Cardeal Ludovico Billot
Nota do tradutor
Com prazer ofereço ao leitor de língua portuguesa a tradução da importantíssima obra do eminente teólogo jesuíta cardeal Ludovico Billot De immutabilitate traditionis contra modernam haeresim evolutionismi, feita a partir do texto original latino publicado em 1929.
Esclareço que esta tradução contou com a colaboração (para as partes mais difíceis) dos saudosos D. Manoel Pestana Filho, que muito me incentivou na execução da tarefa, e do dr. José Moacyr de Oliveira.
Dom Pestana recordava a propósito as palavras de seu antigo professor na Universidade Gregoriana Padre Tromp: “A ‘trindade’ da sagrada teologia está constituída por Santo Agostinho (De Trinitate), Santo Tomás (Summa) e cardeal Billot (De Ecclesia).
É bem possível que a presente tradução contenha erros de digitação ou mesmo períodos de uma tradução menos feliz. Agradeço ao leitor que me aponte tais erros para uma melhora do trabalho. Preferi publicá-la antes de uma revisão geral rigorosa para não retardar ainda mais sua publicação que estava prevista para ser lançada por uma editora que desistiu do projeto diante do desinteresse do leitor brasileiro pela aquisição de boas obras teológicas. Como bem sabemos, o mercado editorial de obras ditas religiosas está praticamente dominado pela literatura herética modernista, pentecostal e sincretista.
A presente obra do cardeal Billot é importante para refutar a ideia de “tradição viva” que nega a imutabilidade do dogma. Com efeito, a reta teologia só admite um processo de explicitação e aprofundamento da verdade católica, jamais uma mudança substancial. Por exemplo, a Igreja sempre ensinou a doutrina da tolerância religiosa (desde o período da patrística até Pio XII). Essa doutrina foi sendo organicamente desenvolvida, sempre conservando o mesmo sentido. Ora, o que era tolerância do erro em foro público não pode transformar-se em liberdade do erro, ainda mais quando a Igreja condenou rigorosamente a liberdade de cultos.
Boa leitura!
Pe. João Batista de A.Prado Ferraz Costa
Proêmio
O Concílio Vaticano I, na constituição Dei Filius, capítulo 4, diz: “ A doutrina católica que Deus revelou não foi proposta como uma descoberta filosófica que devesse ser evoluir ao sopro do engenho humano, mas transmitida como um depósito divino à esposa de Cristo, para ser fielmente conservada e infalivelmente exposta. Portanto, o sentido dos sagrados dogmas deve ser perpetuamente guardado, uma vez definido pela Santa Madre Igreja, e jamais afastar-se desse sentido, a pretexto de uma mais alta compreensão.” Além disso, diz o cânon 3º de fide et ratione: “Se alguém disser que pode ocorrer que aos dogmas propostos pela Igreja, às vezes, conforme o progresso da ciência, se deva atribuir um sentido diverso daquele que entendeu e entende a Igreja, seja anatematizado.”
Não obstante, surge agora uma nova corrente, principiada em surdina no século XIX por Gunthero, que defende abertamente a evolução kantiana e racionalista da nossa religião; que considera a mutação do dogma de uma forma para outra, de um sentido para outro,conforme as várias condições do meio e os sucessivos estados da cultura humana: diz que todo o conjunto da doutrina, como uma fecunda lucubração da razão humana sob pressão do coração e do sentimento religioso, está em contínuo e indefinido movimento.
Nesta perspectiva, dois livros recentemente publicados dizem com toda crueza e insolente escárnio dos padres, doutores, pontífices de todos os tempos: “A fé não tem morada permanente nesta terra, mas necessita sempre de tabernáculos provisórios. Em vão se esforçariam por retê-la em suas formas antigas, que não podem mais adaptar-se a outras mentalidades e não nada mais são do que monumentos veneráveis de tempos pretéritos. Com efeito, hoje, nas presentes condições culturais, não é possível, por mais tempo, que o homem julgue só segundo critérios do senso comum, concilie o que vê e lê na Sagrada Escritura com o que os nossos teólogos parecem afirmar acerca da verdade universal e absoluta da mesma Escritura. Não é possível por mais tempo conciliar a história do doutrina cristã com o que nossos teólogos parecem afirmar a respeito da sua perpétua e contínua identidade. Já não é possível conciliar o sentido natural dos textos evangélicos, sobretudo dos autênticos, com o que os nossos teólogos ensinam ou parecem ensinar sobre a consciência ou ciência de Jesus Cristo. Já não é possível afirmar, como adequada à economia da salvação, a teoria concebida na ignorância da história do homem sobre a terra e da história da religião na própria humanidade. Portanto, é hora de considerar totalmente vacilante a fé na autoridade das Escrituras, mostrando o que é realmente a Bíblia, e qual gênero de verdade se lhe deve atribuir. É chegada a hora de considerar totalmente vacilante a fé na redenção e na salvação, buscando sob formas ou idéias agora mortas o princípio da verdade imutável que nelas está profundamente latente, e por fim a noção inteligível daquelas coisas em que Cristo teve parte na regeneração moral da humanidade. Já é tempo de considerar vacilante a fé na ressurreição do Salvador e na sua presença eucarística, penetrando mais o mistério do Cristo imortal que vive perene em Deus e na sua obra etc. Em suma, é o momento para que a Igreja Católica seriamente reconsidere que, por longo tempo, não temeu bastante escandalizar os doutos; e que o próprio catolicismo se reserva uma ruína fatal, enquanto sua pregação parecer impor aos espíritos uma concepção do mundo e da história discrepante daquela que o avanço dos últimos séculos restabeleceu; mas sobretudo, enquanto os fiéis forem proibidos, por medo de ofender a Deus, de pensar e admitir na ordem filosófica, científica e histórica, conclusões e hipóteses que os teólogos da idade média não previram.
Com efeito, não se poderia excogitar negação mais radical de todos os princípios e regras da fé cristã católica. Chega-se assim, não só por dedução lógica e inevitável conseqüência, mas também por uma confissão formal e eloqüente dos autores, à categórica negação de toda a revelação, isto é da verdadeira e própria palavra de Deus. Mas esta heresia, se se pode ainda falar em heresia, não revestiu imediatamente a forma completa sob a qual agora se trai. Teve suas primeiras raízes no falso conceito de tradição católica, como se efetivamente esta tradição estivesse contida no simples fato humano histórico, cujos testemunhos pudessem e devessem ser tratados segundo os mesmos critérios e regras, nem mais nem menos, como os outros monumentos da antiguidade. Disto resulta o chamado método histórico nos estudos de teologia positiva; adotando tal método, alguns eruditos parecem admitir manifesta oposição entre o sentido do dogma conforme os mais antigos padres, sobretudo os anteniceneanos, e o sentido que os concílios e doutores de idade posterior abraçaram.
De maneira que, reintroduzido na dogmática aquele progresso guntheriano já condenado pelo Concílio Vaticano I, acrescentada apenas certa espécie de novidade derivada da teoria da evolução, que após Darwin havia obtido tanto sucesso por toda parte e deu origem à noção de fé viva, como dizem, isto é, a noção de fé que primeiro se continha em gérmen e depois, como que a partir de um óvulo que se desenvolve, e passando de espécie em espécie, à maneira do animal darwinano, por via de seleção e sob o influxo do meio ambiente, sempre se transforma em algo melhor. Para que talvez alguém não ficasse inquieto de como conciliar semelhante teoria com a doutrina católica sobre a infalibilidade da tradição e do magistério da Igreja, oportunamente foi ressuscitado o conceito de Gunther sobre a verdade relativa. Falam em verdade relativa por oposição à verdade simpliciter, em relação à qual, houve, até certo ponto, na medida da possibilidade de acréscimos, maior ou menor aproximação, havendo sempre, porém, grande distância da desconhecida verdade absoluta, que a seu tempo talvez se revele. Mas, como da verdade relativa se prepara fácil descida para a negação de toda verdade objetiva, por isso ulteriormente extraíram das oficinas da filosofia kantiana a idéia do dogmatismo moral ou postulado que nada mais é que a subjetiva lucubração do intelecto sob o determinismo da vontade. Finalmente, chegou-se ao sistema completo que está exposto na referida obra O Evangelho e a Igreja. Nela, a Trindade, a Encarnação, a Redenção, a Igreja, os Sacramentos, enfim todos os nossos dogmas na medida em que neles cremos, são apenas certa fase da evolução. Igualmente, a crítica histórica e a fé relacionam-se entre si de tal maneira que nunca possam contradizer-se, porquanto a fé refere-se à presente forma de que se reveste a idéia cristã, a crítica, ao contrário, versa sobre todas as diversas formas que estavam na origem.
Pretendo tratar ordenadamente de todas estas questões e, em primeiro lugar, do conceito errôneo de tradição, que está na origem de toda esta teoria. E porque o erro concebido não aparece senão à luz dos princípios verdadeiros, tratarei inicialmente destes princípios.
Capítulo I
O conceito católico de sagrada tradição.
Guarda o precioso depósito, pela virtude do Espírito Santo que habita em nós.
(2 Tim. 1-14)
“Muitas vezes e diversos modos outrora falou Deus aos nossos pais pelos profetas. Ultimamente nos falou por seu Filho.” Com estas breves palavras em concisa sentença o apóstolo compendia integralmente toda a revelação católica, desde o princípio até sua conclusão. Dizemos, com efeito, que a revelação é toda locução de Deus dirigida a nós, seja pelo órgão humano unido hipostaticamente ao Verbo, seja pelos instrumentos separados, tais como foram aqueles santos homens de que fala a 2 Epístola de São Pedro, 1-21. Essa revelação está encerrada tanto da parte da palavra oral, pela boca do próprio Cristo, e dos seus apóstolos, pela inspiração do Espírito Santo, sem a consignação por escrito, quanto da parte da palavra escrita pelo ministério dos hagiógrafos do Antigo e do Novo Testamento. De ambos modos dirigia-se a revelação a toda a Igreja futura até a consumação do mundo.
Ora, em toda palavra, distingue-se a coisa ou verdade dita pela palavra, que se pode chamar a palavra em sentido objetivo, e a expressão pela qual é dita a verdade, que é a palavra em sentido formal. Se, pois, a fala se refere às coisas ou verdades expressas pela palavra, então não há diferença nenhuma entre a palavra de Deus escrita e oral, porque seja de um modo ou de outro se supõem expressas verdades igualmente ditas por Deus, pertencentes ao objeto material da fé. Mas se a fala se refere à própria palavra pela qual a verdade revelada foi expressa por inspiração divina, então há certa diferença entre a palavra e a verdade. Pois a palavra escrita de per si fixa e permanente, e portanto a mesma locução divina, uma vez impressa, pode ser conservada no mesmo número. Mas a palavra oral é proferida e se comunica, e portanto, para a transmissão da verdade dita, requer outra locução, em número distinto. Esta locução está para o original como certa repetição ou ressonância, ou prolongamento através do espaço e de intervalo de tempo. Ela recebeu entre nós o nome genérico de tradição. De maneira que a palavra de Deus proferida primeiro se diz transmitida (verbum traditum), visto que entregue à tradição, e pela tradição prolongada e perpetuada. Sob esta denominação é comum distingui-la da palavra escrita contida nos livros sagrados.
No entanto, a palavra ou tradição que perpetua a revelação feita originalmente pode ser considerada de duplo modo. De um modo, como tradição de um só fato, submetida ao fluxo geral das realidades humanas, às causas e cuidados humanos, deixada ao engenho humano, como se pode verificar nas tradições históricas, nas quais cada um, pelo seu esforço e capacidade, se empenha em conservar para a posteridade aquele patrimônio recebido dos maiores. De outro modo, como tradição não só de fato mas de direito divino, à qual, certamente, foi prometida pelo autor de nossa religião a instituição de um órgão autêntico e perene de especial assistência. E se alguém considerar antes de tudo esta matéria, dificilmente lhe parecerá digno de crédito aquele modo da tradição na religião revelada, se não se convencer de que Jesus Cristo nos trouxe a luz da revelação provida de um meio eficaz para a sua pura e incorrupta conservação. Com efeito, ninguém, que faça um juízo equânime seja sobre a natureza dos dogmas que devem ser conservados seja sobre as condições da nossa frágil humanidade, reconhecerá completamente esse meio eficaz. Entretanto, não convém por ora alongar-nos em tais considerações, mas antes recorrer aos documentos positivos, a partir dos quais se deve demonstrar a proposição fundamental que vem a seguir.
§ 1
O órgão autêntico da tradição foi instituído por Jesus Cristo em sua Igreja hierárquica e apostólica, à qual prometeu jamais abandonaria. Essa tradição é a pregação da revelação recebida do próprio Jesus Cristo e dos seus apóstolos, a qual é, de geração em geração, continuada pelos sucessores dos apóstolos sob a assistência do Espírito Santo.
Inicialmente, recorde-se a história evangélica e tudo o que nela se contém a respeito das origens da doutrina cristã: A mensagem da salvação, diz Hebreus 2, 3, anunciada primeiro pelo Senhor, confirmada ao depois pelos que a ouviram. Digno de nota este anunciada, bem como o pelos que a ouviram. Em forma de compêndio ai se recapitula aquilo que na supradita história está manifesto: a doutrina de salvação de Cristo, não a escrita, mas a palavra da pregação, pelo magistério pessoal, foi proclamada pelo oráculo de viva voz. O próprio Filho de Deus feito homem, enquanto viveu entre os homens, foi mestre e doutor. Demonstrado que em sua pessoa se realizam as profecias, comprovado pelos sinais divinos das obras e dos milagres, declarado pelo Pai Celeste no início do seu solene magistério de tal maneira que fosse ouvido por outros, “assumindo o múnus de preceptor a fim de nos ensinar a bem viver para depois, como Deus, dar-nos a vida eterna”[1]. E tendo cumprido a obra de que o incumbira seu Pai, tendo anunciado o evangelho do reino por três anos por todas regiões da Galiléia e da Judéia, tendo instruído seus discípulos, fundado o novo e eterno testamento em seu sangue, ressuscitado dos mortos preparava a ascensão ao céu. Entretanto, prevendo a perenidade e a propagação da revelação que trouxera ao mundo, àqueles que constituíra como vigários encarregados de perpetuar a sua obra, lhes disse por fim: “Foi-me dado todo poder no céu e na terra. Ide, pois, e ensinai todas as nações a obedecer tudo o que vos ordenei, eis que estarei convosco todos os dias até o fim dos tempos. Estas são as últimas palavras de Cristo – digo- que dispõe com uma ordem eficaz o meio pelo qual sua doutrina revelada para o mundo todo chegasse a todas as gerações. Estas palavras foram ditas após a ressurreição na solene aparição do monte da Galiléia, à qual convocara, além dos apóstolos mais importantes, todos os outros discípulos,[2] de maneira que toda a Igreja de então fosse testemunha do seu derradeiro mandamento.
Aí, pois, temos para sempre a primeira instituição do autêntico órgão da tradição. Refiro-me, não a qualquer tradição recebida, mas à doutrina da tradição recebida de Cristo. Refiro-me a uma doutrina que não deve ser juntada mas confiada, não enriquecida mas protegida. Esta doutrina não precisa de autores, mas de custódios, não de pesquisadores, mas de fiéis dispensadores. Ensinando, diz, a observar tudo o que vos mandei. Ora, Cristo mandou que se cresse na doutrina integral do evangelho, que ele pessoalmente pregara, enquanto estava entre nós, e tinha prometido aos seus discípulos que pelo seu Espírito Santo revelaria o pleno complemento da sua doutrina, dizendo: “Tenho ainda muita coisa a dizer-vos, mas não podeis compreender agora. Quando, porém, vier o Espírito de verdade que vos enviarei da parte do meu Pai, ele vos ensinará toda a verdade.[3]
Em segundo lugar, deve dizer-se que a instituição do órgão da tradição há de durar até o fim do mundo. Em todo evangelho, especialmente em São Mateus…..(em grego) significa o fim do mundo presente, o último advento de Cristo e o tempo do juízo universal. E certamente, não altera o sentido dessa passagem o fato de as palavras serem dirigidas aos presentes, pois estes permaneceriam em seus sucessores. De maneira que o Senhor lhes ordena ensinar a todas nações sem nenhuma restrição de tempo ou lugar, e logo após vemos os apóstolos cumprindo o mandato de Cristo, fazendo-se substituir por outros que seriam guardiões e doutores da doutrina e aos quais se comunica o Espírito Santo, que neles permanece.[4] A eles também se prescreve que ordenem e ensinem a homens fiéis e idôneos aquilo que receberam.[5] E tudo isso, até o advento de Nosso Senhor Jesus Cristo, que se revelará a todas as eras como o santo, o único poderoso, o rei dos reis, o dominador dos dominadores.[6]
Em terceiro lugar, deve notar-se que a instituição do órgão da tradição está dotada do carisma da indefectibilidade. Com efeito, Cristo diz: “Estou convosco”. As Escrituras demonstram com freqüência o que isso significa. Essa locução, sem sombra de dúvida, é empregada em muitas passagens para expressar uma proteção divina, certa e invencível. Essa locução não implica um gênero de auxílio eficaz; ela promete uma assistência infalível para o exercício de determinada função, excluindo qualquer lapso ou defecção. Promete-se aos apóstolos e aos seus sucessores uma assistência perpétua de Cristo, não para qualquer fim que pudesse excogitar a razão humana a respeito do reino de Deus; não para erradicar todos os vícios, não para impedir todos os escândalos. Pelo contrário, todas essas vicissitudes estão discretamente profetizadas. De forma sóbria está dito que no campo do Senhor haverá cizânia juntamente com o trigo e que ambos crescerão até a sega. Todos conhecem a rede atirada ao mar que apanha todo gênero de peixes. Todos conhecem a barca, da qual se diz com admiração que, apesar de sobrecarregada por tão grande multidão, não submerge. São igualmente conhecidas outras parábolas do evangelho com sentido semelhante. Portanto, não diz “estou convosco” aos fundadores de um reino de perfeita justiça e consumada santidade. Mas diz “estou convosco” aos que vão ensinar as verdades contidas na revelação do meu evangelho. À assistência prometida corresponde, pois, uma indefectibilidade, que garanta a transmissão íntegra da genuína doutrina de Cristo, de tal maneira que esta possa ser conhecida sem sombra de dúvida.
Em quarto lugar deve-se examinar o seguinte acerca do órgão da tradição: a ele Cristo promete uma assistência continua, não apenas por alguns intervalos de tempo. Não diz que estaria no futuro em certos dias, em certas circunstancias, por exemplo, quando foram definidos os artigos de fé, ou quando fosse necessário por um decreto corrigir ou restituir ao sentido puro aquilo que pela injúria do tempo houvesse sido adulterado antes por falsa tradição. Mas, todos os dias, diz. E que significa este “todos os dias”? Significa que estará no ordinário e quotidiano ministério do magistério, não apenas no seu exercício mais solene. Realmente, dizendo todos os dias, exclui a menor interrupção, sequer de um dia, e não deixa lugar para o mínimo desvio. Que significa todos os dias? Em qualquer século, em qualquer idade. Passará a idade da Igreja primitiva, com um olhar não veja as suas origens próximas, nem conte a série de sucessão pela qual se transmite o tesouro da doutrina celeste, e ainda e sempre vobicum sum. Agora e sempre estará presente aquele Espírito de verdade que desde o início esteve presente. Agora e sempre, até que venha a consumação dos santos haverá aqueles mesmos pastores e doutores colocados por Cristo, a fim de que não sejamos ingênuos enganados por qualquer doutrina, astúcia ou erro. Agora e sempre haverá a mesma hierarquia apostólica, que, em razão da indefectível tradição do evangelho recebido de Cristo, é coluna e firmamento da verdade.[7]
Em quinto lugar, é preciso dizer que o instituto do órgão da tradição não é de qualquer gênero, mas ao modo oral ou sempre da viva pregação. Todas as coisas ditas em breve a respeito da razão, da índole e perenidade do ministério constituído demonstram isto. Donde se pergunta: que lugar tem, no sistema bíblico dos protestantes, aquele órgão permanente, ordinário, perpétuo, ao qual Cristo, por todos os dias, deveria assistir até a consumação dos séculos? Realmente, nenhum. Porque, uma vez depositado aquele tesouro da doutrina celeste pelos que a ouviram no instrumento fixo da escritura, não restava mais nada a ser feito e toda a obra de ensinar integralmente tudo aquilo que vos mandei se encerrava necessariamente com a idade dos apóstolos ou dos homens apostólicos. Igualmente, significam isso as palavras ensinai, pregai, em seu sentido óbvio e em sua compreensão natural, não sendo a escritura senão um meio artificial, acessível a poucos, introduzido como um auxílio ou suplemento da pregação oral. Com efeito, sabemos por testemunho certíssimo da história que os apóstolos (aos quais ninguém acusaria de não ter obedecido à intenção ou ordem de Cristo) nada escreveram ex professo como algo próprio ou em cumprimento de uma função especial deles, mas apenas ocasionalmente, como que levados por um motivo acidental. Diz Eusébio (1. 3 hist. C. 24) que São Mateus escreveu porque, como pregasse aos hebreus, e se preparasse para ir aos pagãos, julgou útil deixar para aqueles de quem se afastava um memorial da sua pregação. Diz também Eusébio (1.2, c. 15) que São Marcos, não vontade própria nem por ordem de São Pedro de quem era discípulo, mas em atenção às preces dos romanos, escreveu seu evangelho. Quanto a São Lucas, diz Eusébio (1.3, c. 24), que só escreveu porque viu muitos outros temerariamente ter presunção de mandar por cartas informações que não conheciam perfeitamente, com o propósito de nos separar das narrações incertas dos outros. E quanto a São João, diz Eusébio ibidem, que até provecta idade pregou o evangelho sem nada escrever, e acrescenta São Jerônimo (1. de Scipt. Eccl.) que por fim foi ele compelido pelos bispos da Ásia a escrever o evangelho por causa da heresia dos ebionitas que então surgia. De maneira que, se a heresia ebionista não tivesse existido, talvez não tivéssemos o evangelho de João, do mesmo modo os outros três se tivesse havido as referidas ocasiões. Com razão observa Eusébio que somente dois entre os doze apóstolos escreveram evangelho, mesmo assim provocados por certa necessidade. “Disto se infere facilmente que os apóstolos tiveram primeiro a intenção não de escrever, mas de pregar.”[8] Acrescenta ainda que, se os apóstolos tivessem a intenção de consignar por escrito sua doutrina, certamente um catecismo ou um livro semelhante, teriam redigido um livro que recolhesse todo o corpo de doutrina, quando, ao contrário, escreveram uma história, como evangelistas, ou epístolas resultantes de alguma circunstância., como Pedro, Paulo, Tiago, Judas, João. Isto é, pois, sinal indeclinável de que foram encarregados pelo próprio Cristo de transmitir a verdade revelada do evangelho, primeiro e principalmente por uma viva e pessoal pregação.
Vê-se, pois, que os apóstolos e todos os seus sucessores constituem com eles perpetuamente uma pessoa moral até o presente. Confirma-se isto, com clareza, a partir das supremas recomendações que os apóstolos deixaram para a Igreja no mesmo lugar do testamento. Que significa, realmente, aquilo que Paulo, já próximo da sua paixão, escreve a Timóteo, em cuja pessoa está compreendido todo o corpo dos bispos? Ó Timoteo, guarda o depósito. E novamente: Toma por modelo os ensinamentos salutares que de mim recebeste…Guarda o bom depósito pelo Espírito Santo que habita em nós. E ainda: Tu pois, meu filho, o que ouviste de mim em presença de muitas testemunhas recomenda a homens fieis e idôneos que ensinem a outros. Por essas passagens não se pode entender a Escritura, mas o tesouro da doutrina, a inteligência dos dogmas divinos, i. e., tanto o sentido das Escrituras como o sentido de outros dogmas. Queria-se, como explicam Crisóstomo e Teofilácio, a propagação da doutrina por meio da Tradição. A isto alude igualmente Irineu, 1, 4, c, 43, quando diz: “É necessário obedecer aos presbíteros da Igreja, àqueles que têm sucessão apostólica,…àqueles que, com a sucessão do episcopado receberam o carisma da verdade segundo o beneplácito do Pai.
E facilmente se vê isto pelo seguinte. Se se referisse a palavras escitas, não recomendaria com tanta ansiedade o depósito. Com efeito, as Escrituras facilmente se conservam em cofres e bibliotecas; mas o apóstolo quer que sejam conservadas pelo Espírito Santo na mente de Timóteo. E tampouco acrescentaria: “Recomenda estas coisas a homens fiéis que sejam idôneos para ensinar a outros”, mas diria, recomenda a editores que reproduzam muitos exemplares. Não diria: “O que ouvistes de mim na presença de muitas testemunhas” mas o que te escrevi. Portanto, o apóstolo não recomenda a Timoteo apenas as palavras mas também o sentido, e muito mais o sentido que as palavras, e ordena que transmita pelas mãos aos seus sucessores.[9]
Temos, pois, na religião cristã, por instituição divina, o órgão da tradição, e esta oral e sempre viva. Refiro-me a um órgão autêntico, perene, dotado de um carisma de contínua assistência. Digo mais: in se indiviso e na sua individualidade sempre visível, e isto sobretudo graças a um centro, uma cabeça, Pedro, que necessariamente, na hierarquia, ocupa a primazia, (Mt. 10, 2), com o nome misterioso que lhe foi imposto por Cristo indicando a inconcussa solidez de seu ministério(Jo. 1-42), para confirmar seus irmãos (Lc. 22, 32); como pedra sobre a qual foi edificada a Igreja (Mt. 16, 18). Todas essas verdades devem ser aqui compreendidas conforme as teses que em seu tratado correspondente se supõe foram provadas e demonstradas. Mas se tal é órgão da tradição, conforme até aqui foi descrito com base em solene documento de instituição da Igreja, então resulta sem dificuldade de compreensão que a tradição de que discorremos nada mais é que a pregação de geração em geração, pelos sucessores dos apóstolos com o carisma da indefectibilidade, daquela revelação que receberam primeiro da boca de Cristo ou de seus apóstolos conforme prescrevia o Espírito Santo.
Esta é a tradição que reconhece a universal antiguidade cristã. Esta é a tradição evocada por Inácio aos Efésios, n. I doutrina de Jesus Cristo na qual estão os bispos até os confins da terra, por Policarpo ao Filipenses, n. 7, desde o início nos foi transmitida a doutrina, por Irineu, 1, 3, c. 2, a tradição que vem dos apóstolos e é guardada nas igrejas por sucessões de presbíteros, por Tertuliano, Praescript. c. 37, regra que a Igreja recebeu dos apóstolos, os apóstolos de Cristo e Cristo de Deus, por Origines, em de Princip. Praef.n 2. , a pregação eclesiástica por ordem de sucessão transmitida pelos apóstolos, a qual permanece na Igreja até hoje. Esta é a tradição para a qual apelam os padres do primeiro e segundo séculos contra os primeiros hereges ou gnósticos. E os gnósticos igualmente, quando argüidos acerca das Escrituras, respondiam: “Porque não se pode encontrar a verdade naqueles que ignoram a tradição. A verdade não foi transmitida por escrito mas por viva voz.[10] Quanto a esse princípio, os padres não tinham contraditores mas concordantes absolutamente unânimes. Mas quando eram reconduzidos à tradição autêntica, então jactavam-se de uma tradição oculta, só a eles revelada por Valentino ou Marcião ou por Cerinto ou Basílide. Opunha-se-lhes a tradição autêntica, que é pública na Igreja e tem como órgão a contínua sucessão dos bispos a partir dos apóstolos e sobretudo a partir do príncipe dos apóstolos na Sé Romana. Nesse ponto é célebre o trecho de Irineu em que fez transcrever integralmente a sucessão episcopal até seus dias, de maneira que houvesse perpétua e insofismável confirmação de tal verdade.
“Todos quantos queiram podem ver que em toda a Igreja, em todo o mundo, há uma manifesta tradição dos apóstolos. Podemos enumerar aqueles que foram instituídos bispos pelos apóstolos nas igrejas e os seus sucessores até nós, os quais não ensinaram nem inventaram nada que deles discrepasse. Mas porque seria muito longo citar aqui as sucessões de todas as igrejas, sobretudo da antiqüíssima, e de todos conhecida, Igreja fundada pelos gloriosíssimos apóstolos Pedro e Paulo em Roma, convencemos a todos aqueles que, salvo má fé ou vanglória, concluam que esta Igreja tem uma tradição que remonta aos apóstolos, uma fé anunciada a todos os homens mediante a sucessão dos bispos que chega até nós. A esta igreja, em virtude de sua excelência, é necessário que se uma toda a Igreja, isto é, os fiéis de todas as partes. Nela sempre se conservou a tradição apostólica. Tendo fundado e instruído essa igreja, os apóstolos transmitiram a Lino o episcopado para que a governasse. Paulo nas epístolas a Timóteo recorda-se de Lino. A este sucedeu Anacleto. Após este, como terceiro sucessor, foi consagrado bispo Clemente, que também viu os apóstolos e com eles conviveu, tendo diante dos olhos a pregação de viva voz dos apóstolos. Com efeito, havia ainda então muitos que tinham sido doutrinados pelos apóstolos. Por essa ordenação e sucessão, a tradição apostólica e a pregação da verdade na Igreja chegou até nós. Esta é uma claríssima demonstração de que é uma e mesma fé vivifante que na Igreja foi conservada e transmitida na integridade pelos apóstolos. Sendo, pois, tantas as provas, não é necessário pedir a outros a verdade, que facilmente se recebe da Igreja, quando os apóstolos, como num rico depositório, lhe confiaram todas as verdades. De maneira que, mesmo se os apóstolos não nos tivessem deixado as Escrituras, não era necessário seguir a ordem da tradição que confiaram às igrejas? A essa ordem assentem muitas nações bárbaras, as quais crêem em Cristo, sem as Escrituras, tendo pelo Espírito a salvação em seus corações e guardando com diligência a antiga tradição, crendo em um Deus criador do céu e da terra, por Jesus Cristo Filho de Deus.[11]
Efetivamente, a Igreja considera Cristo o instituidor dessa tradição. Por ora, antes que avancemos, convém que fique bem clara esta conclusão.
§ 2
Por que a tradição entendida em verdadeiro e católico sentido é a regra de fé. E por que o conceito de tradição sob a razão de simples fato humano, ou da pregação derivada de Cristo e dos apóstolos apenas com autoridade histórica, é um conceito falso, protestante, que traz ostensivamente a nota herética.
Em primeiro lugar, é necessário observar que há distinção entre objeto e regra de fé. Objeto é a verdade a ser crida. Regra, formalmente e enquanto tal, é aquilo que contém a verdade a ser crida, à qual é necessário que nos conformemos ao crer, para que creiamos naquilo que se nos propõe a crer. Portanto, as verdades pregadas pela tradição, a que podemos dizer tradição em sentido objetivo, são propriamente o objeto da fé. Mas a mesma pregação eclesiástica, ou a mesma tradição tomada em sentido formal é a regra de fé.[12] Sublinhe-se que a regra não dirige de qualquer modo, mas infalivelmente. Realmente, quem quer seja que siga a regra, enquanto esta tem força e ato de regra, não erra nem pode errar em nenhuma ordem. A tradição tem razão de regra fé a tal ponto que guarda, conserva e transmite infalivelmente as verdades reveladas para nosso conhecimento. A proposição acima mencionada nos ensina justamente isso: pela razão desse elemento divino que se acha na tradição é que ela deve ser reconhecida como instituição e promessa de Cristo. Digo elemento divino, porque pelos padres foi chamado com vários nomes: verbi gratia, carisma certo da verdade no episcopado em virtude da sucessão, (Ireneu. 1. 4. c.26), operação do Espírito da verdade, que não permite que as igrejas entendam de um modo, creiam de outro, porque ele mesmo prega através dos apóstolos (Tertuliano Praescript., c. 28); influxo do Senhor que habita na Igreja, de maneira que a mais diligente investigação não incorra em erro ( Agostinho, Enarra. in Ps. 9, 12); sopro do Espírito Santo para que não se afaste da verdade (Cirilo de Alexandria, ep. 1 aos monges do Egito.); graça do Espírito pela qual, embora separados pelos montes e mares, todos instruídos dão assentimento à mesma doutrina (Theodoret. Dial, de Incommutabili); efeito da sentença D. N. I. C., pela qual se assegura que na Sé Apostólica sempre se preserve inviolada a religião católica, (Profess. Fidei sub Hormisda ab orientalibus subscripta). E muitas outras do mesmo sentido é possível encontrar de forma esparsa entre os padre da Igreja. De maneira que não resta nenhuma dúvida que, tomada em seu sentido genuíno e católico, a tradição, conforme nos demonstram os todos monumentos da instituição cristã, é a verdadeira regra da fé.
Ao contrário, muito diferente é o conceito protestante, no qual o elemento divino é totalmente anulado de sorte que a tradição se reduz ao simples fato agregado aos fatos gerais da história: isto é, fato dos homens, sua sagacidade, sua aplicação, seu engenho, que dão continuidade através dos à escola de Cristo e dos apóstolos. Admitida tal suposição, fica patente que não sobra nada da regra de fé. Com efeito, como se observou acima, a regra de fé propriamente falando não é aquela que apenas possivelmente ou casualmente ou de forma contingente conserva a genuína e pura doutrina da revelação, mas aquela que também de direito, necessariamente e per se. Assim, está à flor da terra a desproporção da humana sagacidade, da aplicação humana a um efeito tão grande, sobretudo em matéria dos divinos dogmas, na qual pesa ainda mais o erro protestante conforme Belarmino, 1. 4 De verbo Dei, c. 12: diversos fatores podem ser impedimentos:o esquecimento, a imperícia, a negligência, a perversidade, que nunca faltam ao gênero humano. Mas, por favor, prefiro omiti-las. Conceda-se que não houve esses impedimentos. Conceda-se que a doutrina divina foi conservada na pureza da sua verdade através dos séculos em meio a todas as vicissitudes. Conceda-se que essa conservação seja só de fato suficiente regra de fé em si mesma. Conceda-se isto (já que não é aqui o lugar de disputar acerca de matéria mais remota), mesmo assim é necessário admitir que uma tradição à protestante não é uma regra suficiente quoad nos. Para nós nenhum outro valor terá tal tradição humana ou protestante senão aquele que lhe conferir uma demonstração de sua coerência com a original locução de Deus em Cristo ou nos apóstolos, unicamente a partir dos critérios e fontes gerais da história, ou seja, através do confronto, discussão e crítica cientifica dos monumentos do passado desde os tempos mais antigos. E quem – pergunto eu – empreenderá um trabalho tão singular não só acerca de fatos célebres da história mas ainda, e sobretudo, acerca de doutrinas abstrusas? Quem, em tal emaranhado de rios, distinguirá as águas puras que procedem de boa fonte, das águas espúrias e contaminadas? Quem separará o precioso do vil no conjunto das confissões dissidentes que entre si se digladiam? De todos os modos, portanto, fica patente que a tradição, entendida na acepção protestante, não é nem pode ser regra de fé e que, ao menos nesta parte, os velhos reformadores foram coerentes ao afirmar a Sagrada Escritura, excluída a tradição, como única regra de fé.
Com efeito, mostrou-se que tal conceito, que resume em si toda a heresia protestante, está em completa contradição com o evangelho e sua fundamental economia, e se alguém deseja outras informações encontrá-las-á no tratado De Ecclesia, onde se fala da autoridade do magistério. Também é fácil inferir como tal conceito de tradição contradiz abertamente o senso de toda antiguidade cristã, conforme se viu pelos poucos documentos mencionados acima. Todavia, afirmam os protestantes: ‘Demonstra-se claramente que a Igreja mais antiga só historicamente apelava para a tradição como se vê nas igrejas apostólicas às quais os próprios apóstolos pregaram, por uma contínua sucessão até seus tempos do século segundo ou terceiro, e que a fé transmitida pelos apóstolos não fora ainda corrompida, mas ainda era íntegra. Mas em tempo posterior, a Igreja tentou suprir aquilo que faltava à tradição historicamente considerada com base na autoridade que reivindicava para si”[13] Pois eu digo que o afirmam gratuitamente e sem nenhum fundamento.
Para evidenciar isto, deve-se considerar que a prometida assistência para a guarda incorrupta do depósito e o curso infalível da tradição na via reta da revelação original não excluía de nenhum modo a oportuna ordenação de causas segundas para esse fim e a conveniente cooperação das mesmas. Com efeito, assim age a suave providência de Deus para adaptar os instrumentos adequados à causa principal, de maneira que tudo aquilo que o homem pode produzir por sua atividade própria não seja inutilizado mas se aperfeiçoe e se torne ainda mais eficiente. Portanto, não pretendemos negar a conaturalidade com o efeito de que tratamos, o qual é, na verdade, a sucessão e contínua série de bispos na mesma sede transmitindo um ao outro, quase que de mão a mão, o depósito da religião. Não pretendemos tampouco remover o elemento humano da tadição, os auxílios humanos, a dedicação e a solicitude humanas. Se quiséssemos remover tudo isso, estaríamos em contradição com o apostolo que exclama: Ó Timóteo, guarda a fé. Realmente, por que tal exortação, por que tão instante recomendação, se da parte de Timóteo não se exigisse nada? Queremos encontrar em tais palavras, não tanto a suprema e suficiente razão da certeza acerca da conservação da integridade da doutrina revelada, quanto um sinal do carisma da perpétua assistência de Cristo.[14] Ademais, deve-se entender que o elemento humano está subordinado ao divino e se une a ele de tal maneira que no uso do lugar teológico da tradição os padres reconhecem um duplo argumento. Um pela consideração do carisma da sucessão apostólica. Outro pela consideração da mesma sucessão segundo as condições históricas observadas na Igreja desde o início; o que, ainda que não fosse em si só um argumento apodíctico, em termos polêmicos, entretanto, era eficacíssimo contra os fautores das múltiplas seitas, que por si mesmos começavam a inventar novos dogmas: “Essa sabedoria – diz Irineu 1. 3, c.2, (que Paulo diz entre os perfeitos), cada um deles diz achar em si mesmo. Cada um deles, completamente perverso, não se envergonha de pregar corrompendo a regra da verdade.” Portanto, de ambos argumentos se utilizavam os padres, tanto os mais antigos quanto os mais recentes. Com efeito, não só os mais antigos, mas os antiqüíssimos Inácio, Irineu, Tertuliano acima citados, apontavam, como a razão suma da conservação integral da doutrina divina pela ordem de sucessão, o carisma da verdade ligado à sucessão episcopal, à palavra de Cristo, à promessa da vinda do Espírito Santo que ensinaria a plena verdade. E igualmente, não entre os mais antigos mas os mais recentes, como por exemplo Atanásio (de decr. Nicaen. N. 27), Epifánio (1. R. Haeres, 27, n. 6), Optatus (1.. 2 de schism. Don. N.2), Agostinho(epist. 53, n.2 etc), apelam do mesmo modo para a sentença transmitida pelos padres de geração em geração, para a doutrina transmitida desde o inicio, para a contínua sucessão dos sacerdotes sobretudo na Igreja Romana, porquanto, por essa sucessão, nas palavras de Epifánio, se demonstra a verdade perpetuamente manifesta. De maneira que, do princípio até hoje, não aparece o vestígio da oposição imaginada pelos protestantes sem razão alguma.
Assim, pois, temos na tradição, concebida em sentido autêntico e católico, a regra certíssima da fé. Mas porque a Escritura é considerada outra regra, cumpre examinar em seguida como uma se relaciona com a outra.
§ 3
Porque a tradição é a regra de fé, tanto na ordem do tempo, quanto do conhecimento, quanto da compreensão, tem prioridade sobre a Escritura, e nisto distingue-se principalmente da Escritura, porque não é apenas a regra remota , mas também próxima e imediata , de modo que pode ser considerada sob duplo aspecto.
1. Em primeiro lugar, não se trata de mostrar que a tradição antecede à Escritura na ordem cronológica. Observa-se isto já no Antigo Testamento. Com efeito, não houve Escrituras desde o início do mundo, e, no entanto, houve uma regra a que conformaram sua fé os homens de Deus. Desde Adão até Moisés houve alguma Igreja de Deus no mundo, e os homens cultuavam a Deus com fé, esperança e caridade, bem como com ritos externos, como está patente no Gênesis, onde são apresentados Adão, Abel, Sete, Enoc, Noé, Abraão, Melquisedeque e outros homens justos. Mas não houve nenhuma escritura divina antes de Moisés, como está patente…., porque no Gênesis não há menção à doutrina da escritura, mas apenas da tradição: “Sei, diz Deus em Gen. XVIII- 19, que Abraão preceituará a seus filhos e a sua descendência que guardem o caminho do Senhor.” Portanto, por dois mil anos conservou-se a religião só pela tradição. Posteriormente, de Moisés a Cristo, no povo de Deus, embora houvesse as Escrituras, mesmo assim utilizavam-se os judeus mais da tradição que da Escritura, como se vê em Ex. XVIII- 8, Deut. XXXII- 7, Jz VI- 13, Sl. XLIII-1, LXXVII-5, Ecli VIII-2”[15] Nisto consiste a solução de vários problemas, pois nos livros de Moisés há tão poucos ensinamentos acerca da vida futura, dos prêmios e castigos eternos, e, de modo geral, acerca de muitas verdades que são os fundamentos da vida moral e religiosa. Sublinhe-se: é esta uma grande solução, pois a Escritura superveniente supunha uma antecedente regra da tradição, e a mantinha em seu pleno vigor. Mas talvez tenha ocorrido de modo diverso na economia do Novo Testamento? Muito pelo contrário, no Novo Testamento demonstra-se por fatos mais luminosos a precedência da tradição, pois todos os monumentos das origens cristãs mostram as igrejas fundadas pelos apóstolos sem as escrituras e com plena vitalidade. Não tinha ainda Mateus escrito e já a Igreja por toda a Judéia, Galiléia e Samaria estava edificada caminhando no temor do Senhor (At. IX-31). Tampouco Marcos, e já a Igreja Romana, cuja fé se anunciava em todo mundo, (Rom. 1-8). Tampouco João, e já tinha fundado todas as igrejas da Ásia e governava as igrejas, como escreve Jerônimo em 1 de script. eccles. Às igrejas já existentes eram dirigidas todas as epistolas apostólicas, como está claro por suas inscrições. Em suma, não a um instrumento escrito apelava Paulo, quando dizia aos Gálatas, que tentavam afastar alguns do reto caminho do evangelho: “Se alguém vos evangelizar algo diferente do que aprendestes seja anátema (Gal. I-9).” E aos coríntios diz: “Da minha parte vos louvo, irmãos, porque vos lembrais de mim em tudo e conservais os meus preceitos como vos transmiti.” E acrescenta: “Com efeito, o que recebi do Senhor também vos transmiti: que o Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue, etc”. Deve-se dizer, portanto, que desde o inicio houve um só regra da tradição, e que a subsequente chegada da Escritura não pôde subvertê-la como meio fundamental da conservação e propagação da doutrina revelada, meio este constituído de uma vez para sempre na Igreja, mas para que a ela subordinasse e servisse cada vez mais.
2. Mas ainda que a regra da tradição não antecedesse a regra da Escritura na ordem do tempo, antecedê-la-ia sempre na ordem do conhecimento. E com razão, a tradição brilha como regra de fé pelos mesmos argumentos pelos quais brilha a credibilidade da religião cristã ou da Igreja católica. Com efeito, demonstrados esses argumentos, demonstra-se pelo mesmo argumento tanto a revelação da Igreja católica como instituída por Deus quanto o estabelecimento daquele órgão do magistério perene como fundamento da mesma Igreja.[16] Demonstrando-se isso, conclui-se que a pregação desse magistério é conduzida por Deus para que a ela sempre se conforme a fé dos crentes. Fica claro, pois, pelo que foi dito que se considera a tradição como regra de fé obrigatória, visto que a pregação da Igreja e a tradição autêntica, de que nos ocupamos agora, se identificam. Não importa o método ou processo na demonstração da verdadeira religião: se se toma o princípio da argumentação seja das notas divinas inerentes à Igreja, seja dos monumentos históricos da missão, advento e obra de Jesus Cristo, conforme a dupla norma do Concílio Vaticano, Sessão 3, cap. 3.[17] Permanece sempre a regra da Tradição.
O mesmo não ocorre com a Sagrada Escritura. Com efeito, sem uma demonstração prévia dos preâmbulos da fé ou sem uma teologia fundamental, ignora-se absolutamente se as Escrituras são inspiradas por Deus. Pois, ainda que não existissem as Escrituras, subsistiriam os mesmos princípios da demonstração; igualmente a mesma conclusão a que conduzem os princípios. Porque, se casualmente ao longo da demonstração, ao tratar do monumento histórico da revelação que nos trouxe Jesus Cristo, se encontrarem os testemunhos de Cristo pelos quais se confirma a fé dos judeus na Lei e nos Profetas, ao mesmo tempo e como que acidentalmente, pode-se também chegar ao conhecimento das mesmas Escrituras do Antigo Testamento, que se chamam protocanônicas, mas acerca das Escrituras do Novo Testamento não se encontra absolutamente nada. Mas, ao contrário, se se procurar um testemunho idôneo acerca dessas Escrituras fora da autêntica tradição, não se encontrará tal testemunho senão nos escritos dos padres apostólicos. Além do fato de que o conhecimento da autoridade dos apóstolos como órgãos de promulgação da revelação já supõe conhecida a regra da tradição que deles decorre: pergunto o que se encontrará, nos escritos apostólicos a respeito das escrituras inspiradas do Novo Testamento, como formalmente inspiradas? Absolutamente nada salvo aquele conhecido inciso da segunda epistola de Pedro, III-16, acerca das epístolas de Paulo. Mas as epístolas de Paulo não são todas e nem de longe as mais importantes escrituras do Novo Testamento. Ademais, ainda que ao tempo em que escrevia Pedro já fossem editadas as epístolas de Paulo, não poderia dizer algo incerto. Em suma, esta segunda epistola de Pedro é repelida como suposta e não genuína precisamente por aqueles que professam um juízo fundado exclusivamente nos documentos escritos. De todos os modos, portanto, o sistema protestante é como um pêndulo no ar, carecendo de fundamento. Não é falso compará-lo com o sistema do mundo da cosmogonia dos hindus, que edificam o universo à maneira do elefante que põe os pés sobre quatro tartarugas sem que digam o que é aquilo em que as próprias tartarugas se apóiam. Mas ao contrario, do órgão da tradição, a que Cristo confiou o múnus de ensinar-nos toda verdade, com direito e razão recebemos a verdade revelada da integral Escritura canônica inspirada, de tal maneira que pela Tradição a Escritura brilhe e seja por isso mesmo na ordem do conhecimento posterior.
3. Ademais, a Tradição antecede à Escritura também na ordem da compreensão, porquanto, efetivamente, não na Escritura, mas na Tradição a doutrina revelada foi integralmente depositada. Digo isto não só porque, como se viu há pouco, nem sequer o cânon da Sagrada Escritura nela mesma está contido, mas também porque ela mesma em vários lugares nos remete à Tradição, como à fonte de certos dogmas que não estão escritos, conforme demonstra São Roberto Belarmino a partir de I Cor. XI-2, 2Tes. II-14, 2Tim I-13, 3 Jo. XIII. Mesmo porque, como vimos, a redação dos livros do Novo Testamento resultou de circunstâncias contingentes, o que comprova cabalmente não ser intenção de Deus que tivéssemos nos livros sagrados o depositário completo da verdade revelada. Mas, ao contrário, vê-se assim na Tradição um precioso depositário. Com efeito, é a Tradição o primitivo, o principal instrumento estabelecido por Cristo. A ela foi em seguida confiada a própria Escritura. Digo que lhe foi confiada a Escritura não só em ordem ao seu conhecimento, de maneira que se conhecesse qual a Escritura que se deveria receber como realmente inspirada por Deus, mas também quanto ao conhecimento do seu sentido, que na ausência de uma chave de interpretação, ou ficaria obscura ou incerta. Conclui-se, pois, que no depósito da tradição de algum modo se contém igualmente a revelação escrita, e, por conseguinte, a totalidade da revelação.
Assim, pois, a tradição é a regra da fé antecedente em todos os sentidos, no tempo, no conhecimento, na compreensão. Pergunta-se por fim: regra remota ou próxima? Digo que é a remota e a próxima, seja considerada uma ou outra.
4. Efetivamente, não se dissolvendo a tradição, mas mantendo-se pelo decurso dos séculos até nós, a pregação da Igreja é recebida de duplo modo. Primeiro, nos anéis interpostos das idades antecedentes dos quais deriva e mediante os quais sempre continua com a pregação daqueles que foram os primeiros e imediatos pregoeiros da palavra revelada. Depois, considerada separadamente, em qualquer fase do tempo. Do primeiro modo, portanto, a pregação da Igreja é a tradição, sob a precisa razão da transmissão da doutrina revelada como que de mão a mão desde os apóstolos, ou tradição à maneira reduplicativa, como um canal ininterrupto que vem da fonte através dos séculos, e sob este aspecto é a regra remota da fé católica. Com efeito, considerada assim, só brilha à luz de uma investigação dos monumentos da antiguidade, ou seja pelo estudo das obras que desde a antiguidade conduzem ao conhecimento da sentença, da profissão e da fé que havia outrora acerca do doutrina cristã, seja considerada na sua integridade seja em cada cabeça. Só tem ou pode ter razão de regra próxima mediante a investigação e avanço da ciência teológica se conhece aquilo que contém os dogmas. Pois deve-se examinar a pregação eclesiástica, já não considerada em coerência de continua sucessão desde a primeira origem da revelação, mas absolutamente em seu exercício em determinado tempo. Sob este aspecto, é sempre a tradição, na medida em que sempre transmite aquilo que explicita ou implicitamente recebeu dos maiores, mas já é a tradição sob uma precisa formalidade da autoridade do magistério que discretamente propõe e explica o que é necessário crer segundo a revelação que vem dos apóstolos. E assim também é regra próxima e imediata da fé, que com o infalível e sempre vivo magistério da Igreja católica, como formalmente é magistério, justamente se identifica.
Mas de qualquer modo que se considere a tradição, seja como regra próxima ou remota, observe-se com atenção isto: o seu autêntico órgão não teria sido instituído por Cristo para conservar ou propor fórmulas materiais e inertes, mas o verdadeiro sentido da verdade revelada, e por isso o múnus de transmitir, guardar e propor infalivelmente o depósito da fé é inseparável do múnus igualmente infalível de definir, declarar e explicar o que nele está contido. Pois bem, se a tradição não é apenas conservativa, mas também explicativa de toda a palavra de Deus, tanto escrita quanto não escrita, certamente algo nela, no decurso dos séculos deve ser reconhecido sem sombra de dúvida: não contradiz de nenhum modo a imutabil