várias inclinações dos espíritos, uma vez que ela não estaria limitada por uma revelação imutável, mas seria tal que se adaptaria à vida dos homens.

Além disso, com relação às coisas que devem ser cridas, não é lícito utilizar-se, de modo algum, daquela discriminação que houveram por bem introduzir entre o que denominam capítulos fundamentais e capítulos não fundamentais da fé, como se uns devessem ser recebidos por todos, e, com relação aos outros, pudesse ser permitido o assentimento livre dos fiéis: a Virtude sobrenatural da fé possui como causa formal a autoridade de Deus revelante e não pode sofrer nenhuma distinção como esta.

Por isto, todos os que são verdadeiramente de Cristo consagram, por exemplo, ao mistério da Augusta Trindade a mesma fé que possuem em relação dogma da Mãe de Deus concebida sem a mancha original e não possuem igualmente uma fé diferente com relação à Encarnação do Senhor e ao magistério infalível do Pontífice romano, no sentido definido pelo Concílio Ecumênico Vaticano.

Nem se pode admitir que as verdade que a Igreja, através de solenes decretos, sancionou e definiu em outras épocas, pelo menos as proximamente superiores, não sejam, por este motivo, igualmente certas e nem devam ser igualmente acreditadas: acaso não foram todas elas reveladas por Deus?

Pois, o Magistério da Igreja, por decisão divina, foi constituído na terra para que as doutrinas reveladas não só permanecessem incólumes perpetuamente, mas também para que fossem levadas ao conhecimento dos homens de um modo mais fácil e seguro. E, embora seja ele diariamente exercido pelo Pontífice Romano e pelos Bispos em união com ele, todavia ele se completa pela tarefa de agir, no momento oportuno, definindo algo por meio de solenes ritos e decretos, se alguma vez for necessário opor-se aos erros ou impugnações dos hereges de um modo mais eficiente ou imprimir nas mentes dos fiéis capítulos da doutrina sagrada expostos de modo mais claro e pormenorizado.

Por este uso extraordinário do Magistério nenhuma invenção é introduzida e nenhuma coisa nova é acrescentada à soma de verdades que estando contidas, pelo menos implicitamente, no depósito da revelação, foram divinamente entregues à Igreja, mas são declaradas coisas que, para muitos talvez, ainda poderiam parecer obscuras, ou são estabelecidas coisas que devem ser mantidas sobre a fé e que antes eram por alguns colocados sob controvérsia.

16. A única maneira de unir todos os cristãos

Assim, Veneráveis Irmãos, é clara a razão pela qual esta Sé Apostólica nunca permitiu aos seus estarem presentes às reuniões de acatólicos por quanto não é lícito promover a união dos cristãos de outro modo senão promovendo o retorno dos dissidentes à única verdadeira Igreja de Cristo, dado que outrora, infelizmente, eles se apartaram dela.

Dizemos à única verdadeira Igreja de Cristo: sem dúvida ela é a todos manifesta e, pela vontade de seu Autor, Ela perpetuamente permanecerá tal qual Ele próprio A instituiu para a salvação de todos.

Pois, a mística Esposa de Cristo jamais se contaminou com o decurso dos séculos nem, em época alguma, poderá ser contaminada, como Cipriano o atesta: “A Esposa de Cristo não pode ser adulterada: ela é incorrupta e pudica. Ela conhece uma só casa e guarda com casto pudor a santidade de um só cubículo” (De Cath. Ecclessiae unitate, 6).

E o mesmo santo Mártir, com direito e com razão, grandemente se admirava de que pudesse alguém acreditar que “esta unidade que procede da firmeza de Deus pudesse cindir-se e ser quebrada na Igreja pelo divórcio de vontades em conflito” (ibidem).

Portanto, dado que o Corpo Místico de Cristo, isto é, a Igreja, é um só (1 Cor. 12,12), compacto e conexo (Ef. 4,15), à semelhança do seu corpo físico, seria inépcia e estultície afirmar alguém que ele pode constar de membros desunidos e separados: quem pois não estiver unido com ele, não é membro seu, nem está unido à cabeça, Cristo (Cfr. Ef. 5,30; 1,22).

17. A Obediência ao Romano Pontífice

Mas, ninguém está nesta única Igreja de Cristo e ninguém nela permanece a não ser que, obedecendo, reconheça e acate o poder de Pedro e de seus sucessores legítimos.

Por acaso os antepassados dos enredados pelos erros de Fócio e dos reformadores não estiveram unidos ao Bispo de Roma, ao Pastor supremo das almas?

Ai! Os filhos afastaram-se da casa paterna; todavia ela não foi feita em pedaços e nem foi destruída por isso, uma vez que estava arrimada na perene proteção de Deus. Retornem, pois, eles ao Pai comum que, esquecido das injúrias antes gravadas a fogo contra a Sé Apostólica, recebê-los-á com máximo amor.

Pois se, como repetem freqüentemente, desejam unir-se Conosco e com os nossos, por que não se apressam em entrar na Igreja, “Mãe e Mestra de todos os fiéis de Cristo” (Conc. Later 4, c.5)?

Escutem a Lactâncio chamado amiúde: “Só… a Igreja Católica é a que retém o verdadeiro culto. Aqui está a fonte da verdade, este é o domicílio da Fé, este é o templo de Deus: se alguém não entrar por ele ou se alguém dele sair, está fora da esperança da vida e salvação. é necessário que ninguém se afague a si mesmo com a pertinácia nas disputas, pois trata-se da vida e da salvação que, a não ser que seja provida de um modo cauteloso e diligente, estará perdida e extinta” (Divin. Inst. 4,30, 11-12).

18. Apelo às seitas dissidentes

Aproximem-se, portanto, os filhos dissidentes da Sé Apostólica, estabelecida nesta cidade que os Príncipes dos Apóstolos Pedro e Paulo consagraram com o seu sangue; daquela Sede, dizemos, que é “raiz e matriz da Igreja Católica” (S. Cypr., ep. 48 ad Cornelium, 3), não com o objetivo e a esperança de que “a Igreja do Deus vivo, coluna e fundamento da verdade” (1 Tim 3,15) renuncie à integridade da fé e tolere os próprios erros deles, mas, pelo contrário, para que se entreguem a seu magistério e regime.

Oxalá auspiciosamente ocorra para Nós isto que não ocorreu ainda para tantos dos nossos muitos Predecessores, a fim de que possamos abraçar com espírito fraterno os filhos que nos é doloroso estejam de Nós separados por uma perniciosa dissensão.

Prece a Nosso Senhor e a Nossa Senhora

Oxalá Deus, Senhor nosso, que “quer salvar todos os homens e que eles venham ao conhecimento da verdade”(1 Tim. 2,4) nos ouça suplicando fortemente para que Ele se digne chamar à unidade da Igreja a todos os errantes.

Nesta questão que é, sem dúvida, gravíssima, utilizamos e queremos que seja utilizada como intercessora a Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe da graça divina, vencedora de todas as heresias e auxílio dos cristãos, para que Ela peça, para o quanto antes, a chegada daquele dia tão desejado por nós, em que todos os homens escutem a voz do seu Filho divino, “conservando a unidade de espírito em um vínculo de paz” (Ef. 4,3).

19. Conclusão e Bênção Apostólica

Compreendeis, Veneráveis Irmãos, o quanto desejamos isto e queremos que o saibam os nossos filhos, não só todos os do mundo católico, mas também os que de Nós dissentem. Estes, se implorarem em prece humilde as luzes do céu, por certo reconhecerão a única verdadeira Igreja de Jesus Cristo e, por fim, nEla tendo entrado, estarão unidos conosco em perfeita caridade.

No aguardo deste fato, como auspício dos dons de Deus e como testemunho de nossa paterna benevolência, concedemos muito cordialmente a vós, Veneráveis Irmãos, e a vosso clero e povo, a bênção apostólica.

Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia seis de janeiro, no ano de 1928, festa da Epifania de Jesus Cristo, Nosso Senhor, sexto de nosso Pontificado.

Pio, Papa XI

 

 

 

Papa Pio XIMortalium Animos
MONTFORT Associação Cultural
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Online, 17/03/2008 às 16:43h .

Humani Generis – Encíclica de Pio XII contra a nova teologia

Postado por Admin.Capela em 20/mar/2008 - Sem Comentários


Papa Pio XII

Sobre algumas doutrinas errôneas

Carta encíclica do Papa Pio XII
12 de agosto de 1950.

 

 

CARTA ENCÍCLICA

Aos Veneráveis Irmãos Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e outros Ordinários Locais em paz e comunhão com a Sé Apostólica: Sobre algumas falsas opiniões que ameaçam destruir os fundamentos da Doutrina Católica.

Veneráveis Irmãos:
Saudação e Benção Apostólica.

Introdução

1. As discórdias e os erros do gênero humano, em matéria de religião e de moral, foram sempre para todos os bons, e principalmente os fiéis e sinceros filhos da Igreja, causa de profundo pesar, mas são-no hoje de modo especial, quando vemos atacados por todas as partes os princípios mesmos da civilização cristã.

2. Não é de estranhar que fora do redil de Jesus Cristo tenham sempre existido tais dissensões e erros. Pois, embora a razão humana, absolutamente falando, possa chegar com suas forças e lume naturais ao conhecimento verdadeiro e certo de um Deus pessoal, que governa e protege o mundo com sua Providência, bem como chegar ao conhecimento da lei natural impressa pelo Criador em nossas almas, contudo, de fato, muitos são os obstáculos que impedem a mesma razão de usar eficazmente e com resultado desta sua natural capacidade. As verdades que se referem a Deus e às relações entre os homens e Deus são verdades que transcendem completamente a ordem das coisas sensíveis e quando estas verdades atingem a vida prática e a regem, requerem sacrifício e abnegação. A inteligência humana, na aquisição dessas verdades, encontra dificuldades tanto por parte dos sentidos e da imaginação como por parte das más inclinações provenientes do pecado original. Donde vemos que os homens em tais questões facilmente procuram persuadir-se de que seja falso ou ao menos duvidoso aquilo que não desejam que seja verdadeiro.

3. Por tais motivos se deve dizer que a Revelação divina é moralmente necessária para que aquelas verdades que em matéria de religião e moral, mesmo na presente condição do gênero humano, não são de sua natureza inacessíveis à razão, possam ser por todos conhecidas com facilidade, com firme certeza, sem mistura alguma de erro. (Conc. Vaticano I, Const. De fide catholica, c.2, De revelatione).

4. Mais ainda, a mente humana pode até, às vezes, encontrar dificuldade em formar um juízo certo sobre a “credibilidade” da fé católica, apesar de serem tantos e tão admiráveis os sinais e argumentos externos, concedidos por Deus em seu favor, a tal ponto que ainda somente com o lume da razão natural se pode provar com certeza a origem divina da religião cristã. É que o homem, movido por preconceitos ou instigado pelas paixões e pela vontade pervertida, não só pode rejeitar a evidência dos sinais e argumentos externos que se lhe apresentam, como também resistir às celestes inspirações que Deus lhe infunde na alma.

5. Quem quer que lance os olhos sobre aqueles que vivem fora do redil de Cristo, facilmente poderá distinguir os principais caminhos por onde enveredaram muitos dos homens que se dizem cultos e doutos. Há-os que, sem a devida prudência e discernimento, admitem e propugnam como extensivo à origem de todos os seres o sistema evolucionista, que nem mesmo no campo das ciências naturais está indiscutivelmente demonstrado, e com ousadia temerária se entregam à hipótese monista e panteísta de um universo sujeito às leis de uma contínua evolução. Desta hipótese logo se aproveitam os fautores do comunismo para propugnar e exaltar com mais eficácia o seu “materialismo dialético” e arrancar das mentes toda a idéia de Deus.

6. As falsas afirmações de tal evolucionismo, no qual se repudia tudo o que é absoluto, firme e imutável, prepararam o caminho às aberrações de uma nova filosofia, que, fazendo concorrência ao idealismo, ao imanentismo e ao pragmatismo, tomou o nome de existencialismo, porque, rejeitando as essências imutáveis das coisas, só se preocupa com a existência de cada indivíduo.

7. A essas correntes se vem juntar um falso historicismo que se atém somente aos acontecimentos da vida humana e subverte os fundamentos de toda e qualquer verdade ou lei absoluta, seja no campo da filosofia, seja no dos dogmas do cristianismo.

8. Em meio de tão grande confusão de idéias algum conforto nos traz ver o bom número daqueles que, imbuídos outrora dos postulados do racionalismo, desejam agora voltar às fontes da verdade revelada por Deus e proclamam a palavra de Deus conservada na Sagrada Escritura como fundamento da ciência sagrada. Mas é ao mesmo tempo doloroso verificar que não poucos dentre esses mesmos, quanto mais firmemente aderem à palavra de Deus, tanto mais deprimem a capacidade da razão humana, e quanto mais de boa vontade exaltam a autoridade de Deus Revelador, com tanto maior acrimônia desprezam o Magistério da Igreja, instituído por Cristo Nosso Senhor para guardar e interpretar as verdades reveladas. Tal desprezo não só está em contradição aberta com as Sagradas Letras, mas até mesmo pela experiência se tem mostrado errado. Quanta vez os próprios dissidentes, que se separaram da verdadeira Igreja, são os primeiros a lamentar publicamente a confusão e discórdia que entre eles reina no campo dogmático, reconhecendo assim, embora a seu pesar, a necessidade de um Magistério vivo!

 

I – A Igreja Católica face aos erros modernos

1- O papel dos teólogos e dos filósofos

9. Pois bem, essas tendências que mais ou menos se desviam do reto caminho da verdade, não podem ser ignoradas ou deixadas de lado pelos teólogos e filósofos católicos, aos quais incumbe a grave missão de defender as verdades divinas e humanas e difundi-las entre os homens. Mas ainda, é preciso que conheçam bem tais sistemas, já pela razão de que as doenças não se podem curar se não forem primeiro bem conhecidas, já porque nessas falsas teorias muitas vezes está latente alguma parcela de verdade, já finalmente porque esses mesmos erros incitam a inteligência a perscrutar e a examinar certas verdades filosóficas e religiosas com maior atenção e agudeza.

10. Se os nossos filósofos e teólogos procurassem somente colher de tais doutrinas, cautelosamente assim estudadas, esses frutos que acabamos de mencionar, não haveria suficiente motivo para uma intervenção do Magistério da Igreja. Mas, embora estejamos cientes que em geral os professores e estudiosos católicos se guardam de tais erros, consta-Nos outrossim que não falta também hoje, como nos tempos apostólicos, quem, aliciado mais do que convém pela novidades, ou temendo por ventura ser tido por ignorante das descobertas da ciência nesta época de progresso, procure subtrair-se à submissão devida ao Sagrado Magistério da Igreja, correndo o perigo de se afastar insensivelmente da mesma verdade revelada por Deus e arrastar consigo outros ao erro.

11. Há, além disso, outro perigo ainda maior, porquanto vai mais encoberto sob a aparência de virtude. São muitos os que, deplorando a discórdia a que chegou o gênero humano e a confusão de idéias que hoje reina, levados de um zelo imprudente, se sentem impelidos vigorosamente por um desejo ardente de destruir as barreiras que separam entre si a tantos homens retos e honestos. E abraçam, em conseqüência, um gênero de irenismo, que, pondo de lado as questões que dividem os homens, pretendem não só obter uma união de forças para repelir a avalanche avassaladora de ateísmo, mas chegam a querer conciliar as oposições que existem no próprio campo dogmático. E assim como em tempos passados houve quem perguntasse se a apologética tradicional da Igreja não era um obstáculo, mais que um auxílio, para ganhar almas a Cristo, assim hoje não falta quem chegue ao ponto de levantar a questão: se a teologia e os métodos que se usam com aprovação da autoridade eclesiástica no ensino hodierno, não devem ser, não já aperfeiçoados, mas completamente reformados, para que o reino de Cristo possa ser propagado com mais eficácia no mundo inteiro, entre os homens de qualquer cultura e de qualquer opinião religiosa.

12. Se esses tais não tivessem em mira senão introduzir algumas inovações para adaptar com mais acerto o ensinamento eclesiástico e os seus métodos às condições e necessidades hodiernas, quase não haveria razão para temer; mas arrebatados desse imprudente irenismo, alguns chegam a julgar como óbices, para se restaurar a união fraterna, aquelas mesmas instituições que se baseiam nas leis e princípios promulgados pelo próprio Jesus Cristo, bem como quanto constitui a defesa e o sustentáculo da integridade da fé. Se isto se abate, tudo será unificado, sim, mas nos escombros de uma ruína geral.

13. Essas novas opiniões, nascidas quer de uma deplorável ânsia de novidades quer mesmo de louváveis intenções, nem sempre são propostas com a mesma intensidade, com a mesma clareza, ou com os mesmos termos. Nem sempre os seus propugnadores estão em perfeito acordo entre si. O que hoje está sendo ensinado veladamente por alguns, com cautelas e distinções, amanhã será proposto publicamente e sem rebuços por outros mais audazes, com escândalo de muitos, especialmente de jovens sacerdotes, e com detrimento da autoridade eclesiástica. E se geralmente se usa mais cautela nos livros que se publicam, o mesmo assunto é tratado com mais liberdade em folhetos distribuídos em particular, em lições datilografadas, em reuniões. E não só entre os membros do clero secular e regular, nos seminários e institutos religiosos vão sendo divulgadas tais opiniões, mas até entre os leigos, especialmente entre os que se dedicam à educação e instrução da juventude.

2. Os perigos do relativismo dogmático

14. No que se refere à teologia, alguns pretendem reduzir, quanto podem, o significado do dogma e libertar este do modo de exprimir-se, já desde muito usado na Igreja, e dos conceitos filosóficos em vigor entre os doutores católicos, para voltar, na exposição da doutrina católica, às expressões da Sagrada Escritura e dos Santos Padres. Assim esperam eles que o dogma, despojado dos elementos que dizem extrínsecos à revelação divina, possa ser proveitosamente comparado com as opiniões dogmáticas daqueles que se separam da Igreja e deste modo se possa chegar pouco a pouco à assimilação mútua do dogma católico e das opiniões dos dissidentes. Além disso, reduzida a estes termos a doutrina católica, pensam eles que desembaraçam o caminho para, com a satisfação dada às necessidades do mundo hodierno, poder exprimir o dogma com as categorias da filosofia de nosso tempo, quer sejam do imanentismo, quer sejam do idealismo, quer sejam do existencialismo ou de qualquer outro sistema. E alguns mais audazes sustentam que isso se pode fazer e se deve fazer, porque os mistérios da fé, afirmam os tais, não se podem exprimir por meio de conceitos adequadamente verdadeiros, mas somente por meio de conceitos aproximativos e sempre mutáveis, através dos quais a verdade se manifesta, sim, mas ao mesmo tempo necessariamente se deforma. Daí que não crêem absurdo mas absolutamente necessário que a teologia, segundo as várias filosofias de que se sirva como de instrumentos no decurso dos tempos, substitua as noções antigas por outras novas e assim, de maneiras diversas, e até sob certos aspectos contrários, mas – como dizem – equivalentes, traduza em linguagem humana as mesmas verdades divinas. Acrescentam que a história dos dogmas consiste em apresentar as várias formas sucessivas de que se revestiu a verdade revelada, segundo as diversas doutrinas e opiniões que no volver dos séculos foram aparecendo.

15. É claro, do que dissemos, que essas tendências não somente levam ao relativismo dogmático, mas de fato já o contém. Relativismo esse que é por demais favorecido pelo desprezo que mostram para com a doutrina tradicional e para com os termos em que ele se exprime. Todos sabem que as expressões desses conceitos, usadas tanto no ensino das aulas como no mesmo Magistério da Igreja, podem ser melhoradas e aperfeiçoadas; é por outra parte bem sabido que a Igreja nem sempre usou constantemente determinadas expressões; é evidente também que a Igreja não pode estar ligada a um qualquer efêmero sistema filosófico; mas tais noções e tais expressões que com geral consenso foram através dos séculos encontrados e formuladas pelos doutores católicos para chegar a algum maior conhecimento e inteligência do dogma, sem dúvida que não se apóiam em um fundamento tão caduco. Apóiam-se, sim, em princípios e noções deduzidas de um verdadeiro conhecimento das coisas criadas; e na dedução de tais noções, a verdade, revelada como estrela, iluminou por meio da Igreja a inteligência humana. Portanto não é de maravilhar que algumas dessas noções tenham sido usadas em Concílios Ecumênicos, e que deles tenham recebido tal sanção que a ninguém é lícito afastar-se delas.

16. Por esses motivos, ter em pouco caso ou rejeitar ou privar do seu justo valor conceitos e expressões que foram encontradas e aperfeiçoadas para exprimir com exatidão as verdades da fé, por pessoas de inteligência e santidade nada vulgares, num trabalho muita vez plurissecular, sob a vigilância do Magistério da Igreja, e não sem uma ilustração e direção do Espírito Santo, e querer agora substituí-las por noções hipotéticas e por certas expressões flutuantes e vagas da nova filosofia, que à semelhança da flor dos campos hoje verdeja e amanhã já secou, é por certo uma grandíssima imprudência. Seria reduzir o dogma à condição da cana agitada pelo vento. O desprezo dos termos e das noções usadas pelos teólogos escolásticos por si mesmo conduz ao enfraquecimento da teologia denominada especulativa, que tais inovadores julgam, por se apoiar em razões teológicas, desprovidas de verdadeira certeza.

3. O papel do Magistério da Igreja

17. Infelizmente esses amantes de novidades passam facilmente do desprezo da teologia escolástica ao pouco caso e até ao desprezo do próprio Magistério da Igreja, que dá com sua autoridade tão notável aprovação a essa teologia. O Magistério Eclesiástico é apresentado por eles como um empecilho ao progresso e um estorvo para a ciência; ao mesmo tempo que é considerado por certos acatólicos como um freio já injusto para alguns teólogos mais cultos que procuram renovar a sua ciência. E embora este Sagrado Magistério deva ser para qualquer teólogo a norma próxima e universal de verdade em matéria de fé e de moral (pois Cristo Senhor Nosso lhe confiou todo o depósito da fé – Sagrada Escritura e tradição divina – para guardá-lo, defendê-lo, interpretá-lo), contudo por vezes é ignorado como se não existisse o dever que têm os fiéis de fugir também daqueles erros que em maior ou menor medida se aproximam da heresia, dever portanto de “observar as constituições e decretos com os quais essas falsas opiniões foram proscritas e proibidas pela Santa Sé” (Código de Direito Can., cân. 1324; cf. Conc. Vaticano I, Const. De fide catholica, c.4, De fide et ratione, depois dos cânones). O que as Encíclicas dos Sumos Pontífices expõem sobre o caráter e a constituição da Igreja é por alguns intencional e habitualmente deixado de parte com o intuito de fazer prevalecer um conceito vago, que eles dizem terem tomado dos antigos Padres, especialmente Gregos. Os Sumos Pontífices, dizem tais propugnadores, não tencionam dirimir as questões disputadas entre teólogos; é portanto necessário voltar às fontes primitivas e com os escritos dos antigos se devem explicar as posteriores constituições e decretos do Magistério Eclesiástico.

18. Tais afirmações, feitas muito embora com elegância de estilo, estão cheias de falácia. É verdade que geralmente os Sumos Pontífices deixam livres os teólogos naquelas questões em que os melhores doutores se acham divididos entre várias posições, mas a história mostra como muitas questões que em certa época eram objeto de livre discussão, posteriormente já não o puderam ser.

19. Nem se deve crer que os ensinamentos das Encíclicas não exijam per se o assentimento, sob o pretexto de que os Pontífices não exercem nelas o poder de seu Supremo Magistério. Tais ensinamentos fazem parte do magistério ordinário, para o qual também valem as palavras: “Quem vos ouve, a mim ouve” (Lc 10,16), além do que, quanto vem proposto e inculcado nas Encíclicas pertence já, o mais das vezes, por outros títulos, ao patrimônio da doutrina católica. Ademais, se os Sumos Pontífices no exercício do seu magistério emitem de caso pensado uma decisão em matéria até então controvertida, é evidente que tal questão, segundo a mente e a vontade dos mesmos Pontífices, não pode já constituir objeto de livre discussão entre os teólogos.

20. Também é verdade que os teólogos devem voltar sempre às fontes da revelação divina do Magistério vivo “se encontrem já explícita ou implicitamente” (Pius IX, Inter gravissimas, 28 Oct. 1870, Acta, vol. I, p. 260) na Sagrada Escritura ou na divina Tradição. Acresce que ambas as fontes da Revelação contém tais e tantos tesouros de verdade que se não poderão jamais, de fato, exaurir: As ciências sagradas com o estudo das fontes da revelação sempre rejuvenescem; enquanto, pelo contrário, a especulação que negligencia um estudo mais profundo no depósito sagrado, consta pela experiência que se torna estéril. Mas por isso mesmo a teologia, mesmo a chamada positiva, não pode ser equiparada a uma ciência meramente histórica. Juntamente com as sagradas fontes, Deus deu à sua Igreja um magistério vivo para iluminar e pôr em relevo aquilo que no depósito da fé não se acha senão obscuramente e como que implícito. Este depósito, não foi a cada fiel nem mesmo aos teólogos, que o Divino Redentor o entregou para que o interpretassem autenticamente, – mas somente ao Magistério da Igreja. Se a Igreja desempenha este seu múnus, como o fez inúmeras vezes no decurso dos séculos, já com o extraordinário, é claro que é completamente falso o método de explicar as coisas claras pela obscuras: muito ao invés, o contrário é o que se impõe a todos. Pelo que o Nosso Predecessor de imortal memória, Pio IX, ao ensinar que é nobilíssima incumbência da teologia mostrar como a doutrina definida pela Igreja esteja contida nas sagradas fontes, acrescentou estas palavras “naquele mesmo sentido no qual foi definida pela Igreja”.

4. A autoridade da Sagrada Escritura

21. Voltando, pois, às novas teorias, a que acima aludimos, por alguns vão sendo proferidas e ensinadas certas doutrinas que põem em perigo a autoridade da Sagrada Escritura. Alguns permitem-se a ousadia de deturpar o sentido da definição do Concílio Vaticano, a respeito do doutrina que diz ser Deus o autor da Sagrada Escritura e renovam a opinião, já várias vezes condenada, de que a imunidade de erro que compete às Sagradas Letras se estende somente ao que se refere a Deus e aos assuntos religiosos e morais. Mais; falam com pouco acerto de um sentido humano dos Livros Sagrados, sob a qual estaria latente um sentido divino, único que têm como infalível. Na interpretação da Sagrada Escritura não querem ter em conta a analogia da fé e a tradição da Igreja e sustentam que a doutrina dos Santos Padres e do Sagrado Magistério se deve regular pela Sagrada Escritura explicada pelos exegetas sob aspecto meramente humano, em vez de ser a Sagrada Escritura que deva ser exposta segundo a mente da Igreja constituída por Cristo Nosso Senhor guarda e intérprete de todo o depósito da verdade revelada.

22. Além disso, o sentido literal da Sagrada Escritura e sua exposição, elaborada, sob a vigilância da Igreja, por tantos e tão grandes exegetas, deve ceder o passo, segundo caprichosamente afirmam, à nova exegese, que chamam espiritual e simbólica, e pela qual a Sagrada Bíblia do Antigo Testamento, que, segundo eles, hoje na Igreja está como fonte selada, será finalmente aberta a todos. Desta forma, asseveram, desvanecer-se-ão todas as dificuldades, que não podem causar embaraço senão àqueles que se atêm ao sentido literal da Escritura.

23. Todos vêem como todas estas doutrinas se afastam dos princípios e das normas hermenêuticas justamente estabelecidas pelos Nossos Predecessores de feliz memória, Leão XIII na Encíclica Providentissimus e Bento XV na Encíclica Spiritus Paraclitus, como também por Nós na Encíclica Divino Afflante Spiritu.

 

II – Penetração dos erros modernos

1. No terreno da teologia

24. Não deve causar maravilha que tais inovações tenham produzido seus frutos envenenados em quase todas as partes da teologia. Põe-se em dúvida que a razão humana sem a ajuda da Revelação divina e da graça possa demonstrar, com argumentos tirados das criaturas, a existência de um Deus pessoal: nega-se que o mundo tenha tido início e afirma-se que a criação do mundo é necessária, porque procede da necessária liberalidade do amor divino; como também se afirma que Deus não têm presciência eterna e infalível das ações livres do homem; opiniões todas contrárias às declarações do Concílio Vaticano (Cf. Conc. Vaticano I, Const. De fide catholica, c. I, De Deo rerum omnium creatore)

25. É posto em discussão por alguns se os anjos são pessoas e se existe uma diferença essencial entre matéria e espírito. Outros desnaturam o conceito da gratuidade da ordem sobrenatural, sustentando que Deus não pode criar seres inteligentes sem ordená-los e chamá-los à visão beatífica. Nem basta ainda, pois deixando de lado as definições do Concílio de Trento, chegam a destruir o verdadeiro conceito de pecado original e juntamente o de pecado, em geral, como ofensa de Deus, bem assim o conceito da satisfação que Jesus Cristo deu por nós. Nem falta quem sustente que a doutrina da transubstanciação, porquanto fundada num conceito de substância já antiquado, deva ser corrigida, de modo que se reduza a presença real de Cristo na Eucaristia a um simbolismo, pelo qual as espécies consagradas não seriam outra coisa senão sinais eficazes de uma presença espiritual de Cristo e da sua íntima união, no Corpo místico, com os membros fiéis.

26. Alguns não se julgam obrigados a professar a doutrina que expusemos numa das Nossas Encíclicas, fundada nas fontes da Revelação, segundo a qual o Corpo Místico de Cristo e a Igreja Católica Apostólica Romana são uma só e mesma coisa (Cf. Enc. Mystici Corporis Christi, A.A. S. vol. XXXV, p. 193 s.). Alguns reduzem a uma fórmula vã a necessidade de pertencer à verdadeira Igreja para obter a salvação eterna! Outros, finalmente, não admitem o caráter racional dos sinais de credibilidade da fé cristã.

27. É sabido que esses erros e outros semelhantes se andam espalhando entre alguns de Nossos filhos, levados a engano por um zelo imprudente ou por uma ciência de falso cunho, e a esses filhos somos obrigados a repetir, com o coração dolorido, verdades conhecidíssimas e erros patentes, indicando-lhes com preocupação os perigos de tais erros.

2. No terreno da filosofia

28. Todos sabem quanto apreço dá a Igreja à razão humana no que concerne à sua capacidade de demonstrar com certeza a existência de um Deus pessoal, de provar iniludìvelmente pelos sinais divinos os fundamentos da própria fé cristã, de exprimir com justeza a lei natural que o Criador imprimiu na alma humana, de conseguir por fim uma inteligência limitada mas utilíssima dos mistérios (Cf.Conc. Vaticano I). Esta atribuição podê-la-á a razão desempenhar convenientemente e com segurança, se estiver nutrida daquela sã filosofia que constitui como que um patrimônio de família, herdado das precedentes gerações cristãs e que reveste uma autoridade superior, pois que o mesmo Magistério da Igreja confrontou com a própria verdade revelada os seus princípios e as suas principais asserções, precisadas e fixadas lentamente através dos séculos por homens de inegável talento. Esta mesma filosofia, confirmada e comumente admitida pela Igreja, defende o genuíno valor do conhecimento humano, os indestrutíveis princípios da metafísica – a saber: de razão suficiente, de causalidade, de finalidade – e propugna a capacidade da inteligência de atingir a verdade certa e imutável.

Devem-se respeitar as aquisições definitivas da filosofia

29. Nesta filosofia há certamente muitas coisas que não dizem respeito à fé e à moral, nem direta nem indiretamente e por isso a Igreja as deixa à livre discussão dos competentes na matéria; mas não existe a mesma liberdade com respeito a muitas outras questões, especialmente com respeito aos princípios e principais asserções de que acima falamos. Pode-se dar à filosofia, também nessas questões essenciais, uma veste mais conveniente e mais rica; poder-se-á reforçar a mesma filosofia com expressões mais eficazes, despojá-la de certos meios escolásticos menos adequados, enriquecê-la ainda – com prudência porém – de certos elementos que são frutos do progressivo trabalho da inteligência humana. Não se deverá, porém, jamais subvertê-la com falsos princípios, nem estimá-la só como um grandioso monumento de valor puramente arqueológico. Pois a verdade e toda a sua manifestação filosófica não pode estar sujeita a mudanças cotidianas, especialmente tratando-se dos princípios evidentemente e diretamente conhecidos como tais pela razão humana ou daquelas asserções, referenciadas já pela sabedoria dos séculos, já pela harmonia com os dados da Revelação divina. Qualquer verdade que a razão humana por meio de uma pesquisa sincera for capaz de descobrir, não poderá jamais estar em contraste com uma verdade já anteriormente demonstrada; porque Deus, suma Verdade, criou e rege o intelecto humano, não para que às verdades já adquiridas ele contraponha cada dia outras novas, mas para que, removendo os erros que eventualmente se forem introduzindo, acrescente verdade a verdade, na mesma ordem e com a mesma harmonia, onde a inteligência humana vai haurir a verdade. Por isso o cristão, seja filósofo ou teólogo, não abraça sem mais, com precipitação e leviandade, todas as novidades que aparecem, mas as deve examinar com a máxima diligência e as deve ponderar no seu justo peso, para não perder a verdade já adquirida ou corrompê-la, certamente com perigo e dano para a sua fé.

Devem-se respeitar o método e a doutrina de São Tomás de Aquino

30. Se se considera bem quanto acima está exposto, facilmente aparecerá claro o motivo por que a Igreja exige que os futuros sacerdotes sejam instruídos nas ciências filosóficas “segundo o método, a doutrina e os princípios do Doutor Angélico (Direito Canônico, cân. 1366, 2) já que, como o sabemos pela experiência de vários séculos, o método do grande Aquino se distingue por singular superioridade tanto no ensino como na investigação; a sua doutrina harmoniza-se esplendidamente com a Revelação divina e é eficasíssima tanto para pôr a salvo os fundamentos da fé, como para colher com utilidade e segurança os frutos de um sadio progresso (A. A. S. vol. XXXVIII, 1946, p. 387).

31. É deveras para deplorar que hoje a filosofia, confirmada e admitida pela Igreja, seja objeto de desprezo da parte de alguns, a ponto de, com imprudência, declará-la antiquada na forma racionalista pelo processo de pensamento. Vão espalhando que esta nossa filosofia defende erroneamente a opinião de que possa existir uma metafísica verdadeira de modo absoluto; quando pelo contrário eles sustentam que as verdades, especialmente as verdades transcendentes, não podem ser expressadas mais convenientemente que por meio de doutrinas divergentes que se completem entre si, ainda em certo modo entre si opostas. Daí que a filosofia escolástica com a sua clara exposição e solução das questões, com a sua exata determinação dos conceitos e suas claras distinções, pode ser útil – concedem os tais – como preparação para o estudo da teoria escolástica muito bem condizente com a mentalidade dos homens medievais; mas não pode dar-nos – acrescentam – um método e uma orientação filosófica que corresponda às necessidades da cultura moderna. Objetam demais que a filosofia perene não é senão a filosofia das essências imutáveis ao passo que uma mentalidade moderna se deve interessar pela existência de cada indivíduo e da vida sempre em devir. E enquanto de uma parte desprezam esta filosofia, de outra parte exaltam os demais sistemas, antigos e recentes, de povos orientais e de povos ocidentais, de modo que parece quererem insinuar que todas as filosofias ou teorias, com o retoque – se necessário – de alguma correção ou de algum complemento, se podem conciliar com o dogma católico. Mas nenhum católico pode pôr em dúvida quanto isto seja falso, especialmente tratando-se de sistemas como o imanentismo, o idealismo, o materialismo, seja histórico seja dialético, ou ainda como o existencialismo, quando professa o ateísmo ou quando nega o valor do raciocínio no campo da metafísica.

3. No terreno didático

32. Finalmente, à filosofia de nossas aulas levantam esta acusação: que ela no processo do conhecimento se ocupa somente da inteligência e faz caso omisso da função da vontade e do sentimento. Isto não corresponde à verdade: a filosofia cristã não negou nunca a utilidade e eficácia que provém das boas disposições da alma toda, para conhecer e abraçar as verdades religiosas e morais; pelo contrário, ela sempre ensinou que a falta de tais disposições pode ser a causa pela qual a inteligência, sob o influxo das paixões e da vontade transviada, se obscureça a tal ponto que já não consiga ver a verdade. Mais ainda, o Doutor Comum é de parecer que a inteligência pode em algum modo perceber os bens superiores da ordem moral, seja natural, seja sobrenatural, enquanto experimenta no seu íntimo uma certa co-naturalidade, seja na ordem natural seja como fruto da graça, com os ditos bens (Cf. S. Tomás, Summa Theol. II-II, q. I, a. 4, ad 3; e q. 45, a. 2, in c.); e é manifesto quanto este conhecimento, embora subconsciente, ajude a razão nas suas investigações. Mas uma coisa é reconhecer o poder que têm a vontade e as disposições da alma para ajudar a razão a atingir um conhecimento mais certo e mais firme das verdades morais, outra coisa é quanto vão espalhando esses inovadores, a saber: que a vontade e o sentimento têm um certo poder intuitivo e que, não podendo o homem discernir com certeza aquilo que deve abraçar como verdadeiro, se serve da vontade, determinando por ela a sua livre escolha entre duas opiniões opostas, confundindo assim indevidamente conhecimento e ato de vontade.

33. Não é de admirar que com essas novas teorias corram perigo as duas ciências filosóficas, por sua mesma natureza intimamente relacionadas com os ensinamentos da fé: a teodicéia e a ética. Pretendem as novas teorias que o papel de ambas não é o de demonstrar certas verdades sobre Deus ou outro ser transcendente, mas o de mostrar como sejam coerentes com a necessidade da vida as verdades que a fé ensina sobre Deus, Ente pessoal, e sobre os seus mandamentos, e que devem ser admitidas por todos, para evitarem o desespero e alcançarem a salvação eterna. Todas essas opiniões e teorias estão em franca oposição com os documentos emanados pelos Nossos Predecessores Leão XIII e Pio X, e com os decretos do Concílio Vaticano I. Seria supérfluo deplorar essas várias aberrações, se todos, ainda mesmo no campo das doutrinas filosóficas, se mostrassem dóceis e reverentes, como de dever, para com o Magistério da Igreja, a qual por instituição divina recebeu a missão não só de guardar e interpretar o depósito da fé, mas ainda de vigiar o campo das disciplinas filosóficas, a fim de que o dogma católico não receba de opiniões menos sensatas nenhum dano.

 

III – A Fé e as ciências positivas

34. Resta agora falar daquelas questões, que, ainda que pertençam às ciências positivas, são mais ou menos relacionadas com as verdades reveladas da fé cristã. Não poucos são os que pedem insistentemente que a religião católica tenha em máxima conta estas ciências, o que é sem dúvida coisa louvável, quando se trata da fatos realmente demonstrados. Mas é preciso ser muito cauto quando se trata de puras hipóteses, embora de algum modo fundadas cientificamente, e nas quais se toca a doutrina contida na S. Escritura ou na tradição. E se tais hipóteses vão direta ou indiretamente contra a doutrina revelada, então de modo nenhum se podem admitir.

1. Biologia e Antropologia

35. Por essas razões o Magistério da Igreja não proíbe que, em conformidade com a atual estado das ciências e da teologia, sejam objeto de pesquisas e de discussões, por parte dos competentes em ambos os campos, a doutrina do evolucionismo, enquanto ela investiga a origem do corpo humano, que proviria de matéria orgânica preexistente (a fé católica nos obriga a professar que as almas são criadas imediatamente por Deus). Isto, porém, deve ser feito de tal maneira, que as razões das duas opiniões, isto é, da que é favorável e da que é contrária ao evolucionismo, sejam ponderadas e julgadas com a necessária seriedade, moderação, justa medida, e contanto que todos estejam dispostos a se sujeitares ao juízo da Igreja, à qual Cristo confiou o oficio de interpretar autenticamente a S. Escritura e de defender os dogmas da fé (Cf. Alocução Pontifícia aos membros da Academia das Ciências. 30 nov. 1941 A. A. S. vol. XXXIII p. 506). Mas alguns ultrapassam temerariamente esta liberdade de discussão procedendo como se estivesse já demonstrado com certeza plena que o corpo humano se tenha originado de matéria orgânica preexistente, argumentando com certos indícios achados até agora e com raciocínios baseados sobre tais indícios; e isto como se nas fontes da revelação não existisse nada que exija neste assunto a maior moderação e cautela.

36. Quanto, porém, à outra hipótese, isto é, ao poligenismo, os filhos da Igreja não gozam, de modo nenhum, da mesma liberdade, pois os fiéis não podem abraçar uma opinião cujos fautores ensinam que depois de Adão existiriam nesta terra verdadeiros homens que não tiveram origem, por via de geração natural, do mesmo Adão, progenitor de todos os homens, ou então que Adão representa um conjunto de muitos progenitores. Ora, não se vê de modo algum como estas afirmações se possam conciliar com os que as fontes da revelação e os atos do Magistério da Igreja nos ensinam acerca do pecado original, que provém de um pecado verdadeiro cometido individualmente por Adão e que, transmitido a todos por geração, é inerente a cada um como próprio (Cf. Rom 5, 12-19; Conc. Triden., sess. V, cân. 1-4).

2. Ciências Históricas

37. Como nas ciências biológicas e antropológicas, também nas históricas há quem ousadamente ultrapasse os limites e as cautelas estabelecidas pela Igreja. De modo particular se deve deplorar certo sistema de interpretação demasiado livre dos livros históricos do Antigo Testamento; e os fautores desse sistema, para defender suas razões, apelam infundadamente para a carta não há muito enviada ao Arcebispo de Paris pela Pontifícia Comissão Bíblica (16 de janeiro de 1948: A. A S., vol. 40 pp. 45-48). Esta carta com efeito, faz notar que os 11 primeiros capítulos do Gênese, ainda que propriamente falando não concordem com o método histórico usado pelos melhores autores gregos e latinos e pelos bons historiadores do nosso tempo, pertencem contudo ao gênero histórico em verdadeiro sentido, mas que deve ser ainda mais estudado e determinado pelos exegetas: os mesmos capítulos, nota ainda a citada carta, com um modo de falar simples e figurado, adaptado à mentalidade de um povo de cultura elementar, ensinam as principais verdades que são fundamentais para a salvação eterna e contém além disso uma narração popular sobre a origem do gênero humano e do povo eleito.

38. Se alguma coisa os antigos hagiógrafos tomaram de outras narrações populares (o que pode ser concedido), é preciso não esquecer que eles o fizeram com o auxílio da inspiração divina, que na escolha e na valorização dos documentos os premunia contra todo e qualquer erro. Portanto as narrações populares inseridas na S. Escritura não podem de maneira alguma ser postas no mesmo plano das mitologias ou gêneros semelhantes, as quais são fruto mais de uma fantasia exaltada do que amor à verdade e à simplicidade. Este amor à verdade e esta nativa simplicidade ressalta de tal modo nos Livros Inspirados, inclusive nos do Antigo Testamento, que colocam os nossos hagiógrafos indiscutivelmente acima dos antigos escritores profanos.

 

Conclusão:
Missão dos superiores eclesiásticos
e dos professores das ciências religiosas

39. Sabemos em verdade que a maioria dos doutores católicos, de cujos valiosos estudos os Ateneus, Seminários, Colégios dos religiosos, tanto proveito recebem, estão longe de tais erros que aberta ou disfarçadamente vão sendo hoje divulgados, seja por mania de novidade, seja por desacertado zelo apostólico. Mas sabemos também que essas falsas opiniões poderão ilaquear os menos cautos. Preferimos por isso atalhar esses males logo de início, a ter que subministrar o remédio quando a doença já estiver adiantada.

40. Depois de madura reflexão e consideração, para não faltar ao Nosso sagrado dever, ordenamos aos Bispos e aos Superiores das Ordens e Congregações religiosas, impondo-lhes gravíssima obrigação de consciência, que cuidem diligentissimamente de que nem nas aulas nem em reuniões e conferências, nem em escritos, de qualquer gênero, sejam propaladas as falsas opiniões de qualquer maneira ensinadas aos seminaristas ou aos fiéis.

41. Os Professores dos Estabelecimentos Eclesiásticos saibam que não poderão exercer, com consciência tranqüila, o ofício de ensinar que lhes foi confiado, se não aceitarem religiosamente as normas que aqui estabelecemos e se as não observarem exatamente no ensino de suas matérias. Este acatamento e obediência que nos seu assíduo trabalho devem professar para com o Magistério da Igreja instilem-no também na mente e na alma dos seus alunos.

42. Procurem com todo o empenho e entusiasmo concorrer para o progresso das ciências que ensinam; mas abstenham-se também de ultrapassar os limites que, para a defesa da fé e da doutrina católica, lhes demarcamos. Às novas questões que o progresso moderno suscitou dêem a contribuição de suas diligentíssimas pesquisas, mas com conveniente prudência e cautela. Finalmente não julguem, levados por um falso irenismo, que se possa obter o suspirado retorno dos dissidentes e dos errantes ao seio da Igreja se não lhes ensina, sinceramente, sem nenhuma corrupção nem nenhuma diminuição, toda a verdade professada pela Igreja.

43. Fundados nesta esperança, que será aumentada pela vossa solicitude pastoral, como auspício dos celestes dons e sinal da Nossa paterna Benevolência damos de todo o coração e cada um de Vós, bem como ao vosso clero e aos vossos fiéis, a Bênção Apostólica.

 

Dado em Roma, junto à Basílica de S. Pedro, aos 12 do mês de agosto do ano de 1950, duodécimo do Nosso Pontificado.

PIO PAPA XII

 

Carta dos Cardeais Ottaviani e Bacci contra a promulgação da Missa Nova

Postado por Admin.Capela em 20/mar/2008 - Sem Comentários

Roma, 25 de setembro de 1969.

Santíssimo Padre,

Tendo cuidadosamente examinado e apresentado ao escrutínio de outros a Nova Ordenação da Missa preparada pelos especialistas do Comitê para a Implementação da Constituição da Sagrada Liturgia (Consilium ad exequendam Constitutionem de Sacra Liturgia), e após longa oração e reflexão, sentimo-nos obrigados perante Deus e Sua Santidade a apresentar as seguintes considerações:

1. O seguinte Estudo Crítico é o trabalho de um grupo seleto de bispos, teólogos, liturgistas e pastores de almas. A despeito de sua brevidade, o estudo demonstra de forma bastante clara que a Novus Ordo Missae – considerando-se os novos elementos amplamente suscetíveis a muitas interpretações diferentes que estão nela implícitos ou são tomados como certos — representa, tanto em seu todo como nos detalhes, um surpreendente afastamento da teologia católica da Missa tal qual formulada na sessão 22 do Concílio de Trento. Os “cânones” do rito definitivamente fixado naquele tempo constituíam uma barreira intransponível contra qualquer tipo de heresia que pudesse atacar a integridade do Mistério.

2. As razões pastorais apresentadas para justificar uma ruptura tão grave, ainda que tais razões pudessem ser sustentadas em face das considerações doutrinárias, não parecem ser suficientes. As inovações na Novus Ordo e o fato de que tudo o que possui um valor perene encontra ali apenas um lugar secundário – se é que continua a existir – poderiam muito bem transformar em certeza as suspeitas, infelizmente já dominantes em muitos círculos, de que as verdades que sempre foram objeto de crença pelos cristãos podem ser alteradas ou ignoradas sem infidelidade ao sagrado depósito da doutrina ao qual a fé católica está para sempre ligada. As reformas recentes demonstraram amplamente que novas alterações na liturgia não podem ser efetuadas sem levar à completa confusão por parte dos fiéis, os quais já demonstram sinais de relutância e um indubitável afrouxamento da fé. Entre os melhores clérigos, o resultado é uma agonizante crise de consciência, da qual um sem número de exemplos chega a nós diariamente.

3. Estamos certos, instigados pelo que ouvimos da voz dos pastores e do rebanho, de que estas considerações encontrarão eco no coração de Sua Santidade, sempre tão profundamente solícito às necessidades espirituais dos filhos da Igreja. Os sujeitos a quem uma lei se dirige sempre tiveram o direito, mais do que isto, o dever, de pedir ao legislador que ab-rogue esta lei uma vez que ela prove ser danosa. Portanto, em um momento em que a pureza da fé e a unidade da Igreja sofrem cruéis lacerações e um perigo ainda maior, diária e dolorosamente ecoado nas palavras de nosso Pai comum, nós fervorosamente rogamos a Vossa Santidade para que não nos prive da possibilidade de continuarmos a ter acesso à integridade fecunda do Missale Romanun de São Pio V, tão louvado por Sua Santidade e tão profundamente amado e venerado por todo o mundo católico.

Card. A. Ottaviani Card A. Bacci

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O Breve Exame Critico

BREVE ESTUDO CRÍTICO DA NOVA ORDENAÇÃO DA MISSA

5 de junho de 1969

Um grupo de teólogos romanos

 

Capítulo I

Em outubro de 1967, foi pedido ao Sínodo de Bispos que se reuniu em Roma para que emitisse um julgamento a respeito de uma celebração experimental do que foi chamado à época de uma Missa “padrão” ou “normativa”. Esta Missa, composta pelo Comitê para a Implementação das Constituições sobre a Sagrada Liturgia (Consilium), provocou sérios receios entre os bispos presentes. Com 187 membros votando, os resultados revelaram uma considerável oposição (43 votos negativos), muitas reservas substanciais (62 votos afirmativos com reservas) e quatro abstenções. A imprensa internacional falou da “rejeição” do Sínodo à Missa proposta, enquanto a ala progressista da imprensa religiosa perpassou o evento em silêncio. Um conhecido periódico dirigido aos bispos, e que expressa seus ensinamentos, resumiu o novo rito nestes termos:

“Quiseram passar uma esponja em toda a teologia da Missa. Terminou como algo muito próximo da teologia protestante que destruiu o sacrifício da Missa.”

Infelizmente nós descobrimos agora que a mesma “Missa padrão”, idêntica em substância, reapareceu na forma da Nova Ordenação da Missa (Novus Ordo Missae) recentemente promulgada pela Constituição Apostólica Missale Romanun (3 de abril de 1969). Além disso, nos dois anos que se passaram desde o sínodo, as conferência episcopais (ao menos como tais) aparentemente não foi consultada sobre a matéria.

A Constituição Apostólica Missale Romanum declara que o antigo Missal que São Pio V promulgou em 19 de julho de 1570 (Bula Quo Primum) – a sua maior parte, na verdade, remonta a São Gregório Magno e à antigüidade ainda mais remota (1) – foi o padrão por quatro séculos sempre que os padres do Rito Latino celebravam o Santo Sacrifício. A Constituição acrescenta que este Missal, levado a todos os cantos da Terra, “tem sido uma abundante fonte de nutrição espiritual para tantas pessoas em sua devoção a Deus”. Mas esta mesma Constituição, que poria fim definitivamente ao uso do antigo Missal, afirma que a presente reforma tornou-se necessária desde que: “um profundo interesse em fomentar a liturgia disseminou-se e fortaleceu-se entre o povo cristão.”

Parece que esta última afirmação, com toda evidencia, contém um sério equívoco.

Se o povo cristão expressou algo, foi sim o desejo (graças ao grande São Pio X) de descobrir os verdadeiros e imortais tesouros da liturgia. Ele nunca, absolutamente nunca, pediu para que a liturgia fosse alterada ou mutilada a fim de ser mais facilmente compreensível. O que os fiéis queriam era um melhor entendimento da única e inalterável liturgia – uma liturgia que eles não desejavam ver modificada. Católicos por todas partes, bem como padres e leigos, amavam e veneravam o Missal Romano de São Pio V. É impossível compreender como a utilização deste missal, em conjunto com a instrução religiosa adequada, poderia impedir os fiéis de participar da liturgia de forma mais plena ou de entendê-la de forma mais profunda.

É igualmente incompreensível por que o antigo Missal, quando seus formidáveis méritos são reconhecidos, ate pela Constituição Missale Romanum, deva agora ser considerado indigno de continuar a alimentar a piedade litúrgica dos fiéis.

Já que a “Missa Padrão”, agora reintroduzida e novamente imposta na forma da Nova Ordenação da Missa, já havia sido rejeitada em substância no Sínodo; já que ela nunca foi submetida ao julgamento colegiado das conferências episcopais e já que os fiéis nunca pediram qualquer reforma que seja da Missa, é impossível compreender as razões para a nova legislação – legislação que subverte uma tradição intocada na Igreja desde os séculos IV ou V, como o reconhece a própria Constituição Missale Romanum.

Portanto, uma vez que não há razões para empreender a reforma, esta parece privada de quaisquer bases racionais para justificá-la e torná-la aceitável ao povo católico.

O Concílio Vaticano II, de fato, pediu que a Ordem da Missa “fosse revista de uma forma que exponha mais claramente a natureza intrínseca e a finalidade de suas diversas partes, bem como a conexão entre elas”. (2)

Nós veremos agora em que medida a Ordenação recém promulgada responde aos desejos do Concílio – desejos dos quais pode-se dizer que não fica nem a menor lembrança.

Um exame ponto por ponto da Novus Ordo revela mudanças tão importantes, que confirmam o julgamento já feito sobre a “Missa Padrão”. O novo “Ordo Missae”, assim como a “missa normativa”, pode satisfazer em muitos pontos o mais modernista dos protestantes.

 

Capítulo II

Comecemos com a definição da Missa. No artigo 7 da Instrução Geral que precede a Nova Ordenação da Missa, sob o titulo “A estrutura da Missa”, encontramos a seguinte definição:

A Ceia dominical é a assembléia sagrada ou congregação do povo de Deus, reunindo-se sob a presidência do sacerdote, para celebrar a memória de Nosso Senhor (3). Por esta razão, a promessa de Cristo se aplica de forma suprema para uma reunião local da Igreja: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles.” (Mt. 18:20) (4)

Desta forma, a definição da Missa é reduzida a uma “ceia”, um termo que a Instrução Geral repete constantemente (nos números 8, 48, 55, 56 da Institutio). A Instrução mais adiante caracteriza esta “ceia” como uma assembléia, presidida por um padre e celebrada como o “memorial do Senhor” para recordar o que Ele fez na quinta-feira Santa.

Nada disso implica por mais mínimo que seja nem a Presença Real, nem a realidade do Sacrifício, nem a função sacramental do padre que consagra, nem o valor intrínseco do Sacrifício Eucarístico, independente da presença da “assembléia” (6)

Em uma palavra, a definição dada pela Instrução não implica nenhum dos valores dogmáticos que são essenciais à Missa e os quais, tomados em conjunto, fornecem a sua verdadeira definição. A omissão, num tal lugar, desses dados dogmáticos, não pode ser senão voluntária. Semelhante omissão voluntária significa que já se consideram como obsoletos, e equivale, ao menos na prática, a negá-los. (7)

A segunda parte do artigo 7 torna ainda pior este já sério equívoco. Ela afirma que se aplica de forma suprema a esta assembléia a promessa de Cristo: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles”. Assim, a Instrução coloca a promessa de Cristo -que se refere somente à Sua presença espiritual através da graça-, no mesmo nível qualitativo, -a não ser por uma maior intensidade-, da Sua presença real, física e substancial, própria ao Sacramento da Eucaristia.

O próximo artigo da Instrução divide a Missa em uma “Liturgia da Palavra” e uma “Liturgia da Eucaristia”, e acrescenta que a “mesa da Palavra de Deus” e a “mesa do Corpo de Cristo” são preparadas na Missa para que os fiéis possam receber “instrução e alimento”. Como veremos mais tarde, esta afirmação une de forma imprópria e ilegítima as duas partes da Missa, como se elas possuíssem o mesmo valor simbólico.

A Instrução, que constitui a introdução do novo Ordo da Missa, usa muitos nomes diferentes para a Missa, tais como:

– Ação de Cristo e do Povo de Deus.

– Comunhão do Senhor ou Missa

– Banquete Pascal

– Participação Comum na Mesa do Senhor

– Prece Eucarística

– Liturgia da Palavra e Liturgia da Eucaristia

-Etc.

Todas estas expressões são aceitáveis quando usadas relativamente, mas quando usadas separadamente e de forma absoluta, como o são aqui, elas devem ser completamente rejeitadas.

É óbvio que a Novus Ordo enfatiza obsessivamente “ceia” e “memória”, ao invés da renovação (não sangrenta) do Sacrifício da Cruz. Mesmo a frase que na Instrução descreve a Missa como “o memorial da Paixão e Ressurreição”, é inexata.

A Missa é o memorial do único sacrifício, redentor em si mesmo, enquanto que a Ressurreição é o fruto que se segue deste sacrifício (8). Veremos mais tarde como, -e com que coerência sistemática-, tais equívocos são repetidos e reiterados, tanto na fórmula para a consagração quanto através da Novus Ordo como um todo.

 

Capítulo III

Voltamo-nos agora para os fins (propósitos) da Missa: o seu fim ultimo, o seu fim próximo e o seu fim imanente.

1. Propósito último.

O propósito último da Missa é o sacrifício de graças dado à Santíssima Trindade. Este fim está em conformidade com o propósito primário da Encarnação, explicitamente enunciado pelo próprio Cristo: “Ao entrar no mundo ele afirmou: Tu não quiseste sacrifício e oferenda. Tu, porém, formaste-me um corpo.” (9)

No Novus Ordo este propósito desapareceu:

– Do ofertório, de onde a oração “Recebe, Santa Trindade, esta oblação” (ou “Recebe Santo Padre”) foi removida.

– Da conclusão da Missa, onde a oração em honra da Trindade, “Agradável Vos seja, ó Trindade Santíssima, a oferta da minha vassalagem” foi eliminada.

– Do prefácio, já que o prefácio da Santíssima Trindade, anteriormente usado em todos os domingos depois da Epifania e do Pentecostes (ou seja, mais de 30 domingos cada ano), será daqui em diante usado somente na Festa da Santíssima Trindade.

2. Propósito ordinário.

O propósito ordinário da Missa é o sacrifício propiciatório — dando satisfações a Deus pelo pecado. Este fim foi também comprometido. Ao invés de enfatizar a remissão dos pecados dos vivos e dos mortos, o novo rito enfatiza o alimento e santificação dos presentes (10). Na última ceia, Cristo instituiu o Santo Sacramento e desta forma colocou-Se nele como Vítima, a fim de unir-Se a nós como Vítima. Mas este ato de imolação sacrifical ocorre antes do Santo Sacramento estar consumado e possui de antemão pleno valor redentor em relação ao Sacrifício sangrento no Calvário. A prova disto é que as pessoas que assistem não estão obrigadas a receber a Comunhão sacramentalmente (11).

3. Propósito imanente.

O propósito imanente da Missa é fundamentalmente o sacrifício. É essencial que o sacrifício, qualquer que seja sua natureza, seja agradável a Deus e aceito por Ele. Por causa do pecado original, entretanto, nenhum outro sacrifício que não seja o de Cristo pode pretender ser aceitável e agradável a Deus por direito próprio. Por esta razão, era eminentemente conveniente o Ofertório se referir desde o começo o Sacrifício da Missa ao Sacrifício de Cristo.

O Novus Ordo altera a natureza do ofertório sacrifical transformando-o em uma espécie de troca de oferendas entre o homem e Deus. O homem traz o pão e Deus o transforma no “pão da vida”; o homem traz o vinho e Deus o transforma na “bebida espiritual”: Bendito sejais, Senhor Deus de toda a criação, pois através de vossa bondade nós temos este pão (vinho) para oferecer, fruto da terra (vinha) e trabalho de mãos humanas, Ele se tornará para nós o pão da vida (bebida espiritual) (12).

As expressões “pão da vida” e “bebida espiritual”, são, é claro, completamente vagas e podem significar qualquer coisa. Novamente nós nos deparamos com o mesmo equívoco básico: De acordo com a nova definição da Missa, Cristo está presente entre os seus apenas espiritualmente; aqui, o pão e o vinho são apenas espiritualmente – e não substancialmente – modificados (13). Na Preparação das Oferendas um jogo similar de equívocos foi cometido. O antigo Ofertório continha duas magníficas orações, a “Deus qui humanae …” e a “Offerimus tibi…”:

– A primeira oração, recitada na preparação do cálice, começa da seguinte forma: “Ó Deus, que maravilhosamente criastes a dignidade da natureza humana e mais prodigiosamente a remitistes.” Ela lembrava a inocência do homem antes da queda de Adão e seu resgate pelo sangue de Cristo; ela resumia toda a economia do Sacrifício, de Adão até os dias de hoje.

– A segunda oração, que acompanha o oferecimento do cálice, incorpora a idéia de propiciação pelo pecado: ela implora a Deus por Sua misericórdia quando pede que a oferenda suba “com uma doce fragrância” na presença da divina Majestade, cuja clemência se implora. Como a primeira oração, esta ultima enfatiza admiravelmente a economia do Sacrifício.

No Novus Ordo ambas as orações foram eliminadas. Além disso, as repetidas petições a Deus para que Ele aceite o Sacrifício, contidas nas Preces Eucarísticas, foram também suprimidas; desta forma não há mais qualquer distinção clara entre o sacrifício humano e o divino.

Tendo removido a pedra fundamental, os reformadores tiveram de colocar em seu lugar uma carcaça. Tendo suprimido os verdadeiros propósitos da Missa, tiveram de substituí-los por seus próprios propósitos fictícios. Isto os forçou a introduzir ações enfatizando a união entre o padre e o fiel, ou entre os próprios fiéis – e levou à ridícula tentativa de superpor as oferendas aos pobres e pela Igreja à oferenda da hóstia para ser imolada. A singularidade fundamental da Vítima a ser sacrificada será então completamente obliterada. A participação na imolação de Cristo, a Vítima, transformar-se-á então em um encontro filantrópico ou um banquete de caridade.

 

Capítulo IV

Consideramos agora a essência do Sacrifício.

A Nova Ordenação da Missa não expressa mais de maneira explicita o mistério da Cruz. Ele é obscurecido, velado, e tornado impercebível aos fiéis por meio de múltiplos artifícios (14).

Eis alguns dos principais:

1. O significado do termo “oração eucarística”.

A Institutio (No 54, in fine) declara: “O significado da oração eucarística consiste em que a congregação toda se una a Cristo para reconhecer as grandes coisas que Deus fez e oferecer o sacrifício” (15).

A que sacrifício isto se refere? Quem oferece o sacrifício? Estas perguntas não são respondidas.

A definição que a Instrução (No 54) dá para a “Prece Eucarística” a reduz ao seguinte: “O centro e o ponto mais alto de toda a celebração se inicia: A Prece Eucarística, ou prece de ação de graças e santificação” (16)

Assim, os efeitos da prece tomam o lugar da causa [a ação de graças e a santificação tomam o lugar do sacrifício]. E sobre a causa, além disso, nem uma palavra é dita. A menção explícita do propósito da oferta sacrifical, feita no rito antigo com a oração: “Receba, Santíssima Trindade, esta oblação”, foi suprimida — e substituída por nada.

A mudança na fórmula revela a mudança na doutrina.

2. Obliteração do papel da presença real.

A razão pela qual o Sacrifício não é mais mencionado explicitamente é simples: o papel central da Presença Real foi suprimido. Ele foi removido do lugar que ocupava tão magnificamente na antiga liturgia. Na Instrução Geral a Presença Real é mencionada somente uma vez, e isto em uma nota de rodapé que é a única referência ao Concílio de Trento. Aqui novamente o contexto é o de alimentação. (17) Nunca é feita nenhuma alusão à presença real e permanente de Cristo nas espécies transubstanciadas, Corpo, Sangue, Alma e Divindade. A própria palavra transubstanciação é completamente ignorada. A invocação do Espírito Santo no Ofertório – a oração “Vinde, ó Deus Santificador” – foi igualmente suprimida, com sua petição para que Ele descesse sobre a oferenda para realizar novamente o milagre da Presença Divina, exatamente como Ele uma vez desceu sobre o útero da Virgem. Esta supressão é mais uma em uma série de negações e degradações da Presença Real, tácitas e sistemáticas. Finalmente, é impossível ignorar como os gestos e costumes rituais que expressam a fé na presença real foram abolidos ou modificados.

A Novus Ordo elimina:

– As genuflexões. Não mais do que três permanecem para o padre, e (com certas exceções) uma para os fiéis no momento da Consagração.

– A purificação dos dedos do padre sobre o cálice.

– A preservação dos dedos do padre de todo o contato profano após a consagração.

– A purificação dos recipientes sagrados, que não precisa ser feita imediatamente e nem feita no corpo.

– A proteção do conteúdo do cálice com a coberta do cálice.

– O dourado no interior dos recipientes sagrados.

– A consagração solene para altares móveis.

– As pedras consagradas e relíquias dos santos no altar móvel ou na “mesa” quando a Missa é celebrada fora de um lugar sagrado. (Este último ponto leva diretamente a “jantares eucarísticos” em casas particulares).

– As três toalhas no altar, reduzidas para uma.

– A ação de Graças para a Eucaristia feita ajoelhada, agora substituída pela grotesca prática do padre e do povo sentando-se para fazer a ação de graças – um acompanhamento bastante lógico para o ato de receber a comunhão em pé.

– Todas as antigas prescrições a serem observadas no caso de uma hóstia que caía no chão, as quais agora se reduzem a uma única e quase sarcástica instrução: “Ela deve ser recolhida de forma reverente”. (18)

Todas estas supressões somente enfatizam a maneira ultrajante que a fé no dogma da Presença Real é implicitamente repudiada.

3. O papel do altar principal

O altar é quase sempre chamado de mesa: (19) “…o altar ou a mesa do Senhor que é o centro de toda a liturgia eucarística…” (20) O altar deve agora estar destacado da parede dos fundos para que o padre possa andar em torno dele e celebrar a missa de frente para o povo. (21) A Instrução afirma que o altar deve estar no centro dos fiéis reunidos, a fim de que sua atenção seja espontaneamente atraída para ele. Comparando este artigo com outro, entretanto, ele parece excluir totalmente a reserva do Santo Sacramento no altar onde a Missa é celebrada. (22) Isto assinalará uma irreparável dicotomia entre a presença de Cristo como Sumo Sacerdote no padre celebrando a Missa e a presença sacramental de Cristo. Antes, elas eram uma única coisa. (23)

A Instrução recomenda que o Santo Sacramento agora seja mantido em um lugar em separado para a devoção particular, como se Ele fosse uma espécie de relíquia. Desta forma, ao entrar em uma Igreja, a atenção das pessoas será atraída não para um sacrário, mas sim para uma mesa vazia. Uma vez mais, piedade particular é colocada em oposição à piedade litúrgica, e altar é colocado em oposição a altar.

A Instrução recomenda que as hóstias distribuídas para a Comunhão sejam aquelas consagradas na mesma Missa. Ela também recomenda que se consagre uma grande hóstia, (24) a fim de que o padre possa dividir uma parte dela com os fiéis.

Trata-se sempre da mesma atitude aviltante tanto para com o sacrário quanto para qualquer forma de piedade Eucarística fora da Missa. Isto constitui um novo e violento golpe contra a fé no fato de que a Presença Real continua enquanto subsistem as espécies consagradas. (25)

4. As fórmulas para a consagração.

A antiga fórmula para a Consagração era uma fórmula “sacramental” propriamente falando, e não meramente uma “narrativa”. Isto foi demonstrado anteriormente por três coisas:

– O Texto Empregado.

O texto da Escritura não foi usado palavra por palavra tal como na fórmula para a consagração no antigo Missal. A expressão de São Paulo, o “Mistério da Fé”, foi inserida no texto como uma expressão imediata da fé do padre no mistério que a Igreja torna real através do sacerdócio hierárquico.

– Tipografia e Pontuação.

No antigo Missal, um ponto final e um novo parágrafo separavam as palavras “Tomai isto e comei” das palavras da forma sacramental, “Este é Meu Corpo.” O ponto final e o novo parágrafo marcavam a passagem de um modo meramente “narrativo” para um modo “sacramental” e “afirmativo” que é próprio de uma ação verdadeiramente sacramental. Além do mais, no Missal Romano as palavras da Consagração eram impressas em tipos maiores e no centro da página. Freqüentemente uma tinta de cor diferente era usada. Tudo isto destacava claramente as palavras de um contexto meramente histórico, e, em conjunto, davam à fórmula da Consagração um valor próprio e autônomo.

– A Anamnese.

O Missal Romano acrescentou as palavras “Todas as vezes que fizerdes estas coisas, fazei-as em memória de Mim” depois da fórmula da Consagração. Esta fórmula referia-se não somente à lembrança de Cristo ou de algum evento passado, mas sim à ação de Cristo aqui e agora. Tratava-se de um convite para que nos lembremos não somente de Sua Pessoa ou da Santa Ceia, mas também para que “façamos” o que Ele fez “da maneira” que Ele fez. Na Novus Ordo, as palavras de São Paulo, “Fazei isto em memória de Mim,” substituirão agora a antiga fórmula e serão proclamadas diariamente em vernáculo por toda a parte. Isto inevitavelmente fará os ouvinte concentrarem-se na lembrança de Cristo como o fim da ação Eucarística, ao invés de como seu início. A idéia de comemoração irá portanto tomar o lugar rapidamente da idéia da Missa como uma ação Sacramental. (26)

A Instrução Geral enfatiza o modo narrativo mais adiante quando descreve a Consagração como a “Instituição Narrativa” (27) e quando acrescenta que “em cumprimento à ordem dada por Cristo… a Igreja guarda sua memória.” (28)

Tudo isto, em resumo, altera o modus significandi das palavras da Consagração – como elas mostram a ação sacramental ocorrendo. O padre agora pronuncia as fórmulas para a Consagração como parte de uma narrativa histórica, ao invés de como o representante de Cristo emitindo o julgamento afirmativo “Este é Meu Corpo.” (29)

Além disso, a aclamação memorial do povo que segue-se imediatamente à Consagração — “Vossa santa morte nós proclamamos, Ó Senhor… até a Vossa vinda” – introduz a mesma ambigüidade sobre a Presença Real sob a forma de um alusão ao Julgamento Final. Quase sem pausa, o povo proclama sua expectativa por Cristo no fim dos tempos no exato momento em que Ele está substancialmente presente no altar – como se a vinda real de Cristo fosse ocorrer somente no final dos tempos, ao invés de lá mesmo no próprio altar.

A Segunda aclamação memorial opcional apresenta isto ainda mais forte: “Quando nós comemos este pão e bebemos deste cálice, nós proclamamos Vossa morte, Senhor Jesus, até Vossa vinda em glória.” A justaposição de duas realidades completamente diferentes — imolação e refeição, a Presença Real e a Segunda Vinda de Cristo — eleva a ambigüidade a novas alturas. (30)

 

Capítulo V

Consideramos agora a questão de quem realiza o Sacrifício. No rito antigo eram, em ordem: Cristo, o padre, a Igreja e os fiéis.

1. O papel dos fiéis no Novo Rito.

Na Missa Nova, o papel atribuído aos fiéis é autônomo, absoluto – e portanto completamente falso. Isto é óbvio não apenas a partir da nova definição da Missa (“… a assembléia sagrada ou congregação do povo reunido…”), mas também a partir da definição dada pela Instrução Geral de que a saudação de abertura do padre destina-se a levar à assembléia reunida a presença do Senhor:

Então através de sua saudação o padre declara à assembléia reunida que o Senhor está presente. Esta saudação e resposta expressam o mistério da Igreja reunida. (31)

Esta é a verdadeira presença de Cristo? Sim, mas somente uma presença espiritual. Um mistério da Igreja? Certamente – mas somente na medida em que a assembléia manifesta-se e pede pela presença de Cristo. Esta noção é enfatizada repetidamente por:

– Referências obsessivas ao caráter comunitário da Missa. (32)

– A distinção não mencionada entre “Missa com a Congregação” e “Missa sem a Congregação”. (33)

– A descrição da Prece dos Fiéis como uma parte da Missa onde “o povo, exercendo sua função sacerdotal, intercede por toda a humanidade.” (34)

A “função sacerdotal dos fiéis” é apresentada equivocadamente como se ela fosse autônoma, omitindo-se a menção de que ela é subordinada ao padre, que, como mediador consagrado, apresenta as petições do povo a Deus durante o cânone da missa.

A Prece Eucarística III da Novus Ordo dirige as seguintes orações ao Senhor:

“De eras em eras Vós reunis o povo contigo, para que de leste a oeste uma oferenda perfeita possa ser oferecida à glória de Vosso nome”.

O “para que” na passagem faz parecer que o povo, e não o padre, é o elemento indispensável na celebração. Uma vez que nunca é deixado claro, mesmo aqui, quem oferece o sacrifício, o próprio povo aparece como possuindo um poder sacerdotal autônomo. (35) A partir deste passo, não seria surpreendente se, dentro em pouco, fosse permitido ao povo unir-se ao padre para pronunciar as palavras da consagração. De fato, em alguns lugares isto já aconteceu.

2. O papel do padre no Novo Rito.

O papel do padre é minimizado, alterado e falsificado:

– Em relação ao povo, ele é agora um mero presidente ou irmão, ao invés do ministro consagrado que celebra a Missa “na pessoa de Cristo.”

– Em relação à Igreja, o padre é agora meramente um membro dentre outros, alguém retirado do povo. Ao tratar da invocação do Espírito Santo na Oração Eucarística (a epiclesis), a Instrução Geral atribui as petições anonimamente à Igreja. (36) O papel do padre desvaneceu-se.

– No novo Rito de Penitência que inicia a Missa, o Confiteor tornou-se agora coletivo; assim o padre não é mais juiz, testemunha e intercessor perante Deus. É, portanto, lógico que ele não mais recite a oração de absolvição que se seguia e que foi agora suprimida. O padre está agora “integrado” com seus irmãos; mesmo o acólito que serve em uma “Missa sem congregação” chama o padre de “irmão”.

– Anteriormente, a Comunhão do padre era ritualmente distinta da Comunhão do povo. A Novus Ordo suprime esta distinção importante. Este era o momento em que Cristo, o Eterno Sumo Sacerdote, e o padre que atua na pessoa de Cristo encontravam-se em estreita união e completavam o Sacrifício.

– Além disso, nenhuma palavra é dita sobre o poder do padre como “sacrificador”, sobre sua ação consagratória ou sobre como, na função de intermediário, ele realiza a presença Eucarística. Ele agora não parece ser nada além de um ministro protestante.

– Abolindo ou tornando opcionais muitas das vestimentas sacerdotais – em alguns casos somente uma alva e uma estola são exigidas. (37) – o novo rito oblitera mais ainda a conformidade do padre com Cristo. O padre não é mais vestido com as virtudes de Cristo. Ele é agora apenas um “graduado” com um ou dois emblemas que mal o separam da multidão. (38)–“um pouco mais homem do que o resto,” para citar uma definição involuntariamente cômica de um Dominicano. (39) Aqui, como quando colocaram altar contra altar, os reformadores separaram o que estava unido: o Sacerdócio de Cristo do Verbo de Deus.

3. O papel da Igreja no Novo Rito.

Finalmente, há a posição da Igreja em relação a Cristo. Em somente um exemplo. – em seu tratamento da forma da Missa sem uma congregação – a Instrução Geral admite que a Missa é “a ação de Cristo e da Igreja.” (40) No caso da Missa com uma congregação, entretanto, o único objeto que a Instrução alude como “lembrança de Cristo” e santificando os presentes. “O padre celebrante”, diz ela, “…une-se ao povo ao oferecer o sacrifício através de Cristo no Espírito ao Pai” – ao invés de dizer que o próprio povo se une a Cristo que Se oferece ao Pai através do Espírito Santo.

Dentro deste contexto, os seguintes pontos também devem ser considerados:

– As diversas omissões graves da frase “através de Cristo nosso Senhor”, uma fórmula que garante que Deus ouvirá as preces da Igreja em todos os tempos. (42)

– Um “pascalismo” que a tudo penetra – uma ênfase obsessiva na Páscoa e na Ressurreição –quase como se não houvesse outros aspectos da comunicação da graça, os quais, ainda que um tanto diferentes, são igualmente importantes.

– O estranho e dúbio “escatologismo” – uma ênfase sobre a Segunda Vinda de Cristo e o fim dos tempos – por meio do qual a permanente e eterna realidade da comunicação da graça é reduzida a algo restrito aos limites do tempo. Nós ouvimos falar de um povo de Deus em marcha, uma Igreja peregrina – uma Igreja não mais Militante contra as forças das trevas, mas uma Igreja que, tendo perdido seu vínculos com a eternidade, marcha para um futuro divisado em termos puramente temporais.

Na Oração Eucarística IV a Igreja (como Una, Santa e Apostólica) é degradada pela eliminação da petição do Cânone Romano por todos os fiéis ortodoxos que mantêm a fé Católica e Apostólica. Estes são agora meramente todos os que a buscam com sinceridade de coração.

A Recordação dos Mortos no cânon é oferecido não como antes, para aqueles que se foram antes de nós com o signo da fé, mas meramente para aqueles que se foram na paz de Cristo. A este grupo – com o posterior detrimento da noção da unidade e visibilidade da Igreja – a Oração Eucarística IV acrescenta a grande multidão de “todos os mortos cuja fé é conhecida por Vós somente.”

Além disto, nenhuma das três novas Orações Eucarísticas faz alusão a um estado de sofrimento por aqueles que morreram; nenhuma delas permite ao padre fazer lembranças especiais pelos mortos. Tudo isso necessariamente enfraquece a fé na natureza propiciatória e redentória do sacrifício. (43) Por toda a parte omissões dessacralizadoras aviltam o mistério da Igreja. Acima de tudo, a natureza da Igreja como uma hierarquia sagrada é desconsiderada. A segunda parte do novo Confiteor coletivo reduz os Anjos e os Santos ao anonimato na primeira parte, na pessoa de São Miguel Arcanjo eles desapareceram como testemunhas e juízes. (44)

No prefácio da Oração Eucarística II – e isto não possui precedentes – as várias hierarquias angélicas desapareceram. Também foi suprimida, da terceira prece do antigo Cânone, a memória dos santos Pontífices e Mártires sobre quem a Igreja de Roma foi fundada; sem dúvida, foram estes os santos que transmitiram a tradição apostólica finalmente completa sob o Papa São Gregório como a Missa Romana. A oração após o Pai Nosso, a Libera Nos, agora suprime a menção da Santa Virgem, dos Santos Apóstolos e de todos os santos; sua intercessão não é mais pedida, nem mesmo em tempos de perigo.

Por toda a parte, exceto no Cânone Romano, a Novus Ordo elimina não somente os nomes dos Apóstolos Pedro e Paulo, fundadores da Igreja em Roma, mas também os nomes dos outros apóstolos, a fundação e marco da Igreja única e universal. Esta omissão intolerável, que se estende até mesmo às três novas Orações Eucarísticas, compromete a unidade da Igreja.

A Nova Ordenação da Missa ataca mais adiante o dogma da Comunhão dos Santos através da supressão da benção e saudação “O Senhor esteja convosco” quando o padre reza a missa sem um coroinha. Ela também elimina a Ite Missa Est, mesmo quando a Missa é celebrada com um coroinha. (45)

O duplo Confiteor no início da Missa mostrava o quanto o padre, vestido como o ministro de Cristo e fazendo uma profunda reverência, reconhecia-se como indigno tanto da sublime missão quanto do “tremendo mistério” que ele iria representar. Então, na oração “Perdoai os nossos pecados” ele reconhecia esta indignidade para entrar no Santo dos Santos, recomendando a si próprio com a oração “Nós Lhe Rogamos, Ó Senhor” aos méritos e à intercessão dos mártires cujas relíquias estavam guardadas no altar. Ambas as orações foram suprimidas. O que foi dito anteriormente sobre a eliminação do duplo Confiteor do rito da Comunhão é igualmente relevante aqui.

A configuração exterior do sacrifício, um sinal de seu caráter sagrado, foi profanada. Observe-se, por exemplo, as novas provisões para a celebração da Missa fora de uma Igreja: a uma simples mesa, sem um altar-pedra consagrado nem relíquias e coberta com um único pano, é permitido servir de altar. (46) Aqui também se aplica tudo o que dissemos anteriormente com relação à Presença Real – dissociação do “banquete” e do Sacrifício da ceia da Presença Real em si mesma.

O processo de dessacralização é completado graças ao novo e grotesco procedimento para a Procissão do Ofertório, a referência a pão ordinário (ao invés de sem fermento), a permissão aos coroinhas ( e mesmo aos leigos quando do recebimento da Comunhão sob ambas as espécies) de manusear os recipientes sagrados. (47) Em seguida há a atmosfera de distração criada na Igreja: as intermináveis indas e vindas dos padres, diáconos, subdiáconos, cantores, comentadores – o próprio padre torna-se um comentador, constantemente encorajado a “explicar” o que vai fazer — leitores (homens e mulheres), de coroinhas ou leigos dando boas vindas às pessoas na porta e conduzindo-as a seus lugares enquanto outros carregam e selecionam oferendas. E numa era de frenesi por um “retorno às escrituras” nós agora encontramos, em contradição tanto com o Velho Testamento quanto com São Paulo, a presença de “mulheres apropriadas” que pela primeira vez na história da Igreja são autorizadas a proclamar as leituras da Escritura e “executar outros ministérios fora do santuário”. (48) Finalmente, há a mania da concelebração, que virá a destruir a piedade eucarística do padre pelo obscurecimento da figura central de Cristo, único sacerdote e Vítima, e por sua dissolução na presença coletiva dos concelebrantes. (49)

 

Capítulo VI

Nós nos limitamos acima a um breve estudo da Novus Ordo onde ela se desvia de forma mais séria da teologia da Missa Católica. Nossas observações versam sobre desvios que são típicos. Preparar um estudo completo de todas as armadilhas, perigos e elementos psicológica e espiritualmente destrutivos que o novo rito contém, seja no texto, nas rubricas ou nas instruções, seria um empreendimento vasto. Passamos apenas de relance pelas três novas Orações Eucarísticas, uma vez que elas já se apresentaram a repetidas e abalizadas críticas. A segunda causou escândalo imediato entre os fiéis devido à sua brevidade. (50) Da Oração Eucarística II bem se disse que um padre que não acreditasse nem na Transubstanciação nem no caráter sacrificial da Missa poderia recitá-la com a consciência perfeitamente tranqüila, e que, além disso, um ministro protestante também poderia usá-la em sua própria celebração. O novo missal foi apresentado em Roma como “uma fonte abundante para o trabalho pastoral”, como “um texto mais pastoral do que jurídico”, que a conferência nacional dos bispos poderia adaptar ao “espírito” de diferentes povos. Além disso, a Seção Um da Nova Congregação para o Culto Divino será agora responsável “pela publicação e constante revisão dos livros litúrgicos.”

Esta idéia foi ecoada recentemente no boletim oficial dos Institutos Litúrgicos da Alemanha, Suíça e Áustria:

– Os textos latinos devem ser agora traduzidos para as línguas das diversas nações.

– O “estilo romano” deve ser adaptado à individualidade de cada Igreja local.

– Aquilo que foi concebido em um plano atemporal deve agora ser transposto no contexto cambiável das situações concretas, e no fluxo constante da Igreja universal e sua miríade de congregações. (51)

A própria Constituição Apostólica, com a promulgação da Novus Ordo Missae, desfere um golpe mortal na língua universal da Igreja quando – contrariando um desejo expresso do Concílio Vaticano II – afirma inequivocamente que “em grande diversidade de línguas, uma [?] única prece ascenderá mais perfumada do que o incenso.”

O fim do latim pode, portanto, ser dado como certo, o Canto Gregoriano — que o Vaticano II reconheceu como uma característica distintiva da liturgia romana, decretando que a ele “fosse dado um lugar de honra nos serviços litúrgicos” (52) — irá logicamente seguir este caminho, dada, entre outras coisas, a liberdade conferida na escolha dos textos para o Intróito e para o Gradual.

Desde o princípio, portanto, o novo rito foi pluralista e experimental, ligado a um tempo e lugar. Uma vez que a unidade de culto foi estilhaçada de uma vez por todas, que base existirá para a unidade da fé que a acompanhava e que, fomos informados, seria sempre defendida sem compromisso?

É óbvio que a Nova Ordenação da Missa não possui a intenção de apresentar a fé ensinada pelo Concílio de Trento. Mas é a esta fé que a consciência católica está para sempre ligada. Desta forma, com a promulgação da Nova Ordenação da Missa, a verdadeira fé católica depara-se com a trágica necessidade de fazer uma escolha.

 

Capítulo VII

A Constituição Apostólica menciona explicitamente as riquezas de piedade e doutrina que a Novus Ordo supostamente toma emprestado das Igrejas Orientais. Mas o resultado é tão distante e, de fato, oposto às liturgias orientais que só pode deixar os fiéis daqueles ritos revoltados e horrorizados.

O que significam estes empréstimos ecumênicos? Basicamente, a introdução de múltiplos textos para a Oração Eucarística (a anafora) – nenhum dos quais se aproxima de seus similares orientais em complexidade ou beleza –, a permissão da comunhão sob ambas as espécies e o uso de diáconos. Contra isto, a Nova Ordenação da Missa parece ter deliberadamente cortado todos os elementos da liturgia romana que mais se aproximavam dos ritos orientais. (53) Ao mesmo tempo, ao abandonar seu inconfundível e imemorial caráter romano, a Novus Ordo perde suas próprias preciosidades espirituais. No lugar delas estão elementos que aproximam o novo rito de certas liturgias protestantes, e não se tratam sequer daquelas mais próximas do catolicismo. Ao mesmo tempo, estes novos elementos degradam a liturgia romana e ajudam-na a se alienar do Oriente., como fizeram as reformas que precederam a Novus Ordo.

Em compensação, a nova liturgia irá deliciar todos aqueles grupos à beira da apostasia que agora, durante uma crise espiritual sem precedentes, promovem a devastação dentro da Igreja através do envenenamento de Seu organismo e do enfraquecimento de Sua unidade em matéria de doutrina, culto, moral e disciplina.

 

Capítulo VIII

São Pio V preparou o Missal Romano (como agora nos lembra a presente Constituição Apostólica) como um instrumento de unidade entre os católicos. Em conformidade com as prescrições do Concílio de Trento, o missal deveria excluir todos os perigos tanto para o culto litúrgico quanto para a própria fé, então ameaçados pela revolta protestante. A grave situação justificou plenamente – e até mesmo tornou profética – a advertência dada pelo santo Pontífice em 1570 no fim da Bula que promulgava o seu Missal:

Quem quer tente alterar isto deve saber que incorrerá na ira do Poderoso Deus e dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo. (54)

Quando a Novus Ordo foi apresentada no Gabinete de Imprensa do Vaticano, foi afirmado de forma impudente que as condições que inspiraram os decretos do Concílio de Trento não mais existiam. Não somente estes decretos ainda se aplicam hoje mas também as condições são infinitamente piores. Foi precisamente para repelir aquelas ciladas que em todos os tempos ameaçam o puro Depósito da Fé, (55) que a Igreja, sob inspiração divina, estabeleceu definições dogmáticas e pronunciamentos doutrinários como suas defesas. Estas por suas vez influenciaram imediatamente seu culto, que se tornou o mais completo monumento à sua fé. Tentar levar este culto de volta às práticas da antigüidade cristã e recriar artificialmente a espontaneidade original dos tempos antigos significa ocupar-se daquele “arqueologismo insalubre” que Pio XII tão categoricamente condenou. (56) Trata-se, além do mais, de desmantelar todas as defesas erigidas para proteger o rito e de afastar a beleza que o enriqueceu durante séculos. (57) E tudo isto em um dos mais críticos momentos – se não o mais crítico – da história da Igreja!

Hoje, a divisão e o cisma são oficialmente reconhecidos como existentes não somente fora da Igreja, mas também dentro dela. (58) A unidade da Igreja não está apenas ameaçada, mas já foi tragicamente comprometida. (59) Erros contra a fé não são meramente insinuados, mas agora –como já foi igualmente reconhecido – são impostos à força através de abusos litúrgicos e aberrações. Abandonar uma tradição litúrgica que por quatro séculos manteve-se como um sinal e um compromisso da unidade de culto, (60) e substituí-la por outra liturgia que, devido às inumeráveis liberalidades que ela implicitamente autoriza, não pode ser outra coisa além de um sinal de divisão –uma liturgia na qual fervilham insinuações ou erros manifestos contra a integridade da fé católica –é, nós nos sentimos no dever de consciência de declarar isto, um erro incalculável.

 

Corpus Domini, 5 de junho de 1969.

 

ABREVIAÇÕES:

DB: Denziger-Bannwart. “Enchrindion Symbolorum.” 32ª edição. Barcelona, Frieburg e Roma: Herder, 1957.

DOL: “Documents on the Liturgy, 1963-1979: Conciliar, Papal, and Curial Texts.” (Documentos sobre a liturgia, 1963-1979: Textos Conciliares, Papais e Curiais.) Traduzidos, compilados e arranjados pelo Comitê da Língua Inglesa na Liturgia. Collegeville, MN: Liturgical Press, 1982.

GI: General Instruction on the Roman Missal. (Instrução Geral sobre o Missal Romano) Institutio Generalis Missalis Romani. 1ª edição, 6 de abril de 1969. Em Paulo VI, Missale Romanum…Pauli VI Promulgatum: Ordo Missae, 12-76. 2ª edição. Março de 1970. Traduzido em DOL 1391-1731, com as variação entre a editio typica altera de 1975 e a 1ª edição fornecidas nas notas de rodapé.

PTL: “Papal Teachings: The Liturgy,” (Ensinamentos Papais: A Liturgia) selecionados e arranjados pelos Monges Beneditinos de Solesmes, traduzido pelas Filhas de São Paulo. Boston: St. Paul Editions, 1962.

SC: Concílio Vaticano II. Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Consilium, 4 de dezembro de 1963. Traduzida em DOL 1-131.

 

NOTAS:

1. “As orações de nosso cânone são encontradas no tratado De Sacramentis (4º, 5º séculos)…Nossa Missa remonta, sem alterações essenciais, à época em que ela se desenvolveu pela primeira vez a partir das mais antigas liturgias comuns. Ela ainda preserva a fragrância daquela liturgia primitiva, nos tempos em que César governou o mundo e esperou extinguir a fé cristã, tempos em que nossos antepassados reuniam-se antes do amanhecer para cantar um hino a Cristo seu Deus… Não há em toda a cristandade um rito tão venerável como aquele do Missal Romano.” (Rev. Adrian Fortescue). “O Cânone Romano, tal como é hoje, remonta à São Gregório Magno. No ocidente ou no oriente não há nenhuma oração eucarística remanescente hoje que possa orgulhar-se de tal antigüidade. Para a Igreja Romana descartá-lo seria o equivalente, aos olhos não somente dos Ortodoxos, mas também dos Anglicanos e até mesmo dos protestantes que ainda possuem algum sentido do que seja a tradição, a negar qualquer pretensão de ser a verdadeira Igreja Católica.” (Rev. Louis Bouyer)

2. SC 50, DOL 50.

3. Uma nota de rodapé na Instrução nos remete a dois textos do Vaticano II. Mas nada nos textos justifica a nova definição, como é evidente a partir da seguinte citação: “Através do ministério dos bispos, Deus consagra padres… Exercendo funções sagradas eles portanto agem como seus ministros, exercendo continuamente na liturgia sua função sacerdotal em nosso favor…Celebrando a Missa as pessoas oferecem sacramentalmente o sacrifício de Cristo.” Decreto sobre o ministério e a vida dos padres “Presbyterum Ordinis,” 7 de dezembro de 1965, Seção 5, DOL 260. “Pois na liturgia Deus está falando com seu povo e Cristo ainda está proclamando seu Evangelho. E o povo está respondendo a Deus tanto através de canções quanto de orações. Além disso, as orações dirigidas a Deus através do padre, que preside a assembléia na pessoa de Cristo, são ditas em nome de todo o santo povo e de todos os presentes.” SC 33, DOL 33. Está perdido quem quer que tente explicar como a definição da Instrução pode ter se baseada nestes textos. Notamos também como a nova definição da Missa altera o que o Vaticano II instituiu no Presbyterum Ordinis seção 5: “A assembléia eucarística é o centro da congregação dos fiéis.” Uma vez que o centro na Nova Ordenação da Missa foi fraudulentamente subtraído, a congregação agora usurpou seu lugar.

4. GI 7, DOL 1937 fn.

5. GI 8, DOL 1398; GI 48, DOL 1438 fn. GI 55.d, DOL 1445 fin; GI 56, DOL 1446.

6. O Concílio de Trento reafirma a Presença Real através das seguintes palavras: “Para começar, o santo concílio ensina e professa aberta e diretamente que no abençoado Sacramento da Santa Eucaristia, após a consagração do pão e do vinho, nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro homem e Deus, está verdadeiramente, realmente e substancialmente contido nas espécies perceptíveis do pão e do vinho.” DB 874. A sessão 22 que nos interessa diretamente em nove cânones. (DB 937a-956): 1) A Missa não é uma mera representação simbólica, mas sim um sacrifício visível e verdadeiro, instituído “para re-apresentar o sacrifício sangrento que Cristo efetuou na Cruz de uma vez por todas. Era para perpetuar sua memória até o fim do mundo. Seu força salutar deveria ser aplicada para remissão dos pecados que cometemos diariamente.” DB 938. 2) “Declarando a si próprio como sacerdote constituído para sempre de acordo com a ordem de Melquisedeque, [Nosso Senhor] ofereceu seu corpo e sangue sob as espécies do pão e do vinho a Deus Pai e deu Seu corpo e sangue sob as mesmas espécies aos apóstolos para que estes as recebessem, fazendo-os naquele momento sacerdotes do Novo Testamento…Ele ordenou os apóstolos e seus sucessores no sacerdócio para oferecer este sacrifício quando disse: ‘Fazei isto em memória de mim,’ como a Igreja Católica sempre entendeu e ensinou.” DB 938. O celebrante, oferecedor e sacrificador, é o padre ordenado, e não o povo de Deus ou a assembléia: “Se alguém disser que por estas palavras, ‘Fazei isto em memória de mim,’ Cristo não fez dos apóstolos sacerdotes, ou que ele não estabeleceu que eles e outros sacerdotes devem oferecer seu corpo e sangue: que ele seja anátema” cânone 2, DB 949. O Sacrifício da Missa é um verdadeiro sacrifício propiciatório, e não um simples memorial do sacrifício oferecido na Cruz: “Se alguém disser que o Sacrifício da Missa é meramente um oferecimento de louvor e de ação de graças, ou que é um simples memorial do sacrifício oferecido na cruz e não propiciatório, ou que ele beneficia somente aqueles que comungam; e que ele não deveria ser oferecido aos vivos e aos mortos, pelos pecados, punições, satisfações e outras necessidades: que ele seja anátema.” Cânon 3, DB 950. Também deve-se ter em mente o cânone 6: “Se alguém disser que há erros no cânone da Missa e que ele deva, portanto, ser eliminado: que ele seja anátema.” DB 953. Da mesma forma o cânone 8: “Se alguém disser que as Missas onde somente o sacerdote comunga sacramentalmente são ilícitas e devem ser eliminadas: que ele seja anátema.” DB 955.

7. É talvez supérfluo lembrar que se um só dogma fosse negado, todos os dogmas ruiriam ipso facto, à medida que o princípio da infalibilidade do magistério supremo hierárquico, seja conciliar ou papal, seria assim destruído.

8. À luz da primeira oração após a consagração no Cânone Romano (Unde et memores), a ascensão também poderia ser acrescentada. A Unde et memores, entretanto, não trata realidades diferentes como se fossem uma só coisa. Ela faz uma distinção clara e precisa: “trazendo à mente…a abençoada paixão, e também a Sua elevação dos mortos e Sua gloriosa ascensão aos céus.

9. Sl. 50:7-9, em Heb. 10:5.

10. GI 54, DOL 1444.

11. Esta mudança de ênfase ocorre nas três novas Orações Eucarísticas, que eliminam a Recordação dos Mortos e qualquer menção às almas sofrendo no purgatório, a quem se aplica o sacrifício propiciatório.

12. Veja-se Mysterium Fidei, onde o Papa Paulo VI condena os erros do simbolismo juntamente com as novas teorias da “transignificação e transfinalização”: “não é permissível… enfatizar o valor simbólico do sacramento como se o simbolismo, que certamente todos reconhecem na Eucaristia, expressasse plena e exaustivamente o sentido da presença de Cristo; ou discutir o mistério da transubstanciação sem mencionar a maravilhosa alteração de toda a substância do pão no corpo e de toda substância do vinho no sangue de Cristo, como afirmado pelo Concílio de Trento, de maneira que somente o que é chamado de ‘transignificação’ ou ‘transfinalização’ está envolvido.” Encíclica Mysterium Fidei sobre a doutrina e culto da Eucaristia, 3 de setembro de 1965, Seção 11, DOL 1155.

13. A Mysterium Fidei denuncia e condena amplamente a introdução de nova fórmulas ou expressões que, apesar de encontrarem-se nos textos dos Santos Padres, dos Concílios e do Magistério da Igreja, são utilizadas em um sentido unívoco que não está subordinado à substância da doutrina com a qual eles formam um todo inseparável. (v.g., “nutrição espiritual,” “alimento espiritual, bebida espiritual”, etc.): “Não somente a integridade da fé deve ser salvaguardada, mas também o seu modo de expressão; que nós não introduzamos falsas noções sobre as realidade mais sublimes através do uso descuidado de palavras.” Ele cita Santo Agostinho: “Nós, entretanto, temos a obrigação de falar de acordo com uma norma precisa, que a imprudência de nossas palavras não dê lugar à idéias ímpias a respeito das próprias realidades a que estas palavras se referem.” Ele continua: “Devemos respeitar religiosamente a norma de terminologia; após séculos de esforço e sob a proteção do Espírito Santo, a Igreja estabeleceu-a e confirmou-a pela autoridade dos concílios; esta norma freqüentemente veio a ser a divisa e o estandarte da fé ortodoxa. Que ninguém ouse alterá-la arbitrariamente ou sob o pretexto de novos conhecimentos…Da mesma forma nós não devemos tolerar qualquer desejo pessoal de modificar as fórmulas através das quais o Concílio de Trento estabeleceu o mistério da Eucaristia para a crença. Seções 23, 24; DOL 1167-8.

14. Contradizendo o que o Vaticano II prescreveu. (Cf. SC 48, DOL 48).

15. GI 54, DOL 1444.

16. GI 54, DOL 1444.

17. GI 241 fn. 69, DOL 1630.

18. GI 129, DOL 1629.

19. A Instrução reconhece a função primária do altar somente uma vez: “No altar, o sacrifício da cruz é tornado presente sob símbolos sacramentais.” GI 259, DOL 1649. Esta única referência parece insuficiente para remover os equívocos resultantes do outro termo, usado de forma mais freqüente.

20. GI 49, DOL 1489. Cf. GI 262, DOL 1652.

21. GI 262, DOL 1652.

22. GI 262, DOL 1652, e GI 276, DOL 1666.

23. “Separar o tabernáculo do altar é separar duas coisas que por sua origem e natureza devem permanecer unidas.” Pio XII, “Alocução ao Congresso Internacional sobre Liturgia Pastoral” 22 de setembro de 1956, PTL 817. Ver também Pio XII, Encíclica Mediator Dei, 20 de novembro de 1947, PTL 550, citada abaixo.

24. Raramente o Novus Ordo usa a palavra hóstia. Nos livros litúrgicos este termo tradicional possui um significado preciso: “vítima.” Novamente nós nos deparamos com uma tentativa sistemática de enfatizar somente “ceia” e “refeição”.

25. Seguindo a sua prática habitual de substituir uma coisa por outra, os reformadores tornaram a presença de Cristo na palavra proclamada igual à Presença Real. (Ver GI 7, 54; DOL 1397, 1444). Mas a presença de Cristo quando a escritura é proclamada possui uma natureza diferente e não possui realidade a não ser quando está acontecendo (in usu). A Presença Real de Cristo na hóstia consagrada, por outro lado, é objetiva, permanente e independente da recepção do sacramento. As fórmulas: “Deus está falando a seu povo,” e “Cristo está presente aos fiéis através de sua palavra” (GI 33, DOL 1423) são tipicamente protestantes. Estritamente falando, elas não significam nada, uma vez que a presença de Deus na palavra é mediata, ligada a um ato ou condição espiritual individual, e somente temporário. Esta fórmula conduz a um erro trágico: a conclusão, expressa ou subentendida, que a Presença Real continua somente enquanto o sacramento está sendo usado –recebido no momento da comunhão, por exemplo – e que a Presença Real termina quando o uso termina.

26. Como a Instrução Geral a descreve, a ação sacramental teve origem no momento em que Nosso Senhor deu aos apóstolos Seu corpo e sangue “para comer” sob as aparências de pão e vinho. Desta forma, a ação sacramental não mais consiste na ação consagratória e na separação mística entre o corpo e o sangue – a própria essência do Sacrifício Eucarístico. Ver Mediator Dei, esp. parte II, Capítulo I, PTL 551, ff.

27. GI 55.d, DOL 1445 fn..

28. GI 55.d, DOL 1445.

29. Da forma como aparecem no contexto do Novus Ordo, as palavras da consagração poderiam ser válidas em virtude das intenções do padre. Mas, uma vez que sua validade não advém mais da força das próprias palavras sacramentais (ex vi verborum) – ou mais precisamente, do significado que o antigo rito da Missa conferia à fórmula – as palavras de consagração no Novo Ordinário da Missa poderiam também não ser válidas. No futuro os padres que não receberem formação tradicional e que confiarem no Novus Ordo para a intenção de “fazer o que a Igreja faz” farão consagrações válidas na Missa? Pode-se duvidar disto.

30. Que não se diga, de acordo com os métodos protestantes de estudos bíblicos, que estas frases estão no mesmo contexto escritural. A Igreja sempre evitou superpor e justapor os textos, precisamente a fim de evitar confundir as diferentes realidades que eles expressam.

31. GI 28, DOL 1418

32. GI 74-152, DOL 1464-1542.

33. GI 209-231, DOL 1599-1621.

34. GI 45, DOL 1435.

35. Contra os Luteranos e Calvinistas que ensinam que todos os cristãos são sacerdotes e oferecedores da Santa Ceia, ver A. Tanquerey Synopsis Theologiae Dogmaticae, (Paris, Tournai, Roma: Desclee, 1930), v. III: “Cada padre é, em sentido estrito, um ministro secundário do Sacrifício da Missa. O próprio Cristo é o ministro principal. Os fiéis oferecem através do intermédio do padre, mas não em sentido estrito.” Cf. Concílio de Trento, Sessão 22, Cânon 2, DB 949.

36. GI 55, DOL 1445.

37. GI 298, DOL 1688 fn..

38. Observamos que está em curso uma inovação impensável, que terá efeitos psicológicos desastrosos; o emprego de vestimentas vermelhas na Sexta-feira Santa ao invés de vestimentas negras (GI 308.b, DOL 1698) – como se a Sexta-feira Santa fosse a comemoração de um mártir como outro qualquer, ao invés do dia em que toda a Igreja veste luto por seu Fundador. (Cf. Mediator Dei, PTL 550, citado abaixo.)

39. Rev. A. M. Rouget, OP, falando às Irmãs Dominicanas de Betânia em Plessit-Chenet.

40. GI 4, DOL 1394. Cf. Presbyterum Ordinis, Seção 13, DOL 265.

41. GI 60, DOL 1450 fn.

42. Ver Jn. 14:13-16, 23-24.

43. Em algumas traduções do Cânone Romano a frase “um lugar de repouso, luz e paz” foi traduzida como um simples estado: “bem aventurança, luz, paz.” O que pode então ser dito do desaparecimento de todas as referências explícitas ao sofrimento da Igreja?

44. Em meio a este turbilhão de omissões, somente um elemento foi acrescentado: a menção no Confiteor a “o que eu deixei de fazer.”

45. Na conferência de imprensa apresentando o Novus Ordo, o Rev. Joseph Lecuyer, CSSp, professando uma fé puramente racionalista, discutiu a mudança das saudações do padre na Missa sem um congregação do plural para o singular (“Ora, irmão,” por exemplo, substitui “Orai, irmãos.”). Sua justificativa para isto foi “que assim não haveria nada [na Missa] que não correspondesse à verdade.”

46. GI Seção 260, 265; DOL 1650, 1655.

47. GI 244.C, DOL 1634.

48. GI 70, DOL 1460, fn.

49. Agora parece ser lícito aos padres receber a comunhão sob ambas as espécies em uma concelebração, mesmo quando eles são obrigados a celebrar a Missa sozinhos antes ou depois da concelebração.

50. Ela foi apresentada como “O Cânone de Hippolytus,” mas somente uns poucos vestígios deste texto original permanecem no novo rito.

51. Gottesdienst no. 9 (14 de maio de 1969).

52. SC 116, DOL 116.

53. Considere-se os seguintes elementos encontrados no rito bizantino: extensas e repetidas orações penitenciais; vestimentas rituais solenes para o celebrante e para o diácono; a preparação da oferenda na proscomidia, em si mesmo um rito completo; invocações repetidas, mesmo nas orações do ofertório, à Santa Virgem e aos Santos; invocação do coro dos anjos no Evangelho como “concelebrantes invisíveis”, enquanto o próprio coro identifica-se com os corais angélicos no Cherubicon; a tela do santuário (iconostasis) separando o santuário do resto da igreja e o clero do povo; a consagração oculta, simbolizando o mistério divino ao qual toda a liturgia faz alusão; a posição do padre celebrante de frente para Deus e nunca para o povo; a comunhão sempre dada pelo celebrante; os sinais contínuos de adoração às espécies consagradas; a atitude essencialmente contemplativa do povo. O fato de estas liturgias durarem mais de uma hora mesmo em suas formas menos solenes, e de serem constantemente definidas como “inspiradoras de reverência, indescritivelmente…celestiais, mistérios vivificantes”, fala por si mesmo. Finalmente, notamos como tanto na Liturgia Divina de São João Crisóstomo quanto na liturgia de São Basílio o conceito de “ceia” ou “banquete” aparece claramente subordinado ao conceito de sacrifício – exatamente como se dava na Missa Romana.

54. Bula Quo Primum, 13 de julho de 1570. Na sessão 23 (Decreto sobre a Santíssima Eucaristia), o Concílio de Trento anunciou sua intenção de “erradicar completamente o joio de cismas e erros abomináveis que nestes dias fatídicos o inimigo semeou (ver Mat. 13:25) no ensinamento da fé sobre a Santa Eucaristia e sobre o uso e louvor da Eucaristia. Além deste outro propósito, nosso Salvador deixou a Eucaristia em sua Igreja como um símbolo da unidade e amor com os quais ele desejava unificar e unir todos os cristãos”. DB 873.

55. “Guarda o depósito, evitando as profanas novidades de palavras.” (1 Tim. 6:20)

56. “Certamente o retorno em espírito e afeição às fontes da Sagrada Liturgia foi algo sábio e louvável. Pois a pesquisa neste campo de estudo, através da reconstituição de suas origens, presta valiosa assistência ao trabalho de investigação cuidadosa e minuciosa dos textos e cerimônias sagradas utilizados naquela ocasião. Mas não é sábio nem louvável tudo reduzir à antigüidade através de todos os artifícios possíveis. Assim, para citar alguns exemplos, quem desejasse restaurar o altar à sua forma original de mesa estaria desviando-se da conduta correta; também quem desejasse a cor negra excluída das vestes litúrgicas; quem quisesse proibir o uso de agir imagens sacras e estátuas nas Igrejas; quem quisesse que o crucifixo fosse desenhado de forma a que o corpo do Divino Redentor não demonstrasse traços de seus cruéis sofrimentos…Esta forma de agir convida a que se reavive o antiquarismo exagerado e desprovido de sentido que o ilegal Sínodo de Pistoia produziu. “Mediator Dei,” I.5, PTL 548, 549.

57. “Não nos enganemos com a insinuação de que a Igreja, que se tornou grande e majestosa pela glória de Deus como um templo a Ele dedicado, deva ser reduzida à suas proporções originais mais modestas, como se estas fossem as únicas verdadeiras, as únicas boas.” Paulo VI, Encíclica Ecclesiam Suam, 6 de agosto de 1964.

58. “Um fermento praticamente cismático divide, subdivide, rompe a Igreja.” Paulo VI, Homilia “In Coena Domini, 3 de abril de 1969.

59. “Também há entre nós aqueles “cismas” e “separações” que São Paulo tristemente denunciou em I Corintios.” Paulo VI, ibid.

60. É bem sabido como o Vaticano II está agora sendo repudiado pelos mesmos homens que um dia alcançaram a glória ao liderá-lo. Enquanto o Papa declarou ao fim do concílio que este não havia alterado nada, estes homens saíram determinados a “explodir” os ensinamentos conciliares no processo de sua aplicação. Infelizmente a Santa Sé, com inexplicável rapidez, aprovou e aparentemente encorajou através do Consilium uma crescente infidelidade ao concílio. Esta infidelidade foi de meras mudanças formais (Latim, Canto Gregoriano, supressão dos ritos antigos etc.) até mudanças substanciais que a Novus Ordo sanciona. Às conseqüências desastrosas que tentamos apontar aqui, devemos acrescentar aquelas que afetarão, com um efeito psicológico ainda maior, a disciplina e os ensinamentos da Igreja através do enfraquecimento do respeito e mansidão devidos à Santa Sé.

 

Vilipendiar ato ou objeto de culto religioso ainda é crime?

Postado por Admin.Capela em 17/mar/2008 - Sem Comentários

Pe. João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa

Na Semana Santa é assustadora a volumosa enxurrada  de manifestações pseudo-artísticas e culturais, principalmente peças de teatro, filmes e telenovelas, que diariamente afrontam, escarnecem, achincalham os valores do catolicismo, ousando esses insolentes ultrajar a Pessoa Divina de Nosso Senhor Jesus Cristo. Basta não ser indiferente e observar o que se passa na sociedade para ver o paroxismo de podridão e sacrilégio que nos envolve.

Alguém poderia dizer que essas ofensas à religião e às coisas sagradas não são uma novidade, que, estudando a história, vê-se que sempre houve, em alguns períodos mais em outros menos, ataques e ultrajes à Igreja e às coisas santas.

Concedo que isso seja verdade. No entanto, nego que o mundo de profanação hodierno seja igual às profanações, sacrilégios e vilipêndios praticados em outros tempos. Há, ao menos, duas coisas diferentes hoje. O baixo nível cultural, o mau gosto, a vulgaridade que distinguem essas pretensas obras de arte irreverentes as situam em nível baixíssimo, que qualquer crítico de arte que se preze recusaria perder tempo em analisá-las. Estão abaixo da crítica! Realmente, em que termos comparar esse lixo cultural dos nossos dias com obras literárias irreverentes de outros tempos, como, por exemplo, O crime do Padre Amaro, A Relíquia, de Eça de Queirós, ou algumas páginas de Balzac em Ilusões Perdidas?

Portanto, a pretensa obra de arte anti-religiosa ou anticlerical de nossos dias não é  objeto de estudo crítico, mas um caso de polícia, conforme previsto no Código Penal no artigo 208:

“Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:

Pena – detenção, de 1 (um) mês a 1 ano, ou multa.”

Outra característica dessa pseudo-arte irreverente de nossos dias é que ela não suscita nenhum tipo de reação contrária. Arranca aplausos dos degenerados e ignorantes que a apreciam, mas as autoridades religiosas, que deveriam ser guardiãs das instituições sagradas e litúrgicas, ficam, inexplicavelmente, apáticas e indiferentes em face de tanta insolência. Isso não é praticar a virtude da mansidão e da paciência. Isso é ser “bonzinho” em sentido liberal. É ser mole, é ser homem fraco, que merece o desprezo e ser vomitado por quem tenha um mínimo de virilidade. É essa caricatura de cristianismo que Nietzsche censurou ao falar do super-homem que há de esmagar o homem fraco, vermezinho sub-humano produzido pelo cristianismo.

Neste sentido talvez Nietzsche tenha razão e profetizado. O raquitismo, o desfibramento do cristianismo contemporâneo prenunciam o fim próximo dessa caricatura grotesca de catolicismo esposado por efeminados, que serão riscados da face da terra sem serem mártires. Que terão tido apenas a coragem de tirar a máscara e dizer que, realmente, não crêem em mais nada.

A título de ilustração, conto que uma senhora amiga foi dizer a uma autoridade religiosa o acinte que era a peça teatral ora em cartaz em Brasília, Não somos santos e pedir-lhe as providências cabíveis. Como resposta teve só um riso, ao qual   replicou à altura: “Não ria, não, senhor, mas chore.”

Que resultará de tamanha indiferença desses poltrões?

Encerro essas considerações tentando alguns prognósticos.

Numa eventual reforma do Código Penal, o crime de vilipêndio ao sentimento religioso talvez  venha a desaparecer, como desapareceu o crime de sedução, em nome da mudança dos costumes e valores da sociedade. Sendo um crime de ação privada, numa sociedade que idolatra da liberdade de pensamento e expressão, pulverizada em miríades de seitas, efetivamente será difícil fazer respeitar tal dispositivo se os próprios interessados se omitem. Estão preocupados com os seus proventos, com os filhotes da baleia, mas não estão nem aí com o Filho de Deus Encarnado.

Se não for abolido tal artigo do Código Penal, será graças aos judeus e muçulmanos que são ciosos na defesa de suas crenças. Ninguém debocha da religião deles por medo de uma reposta violenta. Já o cristianismo açucarado de hoje….

Outra conseqüência certamente a aceleração do processo de obscurecimento do sentido do sagrado e da perda da fé por parte daqueles que têm poucas luzes e se deixam contaminar por erro tão contagioso, que se apresenta sob o manto da “arte e da cultura”. Esses infelizes foram abandonados  por aqueles que tinham a missão de defender suas ovelhas. Omissão da autoridade é o pior abuso da autoridade, dizia-me Dom Pestana.

Finalmente, esses senhores vão prestar contar perante o supremo tribunal de Deus por não terem tocado a consciência desses pobres diabos pseudo-artistas que se chafurdam no pântano dos seus maus pensamentos e fantasias depravadas até a hora da morte sem terem recebido o remédio enérgico e amargo que a Igreja em outros tempos ministrava com tanta eficácia.

Em sua velhice, depois de ter escrito páginas imorais mas de grande qualidade literária Eça de Queirós se converteu. Certamente tocado pela graça mas também castigado pelas vergastadas corretivas da Igreja. No fim da vida Balzac escreveu: “J’ écris à la lueur de deux verités éternelles: la religion et la monarchie, deux necessites que lês evenements contemporains proclament et vers lesquelles tout écrivain de bom sens doit essayer de ramener notre pays.”

Eram outros tempos os tempos de Balzac e Eça. De Gregório XVI, Pio IX, Pio X, uma Igreja militante em luta aberta contra modernidade. Hoje Bento XVI luta sozinho, senão boicotado. Que Nossa Senhora o auxilie. Cerremos fileira em torno dele!

O caráter totalitário da República de Platão

Postado por Admin.Capela em 12/mar/2008 - Sem Comentários

Universidade Federal de Goiás

Mestrado em Filosofia Política

Aluno: João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa

O caráter totalitário da República de Platão

Goiânia, 2002

Ao escrever sobre os clássicos é desnecessário tecer elogios e temerário aventar críticas. Todavia, a leitura da República de Platão suscita ambas atitudes. Com efeito, se as intuições geniais do filósofo sobre o problema da justiça causam admiração e são sempre atuais e proveitosas, suas idéias sobre a organização da cidade geram perplexidade, sendo fonte perene de instituições políticas incompatíveis com a dignidade da pessoa humana.

Neste artigo pretendo demonstrar como graves lacunas do pensamento platônico sobre a constituição natural da sociedade têm o condão de conduzir à edificação de um Estado totalitário.

Na verdade, por um lado, as idéias platônicas sobre a justiça representaram a solução do problema relativo à unidade da ação humana, constituindo uma refutação cabal da sofística de então que pretendia haver uma dicotomia entre teoria e prática; e o filósofo demonstra que toda atividade humana encerra uma harmonia entre theoresis, poiesis e praxis. Mas, por outro lado, Platão não explica satisfatoriamente a relação entre pessoa e sociedade.

Para ser justo com o filósofo, deve-se inicialmente reconhecer que muitos dos erros em que incorre talvez fossem para ele inevitáveis, porquanto à sua reflexão sobre a organização social faltavam noções claras quanto à pessoa humana e à liberdade, conceitos desenvolvidos pela tradição judeu-cristã. Mas, ao contrário, parece que o filósofo não levou em devida consideração a constituição orgânica natural da sociedade, isto é, não atentou para o fato de a sociedade ser realmente uma sociedade de sociedades, e por isso laborou em erro ao dissertar sobre a relação entre pessoa e sociedade. Defender a organicidade da sociedade significa dizer que a sociedade não é uma mera soma de indivíduos soltos, mas está constituída por grupos naturais, instituições intermediárias autônomas, nas quais se inserem os indivíduos dotados de subsistência própria.

Platão, na estrutura do seu mundo das idéias, ignora a analogia do ser na medida em que cada idéia, para ser realmente idéia, deve ser diferente de todas as outras. De modo que, comparando  a sociedade com um corpo vivo, não percebe as diferenças essenciais entre ambas realidades, pois que se inspira na mesma idéia de corpo. Ao passo que, se se tem presente a analogia, é possível distinguir com clareza entre uma concepção orgânica de sociedade e uma teoria “organicista”.

Ora, o filósofo, em sua especulação sobre a melhor organização política que poria fim às mazelas do seu tempo, vê apenas um binômio: de um lado, os indivíduos soltos e, de outro lado, o Estado com autoridade competente para regular tudo. Quer dizer, os indivíduos não têm existência própria, dependem intrinsecamente da República, a qual é comparável a um organismo vivo capaz de assimilar toda matéria em benefício próprio.

Cito algumas passagens da República que ilustram o caráter totalitário e organicista do regime político preconizado por Platão.

Diz o filósofo pela boca do seu interlocutor Sócrates:

É preciso, de acordo com o que estabelecemos, que os homens superiores se encontrem com as mulheres superiores o maior número de vezes possível, e inversamente, os inferiores com as inferiores, e que  se crie a descendência daqueles, e a destes não, se queremos que o rebanho se eleve ás alturas, e que tudo isto se faça na ignorância de todos, exceto dos próprios chefes, a fim de a grei dos guardiões estar, tanto quanto possível, isenta de dissensões.1

Diz igualmente:

Mas, na verdade, nós assentamos em que era esse o maior bem para a cidade, comparando uma cidade bem administrada com o corpo e seu comportamento relativamente a uma das suas partes, no que toca ao prazer e à dor.2

 De fato, a comparação da cidade com o corpo é legítima e aceite pelas mais diversas culturas, como, por exemplo, pelo cristianismo que define a Igreja como corpo místico de Cristo. Contudo, trata-se de uma analogia que apresenta um aspecto semelhante e um aspecto diferente. Não se pode, sem graves conseqüências, identificar a relação entre indivíduos e sociedade com a relação entre corpo e suas partes dependentes inteiramente do todo. A sociedade não é uma substância, não tem uma unidade essencial. A sociedade é uma união moral em que os indivíduos livres, vivendo em grupos naturais, são seres subsistentes.

Ao contrário, a concepção platônica representa uma atomização da sociedade. Nesta concepção, os indivíduos, separados de suas instituições naturais, mas simplesmente pulverizados, são objeto de manipulação para a arquitetura de um Estado ideal conforme o modelo preconcebido por um suposto rei filósofo.

 

Do individualismo ao totalitarismo

É preciso reconhecer que a tese fundamental da República, o individualismo frente ao Estado, suscita uma questão de ética social de transcendental importância: as conseqüências práticas da atomização social

Vê-se, com clareza, que a concepção individualista de sociedade não é antagônica ao Estado totalitário, mas antes a ele conduz, não reconhecendo as autoridades sociais dos grupos intermediários em que nascem  e se desenvolvem os homens.

De maneira que a única alternativa ao Estado centralizador é reconhecer a competência e legitimidade das instituições sociais autônomas, impedindo sejam açambarcadas pelo Estado burocrático. Com efeito, o problema da liberdade só encontra solução satisfatória através das instituições naturais e históricas respeitadas em sua integridade pelo poder estatal, pelo que se deve falar em liberdades concretas e não apenas em liberdade abstrata. Isto é, a liberdade não se assegura por um mero artigo de uma constituição positiva,  mas se concretiza por meio de instituições sociais autônomas em sua origem e vida.

Outro elemento de capital importância para obviar aos males do Estado totalitário é o conceito de lei natural. Ora, Platão não desenvolveu plenamente o conceito de lei natural, identificada, na República, com a idéia de função. Sem uma noção precisa de lei natural como fundamento da lei positiva, não se pode falar, com boa razão, de Estado de Direito, mas apenas de observância de um formalismo legal por parte do Estado, sempre suscetível de aprovar uma legislação em desarmonia com as exigências da natureza humana em busca da sua enteléquia.

Na República de Platão, a ausência de um conceito claro de lei natural reflete-se diretamente em suas especulações acerca do problema da educação. Para o filósofo, a educação enfeuda ao Estado o ser humano a ser construído conforme um protótipo, mas não se limita a ser um auxílio para que a pessoa tire de dentro de si sua virtualidade e venha a ser ela mesma.

Conclui-se, pois, que, se por um lado a República de Platão encerra riquíssimos subsídios para uma boa reflexão no campo da ética social, sobretudo em sua demonstração da unidade da ação humana (capítulo I, referente à justiça e à injustiça), por outro, a obra do imortal filósofo fornece muito material para a construção do Estado totalitário. Isto porque, como dissemos, o filósofo não levou em conta a constituição natural da sociedade, não teve a seu alcance a noção de pessoa humana e liberdade, nem elaborou um conceito preciso de direito natural.

Após a leitura da República de Platão, solidificou-se-me a convicção de que a boa política será sempre a combinação dos primeiros princípios com a experiência histórica. Todo abstracionismo e devaneio na arte de governar a cidade só conduz à edificação de um poder absoluto que esmaga as liberdades reais do homem concreto.


1 PLATÃO, A República. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1949, 459 e.

2 O. c. 464 b.

 

 

A doutrina da Igreja sobre o diálogo inter-religioso

Postado por Admin.Capela em 10/mar/2008 - Sem Comentários

Pe. João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa

 Em nossos dias é comum ouvir falar de diálogo inter-religioso, como se fosse um imperativo do Evangelho a Igreja abrir-se ao mundo para entrar em contato com todas as religiões e correntes ideológicas, sempre com o propósito de servir a humanidade e tornar a vida aqui na terra menos dura.

Dizem os adeptos do diálogo inter-religioso que entre os sérios problemas da atualidade que a Igreja poderia ajudar a resolver irmanada com as várias “religiões e filosofias da humanidade” estão o problema da paz, da “discriminação”, da “intolerância” e da “exclusão das minorias”.

Como se vê, é uma visão completamente humanista, antropocêntrica, utópica, que sonha com um paraíso na terra, que não vê a religião como uma virtude moral que tem por objeto o culto devido a Deus. É uma visão que, por princípio, desvirtua a religião, desligando-a do problema da salvação da alma.

Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica, na primeira questão do tratado da virtude da religião, pergunta se a religião ordena o homem exclusivamente a Deus e é categórico, taxativo, na resposta afirmativa. E respondendo à objeção baseada na epístola de São Tiago (a religião pura e imaculada aos olhos de Deus Pai é visitar os órfãos e as viúvas em suas tribulações e conservar-se incorrupto neste século), diz que  a religião tem duas espécies de atos: uns são atos próprios e imediatos pelos quais o homem se ordena só a Deus, tais como sacrifícios, adoração etc; outros atos da religião são praticados mediante outras virtudes sobre os quais a virtude da religião impera ordenando-os ao serviço divino. (Cf. Suma Teológica, IIª IIªe. q.81, a. 1)

Para São Tomás, portanto, a verdadeira virtude da religião é incompatível com uma visão humanista em que o homem esteja no centro de tudo. Para ele, é inadmissível uma frase muito em voga “o homem é a estrada da Igreja”, como se a Igreja devesse ouvir sempre as aspirações e caprichos do homem que quer ser a sua própria lei ou transformar a religião numa espécie de terapia em que o culto divino se converteria em sessão de cura dos males da mente e do corpo, em que o pecado seria reduzido a mera doença que aflige apenas o homem mas não ofende a Deus. Enfim, uma religião que consola o homem mas se esquece de Deus. Para Santo Tomás, mediante a virtude da religião, todas as atividades humanas, por mais seculares que sejam, de alguma forma se ordenam à glória de Deus e à salvação das almas. É inconcebível uma ação filantrópica que faça abstração do fim último. É inconcebível que a Igreja trabalhe para o bem do mundo, como a ONU, relegando a segundo plano sua missão própria.

Aliás, na exposição da virtude da religião, São Tomás simplesmente desenvolve com argumentos filosóficos e teológicos aquilo que o simples bom senso diz e já tinha sido explanado pelos clássicos e pelos padres da Igreja. Por exemplo, Santo Agostinho diz: o homem bom usa das coisas da terra para gozar de Deus, o iníquo serve-se de Deus para gozar dos bens da terra.

Por isso, o propalado diálogo inter-religioso só pode ser legítimo e justificado se se subordinar à missão específica da Igreja, i. e., a salvação da alma. A Igreja tem de ser corajosa aos olhos de todo o mundo ao afirmar-se solenemente como único e exclusivo meio de salvação disposto por Deus para todos o homens. Tem de ser corajosa e formular um juízo negativo sobre todas as religiões falsas, que, como tais, são antes um obstáculo para a salvação do que um meio para chegar à verdade, não obstante a boa fé e a ignorância invencível de muitos dos seus sequazes. A verdade é intolerante. O bem é exclusivista. Bonum ex integra causa, malum ex quocumque defectu, diz Santo Tomás. Não basta dizer que, apesar de deficientes, as grandes religiões da humanidade contêm elementos de verdade, defendem valores da ordem moral natural ou que há pontos de união entre a Igreja e as religiões falsas. O mal não pede a exclusão do bem, pede um lugar ao seu lado, dizia o pe. Dulac. Hoje, o mundo relativista e maçônico da ONU pede à Igreja que aceite a seu lado todas as religiões para construir um novo mundo, um mundo em que o homem ocupe o lugar de Deus ou invente um deus a serviço do Homem.

Por essa razão, com clarividência, o grande papa Gregório XVI, na encíclica Mirari vos (1832), diz: “Nosso Senhor Jesus Cristo enviou seus apóstolos para pregar e ensinar a todas as nações, ou seja, derrubar todas as religiões existentes, a fim de então estabelecer em toda a terra a única religião cristã e assim substituir todas as crenças dos diferentes povos pela unidade do dogma católico expresso na pregação Dele próprio. E prevendo, na sua presciência, os movimentos e divisões que sua doutrina iria incitar, Ele não se deteve e não permitiu concessões, mas declarou que tinha vindo ao mundo para trazer não a paz, mas a espada, a fim de separar o bem do mal e a verdade da mentira.”

A conclusão só pode ser uma: um suposto diálogo inter-religioso honesto, sério, franco, útil não pode esconder a verdade fundamental: a Igreja trabalha para a conversão de todos os homens à única religião verdadeira, que é ela mesma, pois que fundada pelo Verbo Encarnado. Outro diálogo inter-religioso só pode ser um sofisma ou artifício da maçonaria para implantar a religião do Homem-deus.

A verdade sobre Galileu

Postado por Admin.Capela em 09/mar/2008 - Sem Comentários

Etienne Couvert

O caso Galileu pertence ao arsenal de mentiras e imposturas que os historiadores modernos forjaram com todas as peças por ódio a Jesus Cristo e a sua Igreja, com a intenção declarada de destruir a fé. Desde o começo de nossas pesquisas sobre a gnose, não cessamos de deparar com mentiras de tal maneira enraizadas nos espíritos que nossos estudos e argumentos provocam ainda reações de desconfiança e ceticismo da parte de cristãos sinceros que têm dificuldade de se libertar dos modismos intelectuais do “politicamente correto, do cientificamente correto, do religiosamente  correto”.

Este estudo sobre Galileu inscreve-se na seqüência daquilo que dissemos sobre os humanistas da Renascença, no capítulo II do nosso segundo volume: A gnose contra a fé, intitulado Gnose e humanismo.  De maneira que é útil relê-lo antes de abordar nosso trabalho e ter presente o que desenvolvemos sobre o caráter fundamentalmente anti-cristão de tal humanismo.

 

A condenação do heliocentrismo

Reproduzimos nosso texto (1)

Sabemos que o culto de Mitra foi contraposto, desde os primeiros séculos cristãos, ao culto de Jesus Cristo. Mitra é o sol invencível (Sol invictus). Quase que se tornou o culto oficial do Império Romano sob Aureliano. Ora, os humanistas do Renascimento restauraram esse culto, mas em segredo, em seus conventículos íntimos. O sistema heliocêntrico, ensinado por Copérnico e retomado por Galileu, é uma manifestação da adoração do sol. Copérnico escreveu em De revolutionibus orbium coelestium:  “In mundo vere omnium residet Sol. Quis enim in hoc pulcherrimo templo lampadem hanc in alio vel meliori loco poneret, quam unde totum simul possit illuminare. Si quidem non inepte quidam lucernam mundi, alii mentem, alii rectorem vocant, Trismegitum visibilem deum.”

O Sol é, pois, para Copérnico, o Espírito do mundo, o Reitor dos mundos, um deus visível. A referência a Hermes Trismegisto é significativa. O Sol tem, em sua morada, sede em todas as coisas do mundo e o mundo é seu templo. Não se trata de uma definição do panteísmo?

Galileu precisa: “Parece-me que na natureza se acha uma substância muito volátil, muito tênue, muito rápida, que, espalhando-se pelo universo, penetra tudo sem obstáculo, aquece, dá vida e torna fecundas todas as criaturas animadas. Parece que os sentidos nos mostram que o corpo do Sol é o receptáculo desse “espírito”, fora do qual se difunde sobre todo o universo uma imensa luz acompanhada desse espírito calorífico e, penetrando todos os corpos capazes de ser animados, dá-lhes vida e fecundidade.”

“O sol é um deus visível no centro do universo. Imóvel, ele penetra todas as criaturas, ele é a fonte da vida, ele anima todas as coisas. Sem sombra de dúvida é um culto solar que Copérnico e Galileu praticavam. À luz desses textos os juizes do Santo Ofício condenaram Galileu. Assim, abrem-se novas perspectivas sobre o intrincado caso Galileu.”

Encerra-se a citação do nosso texto. Compreende-se, desse modo, que as considerações sobre os movimentos da terra e do sol são apenas pretextos para desenvolver um ensinamento fundamentalmente panteísta  e as autoridades romanas não se enganaram a respeito. Aos 24 de fevereiro de 1616, o heliocentrismo de Copérnico era condenado pelo Santo Ofício. A justo título, como se viu. E para manifestar que os censores não eram patetas caídos em armadilhas, eles esclareceram que as proposições condenadas eram “absurdos em filosofia e formalmente heréticas”, mas que eles não prejulgavam as considerações puramente astronômicas ou físicas.

O caso deveria estar encerrado. Sem outras conseqüências. Mas eles tinham diante dos olhos uma verdadeira seita, muito bem organizada.

 

A Academia dos Linceis

Essa academia funcionava como um clube maçônico, com uma fachada mundana, oficial, que atraía a alta sociedade romana promovendo conferências, concertos, banquetes e recepções diversas, e um núcleo operacional na casa de campo de Pedro Cesi, em Acquaspartia, próximo a Urbino. Os três mentores da seita são Pedro Cesi, Cesarini, mas sobretudo monsenhor Ciampoli, o grão-mestre dos Linceis, que veremos em ação mais adiante.

O programa é claríssimo. Eis a fórmula: “estabeleceremos por silogismos e experiências os paradoxos que aparecem completamente contrários aos dogmas sagrados.”

Retenhamos bem a fórmula. As experiências ditas científicas, os raciocínios chicaneiros só têm um fim: destruir a fé, mudar a religião. A confissão é aguda.

Trata-se de lançar, tomando pretextos de ordem científica, como a disputa dos cometas, um ataque de grande estilo contra as bases intelectuais da cultura tradicional que prevalece em Roma. O que está em jogo é o prestígio e a legitimação intelectual dos Linceis. Ela será, pois, confrontada com a resistência do Colégio Romano dos Jesuítas, onde reinava o respeito à tradição aristotélica em filosofia e a vigilância sobre os princípios da fé católica.

Galileu é um membro eminente da Academia. Aos 17 de julho de 1620, durante uma sessão secreta em Acquaspartia, decidiu-se a denominada operação “Sarseide”. Galileu devia preparar uma obra para denunciar a física aristotélica, tratada de puro “nominalismo”, lançara o slogan: “O livro da natureza não foi escrito para ser lido somente por Aristóteles. Esse grande livro do mundo está ao alcance de todos. Os comentários de Aristóteles são como uma prisão da razão”. Ele devia pôr sua autoridade a serviço da Academia para assegurar seu prestígio e sua legitimidade intelectual. Ele se pôs a trabalhar.

Entretanto, aos 17 de setembro de 1621, o cardeal Belarmino, enérgico prefeito do Santo Ofício, falecia. Enfim, podia-se aproveitar de uma grande liberdade para as “novidades”.

Em 1622, o manuscrito do Saggiatore está em mãos dos linceis. Ele foi revisto e corrigido por Cesarini, depois pelo príncipe Cési, e o texto definitivo foi redigido por monsenhor Ciampoli, o grão-mestre. É uma máquina de guerra contra “os adoradores obstinados da Antigüidade”, contra os jesuítas do Colégio Romano. A obra está plena de sarcasmo e zombarias contra eles. Maneja a arma do ridículo, apontada contra o Colégio Romano e contra o acatamento do princípio de autoridade da tradição, com as fórmulas fustigantes e insultantes contra “os patos incapazes de seguir os vôos das águias…”

Ora, para os jesuítas, o princípio de autoridade é mais sagrado que uma citação criticável. Era um valor de caráter religioso e um ponto fundamental da luta contra a heresia. Por isso, reagiram.

Achavam-se – disseram eles -, na obra, os átomos de Epicuro, as idéias de Demócrito, o nominalismo de Ockham, as elucubrações confusas de matriz pitagórica. Um panegírico dos autores pagãos com odor de ateísmo e dos autores católicos com odor de heresia. Um verdadeiro escândalo, portanto.

 

Um papa “inovador”, Urbano VIII

Em 1623, ocorre um novo conclave… Monsenhor Ciampoli “trabalha” os cardeais, intriga e “faz” o papa Urbano VIII, na pessoa de Maffeo Barberini, o papa dos “inovadores”, o amigo de Galileu. É uma explosão de alegria para os membros da Academia dos Lincei. Maffeo Barberini é um jovem, poeta, esportivo; diríamos hoje pop. Ele se apressa a colocar os lincei nos cargos mais importantes da corte. Monsenhor Ciampoli continua sendo um conselheiro íntimo e discreto.

O jovem sobrinho do novo papa, Francisco Barberini, é feito cardeal e dirige o pontificado. Ele será a alma penada do seu tio.

Ao longo das grandes festas e manifestações de júbilo organizadas pelos lincei para promover o novo papa, Galileu é recebido oficialmente como filósofo do Vaticano, em uma bela cerimônia, a 23 de abril de 1624. Barberini sabe que deve sua eleição ao grão-mestre dos lincei, mons. Ciampoli. Este conhece “os sinais do tempo”. Para ele, esse pontificado é uma “admirável conjuntura”.

Graças a ele, o mundo de Aristóteles está liquidado. Galileu é “o filósofo cristão moderno” que substitui o pagão Aristóteles no cume da nova cultura católica. Ele nomeia seus amigos e os de Galileu para a Sapientia, nova universidade romana, que ele dirige contra o Colégio Romano dos jesuítas.

A nova filosofia é apresentada à corte, do púlpito, nas academias e famílias da sociedade romana. Revolução cultural que permitia esperar para logo poder relançar a campanha em defesa da Copérnico condenado.

Urbano VIII dirigiu-se contra os jesuítas. Em 1627, recusou a canonização do cardeal Belarmino e impôs na ocasião a obrigação de esperar cinqüenta anos antes de iniciar um processo. Nomeou o cardeal Pedro de Berule, “o novo teólogo”, o místico reformador da fé, grande inimigo dos jesuítas e grande amigo de Saint-Cyran. É ele que vai orientar os oratorianos da França na direção do jansenismo por dois séculos (2).

Ora, a 3 de novembro de 1624, em seu discurso inaugural do Colégio Romano, o Pe. Spinola condena fortemente as “tentativas de edificar um novo monumento humano de sabedoria”. Ele compara a nova filosofia pagã dos inovadores à construção da torre de Babel. Os inovadores querem subir ao céu. São rebeldes contra Deus e a fé. Querem provocar a ruína da Igreja. Esse discurso teve grande repercussão.

Mas, nessa admirável conjuntura, não era fácil denunciar Galileu, o sábio católico oficial, o amigo íntimo do papa, o maior filósofo da Europa, amado, acariciado, adulado, respeitado e temido.

E enquanto o novo papa e seus amigos da Academia dos lincei preparavam essa revolução cultural, os jesuítas continuavam através da Europa sua obra de reconquista das províncias protestantes.

Nesse contexto, parece-nos conveniente reproduzir uma bela página do livro de Pedro Redondi que seguimos aqui passo a passo (3):

“Não são petulantes e ruidosas manifestações de alegria de literatos inovadores e aristocratas progressistas romanos galvanizados pela eleição de um papa amigo de Galileu e intelectual refinado que preocupam os jesuítas. Mas é uma linha geral de abertura cultural e política improvisada cujos efeitos são contrários à linha de renovação e de luta da Igreja da Contra-Reforma fixada pelo Concílio de Trento. A Companhia de Jesus, que é o instrumento mais eficaz dessa linha de conduta, não é a vítima de uma estreita visão provincial e romana dos problemas que condiciona a maior parte dos seus inimigos na cúria. O fronte principal da luta contra a Reforma não sãos os corredores da cúria, nem os salões da academia, são as planícies e as cidades da Hungria e da Boêmia, onde os padres da Companhia, após os regimentos imperiais, alcançam a vitória; eles reconquistaram para Roma as igrejas profanadas pelos ritos protestantes, içaram os estandartes ornados do símbolo da eucaristia sobre os mosteiros das ordens religiosas decadentes e corruptas e confiscaram-nos para transformá-los em centros de reeducação religiosa, sem incomodar-se com reclamações romanas dos monges. O êxito dos jesuítas é impressionante, sobre o teatro principal da guerra de religião. Nos territórios há pouco resgatados dos protestantes populações inteiras regressam em massa ao catolicismo, por todos os meios, a todo preço…

Consolidada pelas suas vitórias e pela consciência política e religiosa das suas dimensões mundiais, a Companhia de Jesus sabe que a fidelidade ao Império é a melhor garantia contra a Reforma. Ela desconfia das perigosas aberturas diplomáticas do novo pontífice em direção de um aventureiro sem escrúpulo como Richelieu, novo astro nascente da política européia.”

 

O verdadeiro processo

Quando o livro do Saggiatore apareceu nas livrarias de Roma, o primeiro exemplar vendido foi comprado pelo Pe. Grassi, eminente professor do Colégio Romano. Ele era um homem de caráter irascível e explodiu de raiva na livraria. Depois anunciou uma resposta que jamais publicou.

Como se viu, Galileu havia sido recebido com grande pompa pelo papa em abril de 1624. Ora, no verão de 1624, o Pe. Grassi depositou no protocolo do Santo Ofício uma denúncia contra o Saggiatore por heresia contra a Eucaristia.

O texto dessa denúncia foi reencontrado por Pedro Redondi em um arquivo anexo ao processo de Galileu. Ele havia sido desentranhado desde o início do processo (4).

O Pe. Grassi sustentou duas acusações fundamentais contra Galileu.

O nominalismo de Ockham, segundo o qual as qualidades das coisas são apenas nomes, mas não existem na realidade. Se vejo a cor vermelha no objeto, essa cor está na minha percepção, mas não realmente  no objeto. Se vejo a luz do sol, ela está na minha percepção, mas não no sol. Com efeito, é um absurdo.

O “atomismo” de Demócrito: se os átomos ou corpúsculos ou “mínima” constituem a substância do objeto, então as percepções sensíveis que são o produto dessas partículas, fazem também parte da substância da coisa.

Se, pois, nas espécies eucarísticas, as formas sensíveis do pão e do vinho subsistem após a consagração, é que a substância das mesmas continua presente. Por conseguinte, não ocorre transubstanciação, mas consubstanciação e a tese de Galileu não faz senão retomar a de Lutero e dos protestantes. Galileu, o filósofo oficial da corte pontifícia e o grande amigo do papa, não passa de um protestante camuflado…

Com efeito, as congregações gerais dos jesuítas sempre condenaram o “atomismo” em voga entre os humanistas e proibiram que fosse ensinado nos colégios da Companhia. Condenação renovada no curso do século XVII com uma notável insistência.

A 1º de abril de 1623, a Companhia de Jesus havia interdito o ensinamento da doutrina do atomismo nos colégios. Não se deve identificar a substância com a extensão e as qualidades. As partículas são apenas as medidas da matéria. O atomismo não passa de uma forma sutil de materialismo. Se é a matéria que produz as formas sensíveis e as qualidades das coisas, então ela é a criadora dessas formas; ela é então de natureza divina…

Essa condenação foi renovada em 1641, em 1643 e 1649.

Eis a forma protestante: “O pão e o Corpo de Cristo estão realmente, mas não substancialmente nem essencialmente presentes, por que se o pão não tinha mais substância, ele não seria mais nada e por conseguinte não seria nem sequer um sacramento.” Vê-se aí a velha tentação nominalista.

Por onde se vê que os ensinamentos filosóficos, contrários ao bom senso e à razão, provocam conseqüências desastrosas nas afirmações da doutrina católica. O filósofo cristão não pode, pois, ensinar o nominalismo nem o atomismo sem atacar a fé.

A acusação era grave, e Galileu o compreendeu logo. Ficou com medo. Tentaram tranqüilizá-lo. Seu livro havia recebido imprimatur e aprovação entusiasta do papa. Ele creu poder esperar impunidade, mas a suspeita de heresia começava a circular pela cidade, não obstante a proteção do papa. Aconselhou-se a Galileu que não retrucasse, que guardasse silêncio; diríamos hoje, vulgarmente, que “enfiasse a viola no saco”; pois Galileu bem sabia que a acusação estava fundamentada e que o Pe. Grassi havia compreendido bem a intenção subjacente do autor.

 

A funda dos cardeais

Aos 18 de abril de 1631, na Capela Sixtina, em presença do papa Urbano VIII e durante a liturgia da Sexta-Feira Santa, o Pe. Grassi, eminente jesuíta, pronunciou uma oração solene que deve ter soado desagradavelmente aos ouvidos do papa:

“Devemos deplorar, Reverendos Padres, uma terrível destruição e uma imensa ruína. O edifício que a Sabedoria Divina havia erigido com suas próprias mãos, esse templo eterno da paz entre Deus e os homens foi demolido por saqueadores ímpios, destruído, reduzido a pó.

Com efeito, como é atroz assistir à cena da ruína iminente. Esses instrumentos, essas alavancas, esses operários, tudo está pronto para a espantosa empreitada de destruição…Os guardiães do templo, novos levitas, dormem um profundo sono. Mas o terror os desperta agora do profundo sono. A turba dos saqueadores avança.  O véu do templo já está arrancado, quando a alma se separa de  Cristo; toda a estrutura tomba e um tal ruído  semelhante ao da morte, mesmo que estejam dormindo, os obriga a acordar. As coisas sagradas são tripudiadas, os altares profanados, o templo em ruína. Onde nos refugiaremos, onde, pergunto eu?”

Que se passava então? O exército sueco de Gustavo Adolfo percorria a Europa, destruindo, incendiando, assassinando tudo em sua passagem. Os exércitos imperiais estavam desamparados e impotentes diante de tal fúria. Gustavo Adolfo aproximava-se dos Alpes. A 7 de abril ele estava na Baviera, pilhando e saqueando os colégios dos jesuítas, condenando-os a fugir ou a esconder-se. A situação era grave e, entretanto, “os levitas dormiam”. O papa, evidentemente, estava designado. Gustavo Adolfo ameaçava Roma. Reinava a insegurança. Era preciso dar um basta.

Várias vezes já os cardeais haviam censurado ao papa sua complacência com os hereges em Roma. Reclamava-se uma ação enérgica, uma cruzada católica contra a heresia e as novidades subversivas.

A 8 de março de 1632, o cardeal Borgia levantou-se, denunciou as fraquezas do papa e começou a ler um memorial “de grande importância para a religião e a fé”. Repreendeu ao papa sua atitude conciliatória em face do rei da Suécia. Urbano VIII quis cortar-lhe a palavra e ameaçou-o de deposição. O próprio irmão do papa quis apanhá-lo a força, mas os outros cardeais agruparam-se em torno dele para protegê-lo. Foi um tumulto, um escândalo em pleno consistório.

O fato chegou ao conhecimento de todas as chancelarias. A Espanha reagiu imediatamente, protestou diplomaticamente contra as fraquezas do papa diante dos inimigos da religião, apoiou energicamente o cardeal Borgia, que se tornara o verdadeiro senhor do consistório. Cogitou-se a deposição do papa.

Alguns dias mais tarde, o imperador Habsburgo enviou a Roma seu conselheiro, o cardeal jesuíta Peter Pazmani que veio repetir ao papa as mesmas ameaças de Madri. O papa teve de prometer um maior rigor para a defesa da ortodoxia. “A admirável conjuntura” estava terminada.

 

O falso processo

Em março de 1632, Galileu publicava o Diálogo, honrado com um breve do papa e munido de imprimatur. Galileu aí retomava as teses de Copérnico sobre os movimentos da terra e as marés, com a autorização do Vaticano, sob a condição de não mesclar considerações sobre as Escrituras e apresentando-as como hipótese.

Galileu aproveitou o ensejo para retornar ao atomismo de Demócrito e atacar Aristóteles. Identificou a substância corporal com seus componentes materiais e quantitativos, reduzindo o real a seu valor numérico. Mas evitou empregar o vocábulo “átomo”, bem como falar em “substância”. Seu amigo e cúmplice, Campanella, cuja reputação de herético era notória, felicitou-o em uma carta de 3 de abril de 1632 por renovar os antigos pitagóricos e os adeptos de Demócrito. A carta tornou-se pública. A cumplicidade era evidente.

Uma denúncia foi enviada ao cartório do Santo Ofício. Imediatamente, o papa confiou o assunto a seu sobrinho, o cardeal Barberini. Ele não podia deixar o affaire em mãos do cardeal Borgia, prefeito do Santo Ofício, que o acusava abertamente de indulgência culpável e de falta de firmeza na obra da Contra-Reforma. Levar o caso ao Santo Ofício teria sido um verdadeiro suicídio político para o papa, um enorme escândalo, a prova da sua cumplicidade com os inovadores.

O cardeal sobrinho formou uma comissão especial independente do Santo Ofício. Assegurou-se a Galileu acerca das intenções benévolas do papa, seu grande amigo e o cardeal sobrinho explicou ao núncio de Florença, em uma carta de 25 de setembro de 1632: “As obras de Galileu foram entregues a uma comissão particular com o cuidado de examinar e de ver se se poderia evitar seu envio à Sagrada Congregação do Santo Ofício”. O papa precisou ao mesmo núncio que ele havia feito um grande favor a Galileu não submetendo tal matéria ao tribunal, mas a uma congregação particular, criada expressamente, o que era muito significativo.

Galileu foi intimado pelo cardeal sobrinho, incumbido da sua defesa. Ele devia reconhecer haver defendido a teoria de Copérnico, mostrar-se conciliador, não protestar: “O tribunal então poderá ser clemente com o acusado e Sua Santidade ficará satisfeito”. Assim se fez. Galileu foi obrigado a proclamar publicamente em uma igreja a condenação do heliocentrismo já formulada antes contra Copérnico. Ele fez essa declaração a 22 de junho de 1633, para satisfação de todos. O papa deu-lhe um castelo como residência vigiada.

Mas o cardeal Borgia, indignado com a manobra, havia-se recusado a assinar o processo verbal. No dia seguinte, o Pe. Grassi foi exilado para Savóia. Impôs-se-lhe interdito de publicar qualquer material; como jesuíta fiel e obediente, submeteu-se. O texto da segunda denúncia contra o Diálogo desapareceu dos arquivos, assim como as atas das assembléias da Comissão Especial. A limpeza foi geral e bem feita.

Ponto final. O caso Galileu estava encerrado. O resto não passa de lenda, mito, mentira, impostura.

 

O fiasco de um pontificado.

A última façanha, se assim se pode dizer, do papa Urbano VIII foi a fuga bem sucedida de Campanella.

Tomás Campanella, dominicano nascido na Calábria, em Stilo, possuía uma imaginação fecunda, conhecimentos extensos em cabala e alquimia, idéias tomadas de empréstimo a Joaquim de Fiore, uma atividade desordenada e furibunda.

Fazia-se chamar de “Messias”, anunciava as catástrofes do fim dos tempos. Como suas predições tardavam a cumprir-se, imaginou urdir uma conspiração para expulsar os espanhóis do Reino de Nápoles. Ele havia comprometido numerosos fidalgos e trezentos monges. Mas ele foi detido a tempo e condenado à prisão em Nápoles.

Campanella havia continuado a cruzada contra a escolástica e contra Aristóteles. Mas Urbano VIII veio em seu socorro. Durante três anos, ele negociou sua libertação com a corte de Madri. Em vão. Finalmente, prometeu ao rei da Espanha que o faria julgar pelo Santo Ofício. O rei, sem desconfiança, entregou-lho em 1626, após 25 anos de prisão. Imediatamente, o papa concedeu-lhe a liberdade e admitiu-o em sua intimidade.

Campanella publicou uma Apologia por Galileu e uma Defesa do sistema de Copérnico, não contrário à Escritura em 1634. Sua obra-prima, se se pode dizer, foi a A Cidade do Sol em que ele pregava uma comunidade total de bens e de pessoas, na esteira da Utopia de Thomas Morus.

Mas suas heresias eram conhecidas. Sofria ameaças, recorria-se ao Santo Ofício. Em desespero de causa, Urbano VIII entendeu-se com o conde de Noilles, embaixador da França, para ajudá-lo a fugir, disfarçado de cavalheiro. Ele foi calorosamente recomendado a Richelieu e ao rei Luís XIII. Deste obteve uma pensão de 3.000 libras e fixou-se em Paris onde trabalhava na biblioteca do rei. Gabriel Naudé, bibliotecário chefe, agradeceu publicamente a Urbano VIII “em nome da ciência” haver protegido Campanella com sua autoridade. Ora, Naudé era membro da “Fraternidade Rosa Cruz”, cujo palavra de ordem era: “Guerra ao papa, abolição do culto”.

Quando a inquisição real de Nápoles se deu conta do subterfúgio, exigiu que lhe fosse devolvido seu prisioneiro. O papa recusou.

 

Conclusão

Em toda esta história há círculo vicioso. Humanistas, rosa-cruzes, lincei e outros formavam entre eles como uma vasta teia de aranha recobrindo toda a Europa. Esses homens estavam ligados por correspondências regulares e cumplicidades ativas, como acabamos de vê-lo.

O caso Galileu só pode ser compreendido realmente à luz de uma tragédia mais vasta, a tragédia do combate do protestantismo contra os dogmas da fé católica e contra a filosofia escolástica que é seu suporte necessário. Dava-se aparência de um ataque a Aristóteles e aos jesuítas do Colégio Romano. Na verdade, e de uma maneira astuta, trabalhava-se com encarniçamento por matar a fé nas almas.

Quando um papa é o eleito de um conchavo, quando sua eleição resulta de manobras subterrâneas, para dar o poder hierárquico a um amigo e cúmplice, este se acha uma situação muito desconfortável.

Urbano VIII não pode declarar sua intenção profunda. Uma vez instalado na cátedra de Pedro, é obrigado, por sua função magisterial a continuar ensinando as verdades de fé em que não crê mais e gostaria de destruir. Ele deve manobrar sutilmente entre aqueles que “fizeram” sua eleição, e lhe recordam sem cessar o que esperam dele, e o conjunto do clero romano fiel, que ignora essas manobras e se acha perplexo e ressabiado, diante de situações mal compreendidas.

É necessária uma singular aptidão para utilizar as fórmulas da fé católica, esvaziadas de suas substâncias, e colocá-las a serviço do panteísmo e da gnose.

Os mais perspicazes compreenderam. Foram os jesuítas do Colégio Romano, publicamente e violentamente atacados, também os cardeais indignados. Houve, em Roma, na ocasião, homens muito corajosos e enérgicos para dirigir-se firmemente contra um papa prevaricador. Mas houve também dois príncipes cristãos, o rei Filipe IV da Espanha e o imperador Fernando II de Habsburgo, que puseram todo o prestígio de sua autoridade e de seu poder contra Urbano VIII até ameaçando-o de deposição.

 

Bibliografia:

REDONDI, Pietro. Galilée hérétique (Ed. Galimard, 1985 e 2003). Seguimos passo a passo sua obra, resumindo-a fielmente tanto quanto possível.

Quando publicada, essa obra foi objeto de críticas virulentas. A Civilta Cattolica dos jesuítas censurou-o por haver lançado uma hipótese gratuita podendo pôr em questão a formulação tradicional do caso Galileu”.

Em 1984, a Academia Pontifícia de Ciências havia publicado a documentação do Santo Ofício e afirmado que não havia nada inédito nos arquivos do Vaticano.

Pietro Redondi respondeu: “O valor científico dessa afirmação não poderá evidentemente ser posto em discussão, porquanto os que a fazem guardam também a exclusividade da prova.” Todavia, o dossier do caso Galileu é singularmente incompleto. Faltam-lhe as denúncias do Pe. Grassi e as deliberações da comissão especial, que foram destruídas.

Pietro Redondi julgou que as correspondências privadas dos protagonistas do drama podiam fornecer as verdadeiras razões do processo assim como as intenções subjacentes de uns e outros.

Quando uma comissão de peritos oficiais, escolhidos por uma autoridade política, é encarregada de um trabalho de pesquisa, ela não pode fornecer, infelizmente, senão uma “versão politicamente, cientificamente, religiosamente correta” diante da qual todos devem inclinar-se reverentemente. Sabemos hoje que essas versões “oficiais” são recheadas de mentiras e imposturas…

 

RANKE, Leopoldo. Histoire de la Papauté pendant le XVI et le XVIIsiècles.  Ranke  é um historiador protestante do século XIX. Quando sua obra veio a lume em Berlim, foi recebida com grande sucesso entre os protestantes e igualmente entre os católicos. Ranke pôde, graças às suas pesquisas históricas, restabelecer a verdade sobre o papado.

Seu livro foi publicado na França em 1837 e novamente em 1848, em uma edição crítica por Alexandre de Saint-Chéron que lhe acrescentou notas e complementos históricos, onde o autor protestante claudicava.

Essa obra foi recentemente reeditada, em 1986, na coleção “Bouquins” pela casa Robert Laffont.

É indispensável ler essa obra para compreender como o caso Galileu se inscreve em um combate global empreendido pela Igreja para reconquistar a Europa do protestantismo com o apoio do imperador Habsburgo e os esforços dos colégios jesuítas.

*Tradução integral do texto de Etienne Couvert publicado por Lecture et Tradition – Bulletin litteraire contrerévolutionnaire, mai 2006, Bordeaux, pelo Pe. João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa

(1)                        Etienne Couvert, La gnose contre la foi (Editions de Chiré, 1989, p. 84)

(2)                        Etinne Couvert, De la gnose à l’aecumenisme (Ed. De Chiré, 2ª ed.2001, p.81 et suivantes)

(3)                        Pedro Redondi, Galilée hérétique? (Ed. Galimard, 2003, p. 57)

(4)                        Esse texto foi publicado por Pedro Redondi em seu livro na página 370 e seguintes.

 

Nietzsche e a crítica da religião (UFG)

Postado por Admin.Capela em 09/mar/2008 - Sem Comentários

Pe. João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa

Introdução

Deve-se reconhecer que a obra Assim falou Zaratustra de Frederico Nietzsche não pode deixar nenhum cristão indiferente, mas constitui verdadeiro desafio que exige resposta. Este desafio, porém, nada tem de novo, a não ser, talvez, o seu estilo, próprio de uma teologia sagrada às avessas.

Para entender o discurso de Nietzsche, é preciso ter presente que a atitude do homem religioso sempre representou um escândalo para o mundo, dada a sua radicalidade de afirmar o valor absoluto do invisível contra o nada do universo. A postura religiosa do homem devoto que despreza o mundo ( não como obra divina do Criador, mas como conjunto de vaidades que se opõem ao Absoluto) só pode ser compreendida com objetividade quando se tem real cuidado de buscar seus fundamentos no plano mais alto da filosofia, indagando-se acerca das causas últimas das coisas. Do contrário, não se faz um estudo sério, mas pode-se ter a vantagem de fazer com sucesso uma caricatura mordaz da questão religiosa. Quer dizer, fica-se na superfície, nas aparências enganosas das coisas, mas não se conhecem as razões mais altas. Faz-se literatura, mas não filosofia.

Neste trabalho pretendo mostrar justamente isto: a análise da religião feita por Nietzsche carece de fundamentos sólidos, não é científica, pois que se limita a retratar a religião com alguns traços vagos e imprecisos de ordem antropológica e psicológica, abstendo-se de examinar o problema no plano metafísico.

Pretendo examinar detalhadamente o capítulo Das três metamorfoses da primeira parte de Assim falou Zaratustra, fazendo ver que o problema de fundo levantado por Nietzsche é a suposta incompatibilidade entre a liberdade de Deus e a liberdade humana, mas que este hipotético antagonismo recebeu uma solução da tradição religiosa.

O presente trabalho tem a seguinte estrutura: após esta introdução seguem-se dois capítulos e uma conclusão. No primeiro capítulo encontra-se uma análise da crítica geral à religião; no segundo, uma apreciação da crítica nitzscheniana ao transcendente. A conclusão terá um caráter de cotejo entre os dois tipos de crítica à religião.

 

Crítica geral à religião

Sempre houve uma crítica à religião, o que é natural ao espírito humano aberto à investigação. Na Antigüidade, a filosofia incumbiu-se de importante tarefa no sentido de purificar o senso religioso das superstições mitológicas e das corrupções pagãs. Houve também uma crítica filosófica à religião em si mesma, considerada como um erro nocivo ao homem, como uma postura anticientífica.

Isto em todas as épocas obrigou o espírito humano a depurar o senso do sagrado, a aprofundar-se na reflexão filosófica sobre a existência do Ser Absoluto e a incorruptibilidade da alma racional. Porém, as críticas que foram úteis ao esclarecimento do problema procuraram basear-se em argumentos metafísicos e gnosiológicos, isto é, questionaram a capacidade do intelecto de conhecer realmente a essência das coisas e, assim, demonstrar a existência de um mundo ultraterreno.

Este tipo de crítica à religião parte da negação da objetividade do conhecimento intelectual para em seguida recusar o princípio de causalidade e, por conseguinte, destruir a ciência como conhecimento das causas e negar a existência de Deus. De fato, o único título que pode justificar racionalmente a religião como culto do Ser Absoluto é a percepção da contingência das coisas que se expressa seja pela exigência de uma causa suficiente seja pelo movimento que supõe um primeiro motor. Quer dizer, na busca das causas não se pode deter senão quando se alcança uma causa que seja razão suficiente de todos os efeitos.

A expressão máxima desta corrente filosófica é o pensador inglês Davi Hume (1711-1776), autor da História natural da religião. Embora avalie negativamente a religião (a ignorância é a mãe da devoção), diz que se se encontrasse um povo sem religião, este povo pouco diferiria dos animais.

Como nominalista que negava os universais, Davi Hume afirmava que o conhecimento experimental não pode perceber nexos entre os fenômenos, mas vê apenas sucessão, de modo que a concepção de “causalidade” como influxo real que produz ou modifica alguma coisa não passa de ilusão e a causalidade na ordem real é pura sucessão constante. Isto é, pelo hábito de ver dois fenômenos sucederem-se  constantemente, damos ao primeiro o nome de causa  e ao segundo o nome de efeito, sem que na realidade o primeiro tenha influído na produção do segundo.

Ora, rejeitado o princípio de causalidade que resulta da percepção da contingência das coisas que não têm em si sua razão de ser e, portanto, exigem um Ser Necessário ou uma Causa Primeira, é evidente que a religião como culto ao Ser Absoluto perde todo direito a  uma justificação racional ou metafísica. A religião, assim, só poderá ser analisada pela psicologia, pela antropologia ou outras disciplinas que não podem oferecer uma resposta última à matéria, a não ser partindo da premissa filosófica antimetafísica.

Na verdade, porém, a recusa do princípio de causalidade é descabida e provém de um equívoco. Com efeito, além de uma falsa explicação do conhecimento humano – que nega o valor do conhecimento intelectual capaz de perceber o nexo causal -, pretendeu-se deduzir falsamente do princípio de indeterminismo físico de Heisenberg a ilegitimidade do princípio de causalidade. No entanto, ainda que a física moderna descarte um determinismo físico, isto não significa o fim da causalidade, pois uma causa livre não é menos causa que uma causa determinada. Pois o princípio de causalidade não afirma que de um determinado fenômeno se possam prever suas conseqüências – o que seria um determinismo hoje rejeitado pela física -, mas sim que todo ser contingente exige uma causa. De sorte que parte, não da causa, mas do efeito para a causa, nem determina qual é causa, nem especifica se é livre ou necessária.

A conseqüência desta corrente filosófica cética, na esteira da qual se poderia incluir Kant, será lançar um descrétido sobre a teologia filosófica e um desprestígio sobre a religião, que desde então será deslocada do plano racional para o plano sentimental. Relegada ao domínio do coração, onde a idéia de Deus se reduz ao sentimento do infinito a uma indigência do divino em contraposição ao Deus frio e teórico da metafísica, a religião passará a ser vista como uma postura anticientífica senão patológica própria de pessoas fanáticas condenada a desaparecer com o tempo.

É claro que a crítica à religião teve outros desdobramentos conhecidos à saciedade, tais como as célebres afirmações de Feuerbach e Marx. Feuerbach dizia que Deus, um ser imaginário, era o maior inimigo do homem, pois que se despojava de seus atributos para atribui-los a um ser inexistente, de maneira que quanto mais pobre um homem tanto mais rico o seu “deus”. Na mesma linha de argumentação, Marx dizia que a miséria religiosa – a religião é ópio do povo – é conseqüência da miséria social, de modo que, quando houver uma igualdade social com a distribuição da riqueza, não haverá mais religião.

Contudo, é preciso notar que qualquer crítica filosófica à religião, seja qual for o seu matiz, sempre partirá, em última análise, de uma posição tomada diante do problema gnosiológico.

 

Uma análise da crítica nietzcheniana à religião

(Análise da alegoria das três metamorfoses)

Falando Nietzsche, logo no início deste discurso de Zaratustra, de três metamorfoses do espírito, convém, em primeiro lugar, examinar o que entende o pensador por espírito.

É  claro que Niestzsche não se refere a uma entidade intrinsecamente independente da matéria em sua origem e existência. Logo, por espírito o pensador só pode entender uma propriedade da matéria que, em sucessivos desdobramentos, vai adquirindo consciência de si mesma até se tornar um espírito reflexivo.

Este espírito reflexivo, em sua fase primária, foi um camelo, em seguida transformou-se em leão e, finalmente, numa criança, conforme a figura de linguagem empregada por Nietzsche. Transformando-se em leão, o espírito toma consciência da sua liberdade, adquire uma vontade de poder que se rebela contra a ordem moral objetiva, fundada na natureza das coisas.

Vê-se, assim, que a questão teológica se apresenta para Nietzsche nos termos de uma suposta incompatibilidade entre Deus e a liberdade humana. Quer dizer, se Deus existe o homem não pode ser livre; mas como o homem é livre Deus não existe.

Por isso, Deus apresenta-se na alegoria de Nietzsche como um dragão que impõe ao homem o “tu deves”, a que retorque o espírito como um leão com o “eu quero”. Isto significa dizer que, se há uma lei moral objetiva com fundamento metafísico, o homem não pode ser um espírito criativo, não pode gerar novos valores, mas está condenado a ser um camelo carregador de pesado fardo, um espírito de suportação.

De maneira que, no âmago da crítica de Nietzsche à religião, está o problema da relação entre lei e liberdade. A este problema tentarei dar uma resposta.

É preciso dizer que este tema foi desenvolvido por Santo Tomás de Aquino em sua análise da relação entre a causa primeira e as causas segundas. Ademais, outros pensadores cristãos consagraram-se à reflexão sobre o problema na tentativa de conciliar a existência de um Deus onipotente com a existência do mal moral no mundo.

Diz Santo Tomás que a causalidade primeira de Deus não tira nada  da causalidade segunda das criaturas. Explicando como um mesmo efeito pode provir de Deus e do agente natural, diz o santo doutor da Igreja:

Em todo agente podemos considerar dois aspectos: o ser mesmo que atua e sua potência, como o fogo aquece pelo calor. E a potência de um agente inferior depende da do agente superior, enquanto este lhe comunica a potência mesma pela qual atua, ou a conserva, ou a aplica à ação; como o artesão aplica o instrumento ao efeito próprio; mas não dá ao instrumento a forma pela qual atua, nem a conserva, mas apenas lhe comunica o movimento. Logo um agente inferior atuará não unicamente por virtude própria, mas também pela dos agentes superiores, pois atua por virtude de todos eles. E assim como o agente inferior é a causa ativa imediata, assim a potência do primeiro agente é imediata quanto à produção do efeito; pois a potência do agente inferior não pode produzir por si mesma o efeito, mas por virtude do agente superior próximo(…)1

 

 

Diz também Santo Tomás de Aquino a propósito da concordância da divina providência com a liberdade:

O governo de todo governante prudente se dirige a lograr, aumentar ou conservar a perfeição das coisas governadas. Logo mais há de conservar a providência quanto é perfeito que quanto é imperfeito ou defeituoso. E  nas coisas inanimadas a contingência das causas procede de imperfeições e defeitos; pois segundo sua natureza estão determinadas a um só efeito que sempre logram, a menos que haja algum impedimento, ou se haja debilitado sua capacidade, seja por influência de algum agente externo seja por uma falta de disposição da matéria(…) Mas a contingência da vontade como causa procede da sua perfeição; porque não está determinada a uma só ação, mas pode produzir este ou aquele efeito, pelo que é contingente em relação a um ou a outro. Logo  mais próprio da divina providência é conservar a liberdade que a contingência nas causas naturais.2

Como se pode comprovar, o pensamento cristão lança os fundamentos da liberdade humana numa argumentação racional que demonstra que somente a liberdade infinita de Deus  garante a liberdade humana. Sem a liberdade divina como origem da liberdade humana, o mundo pagão só conheceu a realidade do fatalismo e do destino cego ou acaso.

No entanto, para compreender bem o problema da relação entre liberdade e lei, faz-se mister ter presente a noção de liberdade como a faculdade de escolha, sem reduzi-la à idéia de libertação de um entrave ou coação. É preciso entender a liberdade como a faculdade de mover-se livremente a um fim conhecido pela razão. De modo que a liberdade cega ou de indiferença não é propriamente liberdade, mas defeito, pois a liberdade supõe o conhecimento de um fim em função do qual o sujeito livre age. Ora, a lei moral que aponta o bem a ser feito e o mal a ser evitado não constitui em si coação, mas justamente o conhecimento do fim ou bem em função do qual o ser livre age. Sem este conhecimento o ser livre não agiria.

O problema é que a razão apresenta à vontade vários bens parciais, de modo que o homem deve escolher os bens aptos a conduzi-lo ao fim último. Por conseguinte, a lei moral não tem natureza de coação mas de luz que permite ao homem agir em busca de um fim.

Como se vê, a questão de fundo do pensamento de Nietzsche é de caráter gnosiológico: o homem não conhece racionalmente um fim último mas apenas bens parciais em torno dos quais se excita a vontade de poder num vitalismo antiintelectualista.

Em conclusão deste capítulo vale citar as palavras do pensador católico Lacordaire: “Entre o forte e o fraco, a liberdade escraviza, a lei é que liberta.” Creio que este pensamento ilustra as conseqüências a que conduzem o ideal aristocrático e o conceito de liberdade sem lei defendidos por Nietzsche.

 

Conclusão

Confrontando a crítica à religião formulada por Nietzsche com as críticas mencionadas no capítulo dois deste artigo, pode-se verificar que o autor de Assim falou Zaratustra apresenta sérias lacunas de natureza hermenêutica e metodológica em seu discurso.

Com efeito, ao contrário de outros filósofos que desenvolveram uma argumentação racional contra a religião, tentando provar a inexistência de Deus e a corruptibilidade da alma humana e, conseqüentemente, a inutilidade da religião, Nietzsche desfecha seu ataque sem nenhum fundamento filosófico, sem nenhuma argumentação, mas simplesmente com base em afirmações gratuitas.3 De maneira que se pode, com boas razões, duvidar do valor filosófico de sua crítica, ressalvada sua qualidade literária e estilística.

Sem oferecer nenhuma demonstração lógica da inexistência de Deus, Nietzsche limita-se a afirmar a incompatibilidade entre a vida e Deus, entre Deus e a liberdade do homem, entre o cristianismo (religião do rebanho e do fracos) e o espírito aristocrático dos fortes, etc. Ora, isto só poderia ser tomado em consideração se o pensador, efetivamente, provasse que a religião não passa de um tecido de ilusões e mentiras. Mas Nietzche cinge-se tão somente a uma superficial análise da história das religiões.

Não se pretende neste artigo produzir uma apologia do cristianismo que responda às críticas de Nietzsche mas apenas sublinhar a sua falta de embasamento racional, a sua falta de moderação nos termos empregados. Tudo isto está a indicar problemas de outra ordem, concernente à vida pessoal  do autor.

Em conclusão creio poder dizer que a chave de leitura da crítica de Nietzsche à religião se encontra em um dado de sua biografia: a sua formação luterana. Para compreendê-lo em seu ódio à religião é preciso levar em conta que ele tinha diante dos olhos a teologia luterana com sua tese pessimista da total corrupção da natureza humana incapacitada de qualquer obra de valor para a salvação. Ora, uma visão tão lúgubre da vida humana tinha todo potencial para engendrar uma reação. Infelizmente, a reação de Nietzche foi descomedida e passional.

Bibliografia

NIETZSCHE, F. W. Assim falou Zaratustra, Bertrand do Brasil, Rio de Janeiro, 1998.

COPLESTON SJ, F. Nietzsche, filósofo da cultura, Livraria Tavares Martins, Porto, 1953.

CERRUTI SJ, P. A caminho da verdade suprema, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, RJ, 1965.

MONDIM, B. Quem é Deus? Elementos de teologia filosófica, Paulus, São Paulo, 1997.

REALE, G., ANTISERI, D. História da Filosofia. Paulus, São Paulo, 1990.

SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma contra los gentiles, Editorial Porrua, México, 1985.

ZILLES, Urbano.  Filosofia da Religião. Paulus São Paulo, 1999.

 


1 Tomás de Aquino, Suma contra los gentiles, Editorial Porrua, México, 1985, capítulo LXX

2 Tomás de Aquino, Suma contra los gentiles, capítulo LXXIII

3 No mesmo sentido diz, a propósito da crítica de Nietzsche, Urbano Zilles em sua obra Filosofia da Religião: “A possibilidade de explicar a religião e a fé em Deus psicologicamente não exclui a possibilidade de encontrar uma realidade na experiência religiosa, uma vez que o encontro com a realidade também tem pressupostos psicológicos. Desta maneira, a fundamentação psicológica de seu ateísmo é insuficiente.

(….)

Simplesmente nega toda a realidade metafísica para negar a existência de Deus e da alma. (…) Nietzsche nega tanto a certeza da fé como a certeza da razão. Com isso, a rigor, não há certeza nenhuma. Nada é certo. Este niilismo atinge não só a atitudo ou certeza subjetiva, mas também a objetiva. Nietzsche não só discute sobre onde se situa uma certeza última – na fé ou na razão, no sujeito ou no objeto – mas conduz toda esta problemática ao absurdo.” Cf. ZILLES, Urbano. Filosofia da Religião, Paulus, São Paulo, 1999, p. 181 e 183.

L’acte d’être dans la “Metafisica” de Tomas Alvira, Melendo et Clavell

Postado por Admin.Capela em 07/mar/2008 - Sem Comentários

(Je crois edition 1982)

 

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1. PARTIE: Critique du concept d’acte d’être dans la <<Metafisica>>

1.1 ABSTRACTUM
1.2 RESUMÉE

1.3 TEXTE PRINCIPAL (manque)

2 PARTIE: Exposé cohérent de la vraie doctrine de St. Thomas sur l'<<esse>> (manque)

 

1. PARTIE: Critique du concept d’acte d’être dans la <<Metafisica>>

 

1.1 ABSTRACTUM

 

Faciné du thomisme je consacre mon temps depuis un moment à la métaphysique d’Aristote. Je voulais être confirmé dans sa manière de penser, pour mieux comprendre la doctrine de St. Thomas.

Mais avant que j’aie suffisamment approfondi la doctrine d’Aristote, je suis tombé sur une métaphysique qui se disait selon l’esprit de St. Thomas. Pour cela je faisais une petite exception et je me suis de nouveau consacré à St. Thomas avant d’avoir fini mes études d’Aristote.

La métaphysique m’a choqué et rempli d’un refus profond. C’était une perversion complète de la doctrine de St. Thomas, pourrie par le platonisme. Je me demandais d’où j’avais cette impression et d’où venaient ces nouvelles idées de la <<Metafisica>>.

Comme la métaphysique faisait référence à Étienne Gilson et qu’on estime celui-ci proche du <<néo-thomisme>>, mes soupçons vont dans cette direction.

(Justement avant de lire la <<Metafisica>> je m’étais acheté <<L’être et l’essence>> d’Étienne Gilson. Je ne l’ai pas encore lu. Mais je vais examiner attentivement en quelle mesure la <<Metafisica>> reflète ces idées.)

 

 

a) La doctrine de l’acte d’être se poursuit a travers le livre comme un fil rouge, une doctrine nouvelle des auteurs. Cette doctrine est décorée de citations de St. Thomas, comme s’il la partageait. Mais des positions thomistes ne se trouvent que rarement dans le livre. Le <<pulchrum>>, par exemple, est considéré comme un transcentental propre, et non pas comme une sorte de <<bonum>>, comme c’est la doctrine de St. Thomas.

 

b) La doctrine de l’acte d’être prend son origine d’une fausse interprétation de la <<distinction réélle>> entre <<Esse>> et <<Essentia>>. La fausse identification de <<Esse>> et <<Existentia>> se trouve aussi  auprès d’auteurs bien thomistes. Mais ici elle trouve une interprétation, qui se refert au platonisme. De la même manière que l’essence est composée de la forme et de la matiere, la métaphysique présente la composition de chaque Ens par la composition de l’essence et de l’acte d’être. Selon les auteurs l’acte d’être précédait l’essence et lui a donné toute sa perfection, à l’opposé de St. Thomas. Si on prend cela pour sérieux, l’essence n’a pas plus de perfection en soi que la matière première. Je ne vois pas en quoi une telle essence se distinguerait de la matière première. Les auteurs ne le montrent pas.

 

c) Cela est exactement le contraire de la doctrine de St. Thomas d’Aquin.

Les perfections du <<ipsum esse>> et de la substance sont complémentaires dans la créature. Il ne peut donc donner aucune des deux ses perfections à l’autre. C’est justement cela que dit la distinction réélle vraiment.

(Il semble que je sois le seul, qui voit dans le <<ipsum esse>> un terme technique.)

Le <<ipsum esse>>, comme la partie de l'<<esse>> qui ne provient pas nécessairement de la substance, a toute son actualité d’une cause ÉXTERNE et non pas d’un acte d’être interne.

(En dernier lieu cette cause est le <<Ipsum esse subsistens>>, donc Dieu.) Le “ipsum esse” de la créature ne donne donc nullement sa perfection à l’essence, mais au contraire l’essence de la substance donne la possibilité au “ipsum esse”. Il faut dire par contre, que la substance EXISTE par le <<esse>>. La partie de l'<<esse>> qui n’est pas <<ipsum esse>>, a toute sa perfection par la perfection de l’essence (donc de la forme) et non pas l’inverse.

 

d) Le <<esse>>, dans le vrai thomisme, n’est pas un acte uniforme dans la créature, mais une multitude de perfections existantes, qui chacune est une et parfaite.

La seule partie de l'<<esse>> qui forme une certaine unité est l’être qui est produit nécessairement par la substance existente. Cette partie de l'<<esse>> on peut la nommer d’une certaine manière <<actus essendi>> parce qu’elle vient de l’ESSENCE. C’est à cause de l’essence que la chose est nommée <<ens>>. Cet <<actus essendi>> reçoit donc toute sa perfection par la forme et non pas l’inverse. La forme ne reçoit donc aucune perfection d’un acte d’être interne quelconque.

 

e) Le <<ipsum esse>> par contre signifie exactement l’ouverture envers Dieu (<<participatio>>). Si le <<ipsum esse>> était seulement la représentation d’un acte d’être qui dès le début fairait partie de l'<<ens>>, comme le pensent les auteurs, l'<<ens>> ne serait plus du tout ouvert à une détérmination extérieure.

La doctrine des auteurs est un idéalisme radical.

Le <<ens>> serait renfermé en lui-même avec son propre acte d’être, comme un autiste.

Dans la doctrine thomiste par contre l’actualité qui donne la détérmination au “ipsum esse” est le “esse” de Dieu lui-même, à travers la réalité objective. Cet <<esse>> ne peut d’aucune manière être partie du <<ens>> créé.

 

f) L’acte d’être, que décrit la métaphysique indiquée, ne contient aucune limitation, ni par l’essence ni par la matière. Il ne peut être que Dieu lui-même. La doctrine des auteurs est donc un panthéisme. Car les auteurs prétendent que cet acte d’être ferait partie intégrante de l'<<ens>> lui-même.

 

g) Le modèle d’acte et de puissance utilisé par les auteurs, n’est pas un modèle aristotélico-thomiste, mais un modèle platonicien. Dans ce modèle faux la composition de l’acte et de la puissance a une fonction purement négative pour le composé. Dans ce modèle, l’acte est limité par la puissance de manière que le composé est pire que ses parties. Cela contredit le modèle aristotélico-thomiste. Dans ce modèle la puissance n’a aucun effet limitatif rétroactif à l’acte, mais la puissance est le principe de la limitation. Elle limite seulement l’acte en tant que sa perfection est reçue dans la puissance.  Mais elle n’a aucun effet négatif sur la perfection de l’acte lui-même. Le composé d’un acte et d’une puissance est donc plus riche que l’acte lui-même. Il contient en plus de la perfection de l’acte des puissances supplémentaires qui permettent de reçevoir d’avantage d’actualisations.

 

h) Le modèle d’acte et de puissance, platonique et faux, conduit dans le composé de l’essence et de l’acte d’être à une <<inimitié de la substance>> comme il conduit à une inimitié du corps dans le composé de la forme et de la matière. Si l’essence n’a que la fonction de limiter l’acte d’être, qui selon les auteurs fait partie intégrante de l'<<ens>>, il serait donc mieux s’il n’y avait pas d’essence du tout. Cela signifie, dans ses dernières conséquences, que le but du monde n’est plus dans la vérité des choses (St. Thomas), mais dans la perte plus parfaite de la substance. Le but des choses serait l’union parfaite avec l’océan de l’acte d’être universel, avec perte de la propre substance (New Age).

 

i) Une autre conception des auteurs n’est pas thomiste du tout. Il pensent que l’existence serait une perfection propre (de nouveau leur acte d’être). Pour St. Thomas par contre, tout comme pour Aristote, le <<ens>> existe par les differentes perfections de l'<<esse>>. Il n’y a aucune propre perfection, qui fait qu’une essence existe, mais le <<ens>> existe par les différentes perfections qui forment le <<esse>>. Quand St. Thomas parle de l'<<actus essendi>>, il parle de la perfection dans le <<esse>>, qui est nécéssairement produite par la substance existante à partir de la perfection de l’essence (forme). Cette partie de l'<<esse>> a toute sa perfection de la forme et non pas d’une perfection supplémentaire. C’est l’essence qui fait de la chose un <<ens>>. Des perfections supplémentaires (pluriel!) se trouvent dans le <<ipsum esse>>. Mais ceux-ci non plus viennent d’un acte d’être interne, mais de causes externes.  Le <<ens>> existe par les perfections dans le <<esse>>. Mais l’existence elle-même n’est pas de perfection supplémentaire. Elle a justement la perfection qui sont toutes ces perfections.

 

j) Comme Aristote aussi St. Thomas explique l’absurdité de considérer l’existence comme une perfection (c.à dire quelle serait une propre essence). Seulement un <<ens>> existent peut reçevoir des perfections existentes. Mais pour reçevoir la “perfection (impossible) de l’existence” le <<ens>> devrait être en même temps “in-existant”. Pour cela St. Thomas explique que l’existence est première à la possibilité de reçevoir une perfection.

Pour cela il ne parle pas d’un composé d’existence et d’essence, mais d’un composé d´<<esse>> et d’essence. Dans ce point ne se trompent pas seulement ces auteurs, mais aussi quelques thomistes renommés.

 

k) Les auteurs évoques à plusieurs reprises l'<<analogia entis>> et l’expliquent avec une doctrine platonique de participation. L'<<analogia entis>> n’a rien à faire avec cela! L'<<analogia entis>> vient d’Aristote et il ne connait que dérision et raillerie pour la doctrine de participation platonicienne, comme aussi pour la doctrine semblable des pythagoriciens.

La doctrine de l'<<analogia entis>> n’a qu’un seul arrière-plan, c’est la découverte que l’existence n’est pas de perfection propre. (St.Thomas dit: n’est pas d’essence).

Parce que l’existence n’est pas de perfection propre on ne peut pas former un <<genus existentis>> (réel, mais seulement logique). (St. Thomas utilise ce fait connu pour montrer que la <<demonstratio quid est>> est essentiellement différente de la <<demonstratio quod est>>.) Pour former un genre commun on a besoin d’une perfection commune. Mais l’existence n’est pas de perfection propre. (Selon mon opinion cela est aussi une erreur de M. Heidegger.)

 

l) Les auteures croient que la substance et les accidents seraient des limitations de l’acte d’être qui contiendrait toutes leurs perfections. Selon leur opinion substance et accidents “participent” à l’acte d’être. Cela n’est pas possible. L’existence actuelle demande la perfection (la plus haute qui lui est dûe). Elle ne peut pas être l’ombre d’une réalité encore plus parfaite qui existe en réalité derière les choses. (Platon: Parabole de la caverne) Oubien substance et accidents existent réellement oubien il y a un acte d’être plus parfait derière eux. Mais les deux choses ne sont pas possibles en même temps!

L’existence actuelle trouve son unité dans l’essence. Une même chose ne peut pas être composée de plusieurs parties qui, elles, existeraient aussi en acte (substance, acte d’être). Plusieurs êtres existant en acte ne peuvent pas former une unité qui existe en acte. Une chose peut <<participer>> à l'<<esse>> d’une autre en tant que l’essence est en puissance en relation à l'<<esse>>. De cette manière les perfections de la créature peuvent participer à la perfection de l'<<esse>> subsistent. Mais l'<<esse>> en tant que tel est en acte. Il n’a donc pas de potentialité qui lui permettrait de participer encore à un acte plus grand. La créature ne peut même pas par participation former d’existence actuelle commune avec l'<<esse>> subistent. Autant moins la créature peut former une existence actuelle commune avec un acte d’être créé. C’est absurde.

Comme l'<<esse>> est nommé tel selon son actualité il ne peut pas lui-même être limitation d’un autre <<esse>>. Il ne peut exister actuellement seulement ce qui a la perfection (la plus haute qui lui est dûe). Par n’importe quelle limitation des perfections de l'<<esse>> l’existence actuelle se perd.

 

m) Tout cela se prouve déjà facilement par le fait que deux êtres en acte ne peuvent pas former un seul être en acte. Mais la substance et les accidents existent en acte. Il ne peut donc pas exister un acte d’être qui unit ces deux entre eux ou avec l’acte d’être.

 

n) Par cette même raison la définition du suppositum n’est pas reçevable. Les auteurs voient le <<suppositum>> donné par l’acte d’être qui unit substance et accidents. Mais substance et accidents existent en acte. Il ne peuvent pas être unis par un acte d’être supérieur. Les accidents reçoivent des détérminations extérieures, qui ne sont pas de l’essence de la substance.

 

o) Entre autres il faut donc dire selon la doctrine thomiste, et contre les auteurs, que l'<<esse>> ne peut absolument pas former un acte unique dans la créature. Mais l'<<esse>> est composé d’une pluralité d’actes. Seulement l'<<esse substantiae>> peut être regardé comme une certaine unité.

 

p) Aussi faut-il admettre, qu’il est complètement inutil d’inventer un acte d’être, qui unit substance et accidents. Comme un tel acte d’être serait différent et de la substance et des accidents, on aurait en tout cas besoin d’une limitation (pour la substance et les accidents). Mais de cette manière on aurait de nouveau une dualité entre acte d’être et limitation. Pour unir ces deux il faudrait introduire de nouveau un meta-acte d’être pour les réunir. Cela continuerait jusqu’à l’infini…

 

RÉSUMÉ

 

En résumé il faut dire contre les auteurs:

La potentialité de l’essence en vue de l'<<esse>> est détérminée de l’EXTÉRIEUR par la réalité objective et en dernier lieu par l'<<esse subsistens>> lui-même. Á l’INTÉRIEUR cette potentialité est détérminée par la forme. Mais dans aucun cas l'<<esse> est détérminé par un acte d’être intérieur. C’est l’essence qui fait de la chose un <<ens>> et non pas l’inverse. Concernant la détérmination de l’être intérieur, la forme est l’acte et non pas un autre acte d’être.

La forme n’est pas elle-même puissance envers un acte d’être interieur.

Surtout  l'<<esse>> ne peut pas être identique avec un tel acte d’être.