O que comumente se ensina hoje nas escolas é que a Inquisição condenou e torturou Galileu Galilei, o qual teria descoberto que a Terra gira em torno do Sol. Para começar, devemos esclarecer que Galileu não foi o primeiro a afirmar o movimento da Terra. Esclarece o historiador Reuben Parsons:
“Aristóteles e Ptolomeu se comprometeram a refutar a última teoria [que a Terra se move]. Segundo Cícero, Nicetas afirmou o movimento da Terra. Filolau, diz Eusébio, pensava que a Terra se movia ao redor da região do fogo, em um círculo oblíquo. Aristarco de Samos, diz Arquimedes, sustentava a imobilidade do Sol e que a Terra girava em torno dele como em torno de um centro. Sêneca considera "bom indagar se o resto do universo se move em torno de uma Terra estacionária ou se a Terra se move em um universo estacionário". O irlandês Ferghil (Virgílio), bispo de Salzburgo no século VIII, ensinou a existência dos antípodas. Dante certamente acreditava nos antípodas e na atração central. O próprio Copérnico nunca pretendeu ser o autor do sistema que leva seu nome, embora a este humilde sacerdote polonês pertença a glória de tê-lo formulado com precisão, e numa época em que o conhecimento dele havia quase desaparecido entre os homens. Galileu não precisa ser considerado um príncipe entre os astrônomos para merecer a homenagem dos cientistas; sua maior glória é a de um mecânico.” (1).
Porém, a teoria que a Terra se moveria e que o Sol estaria estático no centro do universo foi, sim, condenada em 5 de março de 1616 pela Sagrada Congregação do Index — fundada por São Pio V em 1571 e então chefiada pelo Cardeal São Roberto Belarmino, agindo em nome de Paulo V. Sem nomear Galileu, proibiu todos os escritos que tratassem o copernicanismo como algo além de uma hipótese não comprovada:
“Esta Sagrada Congregação também tomou conhecimento da difusão e aceitação por muitos da falsa doutrina pitagórica, totalmente contrária à Sagrada Escritura, de que a Terra se move e o Sol é imóvel, o que também é ensinado em ‘De Revolutionibus Orbium Caelestium’, de Nicolau Copérnico, e em ‘Sobre Jó’, de Diego de Zúñiga. Isso pode ser visto em certa carta publicada por um certo Padre Carmelita, cujo título é ‘Carta do Reverendo Padre Paolo Antonio Foscarini, sobre a Opinião Pitagórica e Copernicana sobre o Movimento da Terra e o Repouso do Sol e sobre o Novo Sistema Mundial Pitagórico’ (Nápoles: Lazzaro Scoriggio, 1615), na qual o referido Padre tenta mostrar que a doutrina acima mencionada do repouso do Sol no centro do mundo e do movimento da Terra é consoante com a verdade e não contradiz a Sagrada Escritura. Portanto, para que esta opinião não prejudique ainda mais a verdade católica, a Congregação decidiu que os livros de Nicolau Copérnico (Sobre as Revoluções das Esferas) e de Diego de Zúñiga (Sobre Jó) sejam suspensos até que sejam corrigidos; mas que o livro do padre carmelita Paolo Antonio Foscarini seja completamente proibido e condenado; e que todos os outros livros que ensinam o mesmo sejam igualmente proibidos, conforme com o presente decreto ela os proíba, condene e suspenda, respectivamente.” (2).
Um ano antes, o provincial carmelita Paolo Foscarini apoiou Galileu publicamente, tentando provar que sua teoria não se opunha às Escrituras. Em 12 de abril de 1615, o Cardeal São Roberto Bellarmino (cuja festa se celebra hoje), escreveu a Foscarini:
"Querer afirmar que o Sol está realmente fixo no centro dos céus e apenas gira em torno de si mesmo (isto é, gira em torno de seu eixo) sem se deslocar de leste para oeste, e que a Terra está situada na terceira esfera e gira com grande velocidade em torno do Sol, é algo muito perigoso, não apenas por irritar todos os filósofos e teólogos escolásticos, mas também por ferir nossa santa fé e tornar as Sagradas Escrituras falsas […].
Como sabe, o Concílio [de Trento] proíbe a exposição das Escrituras contrária ao consenso comum dos Santos Padres. E se Vossa Reverência lesse não apenas os Padres, mas também os comentários de escritores modernos sobre Gênesis, Salmos, Eclesiastes e Josué, descobriria que todos concordam em explicar literalmente (ad litteram) que o Sol está nos céus e se move rapidamente ao redor da Terra, e que a Terra está longe dos céus e permanece imóvel no centro do universo. Agora, considere se, com toda a prudência, a Igreja poderia encorajar a atribuição à Escritura de um sentido contrário ao dos santos Padres e de todos os comentaristas latinos e gregos. Tampouco se pode responder que isso não é uma questão de fé, pois se não é uma questão de fé do ponto de vista do assunto em questão, é da parte daqueles que falaram. Seria tão herético negar que Abraão teve dois filhos e Jacó doze, quanto negar o nascimento virginal de Cristo, pois ambos são declarados pelo Espírito Santo por meio da boca dos profetas e apóstolos […].
Se houvesse uma demonstração verdadeira de que o Sol estava no centro do universo e a Terra na terceira esfera, e que o Sol não orbitava a Terra, mas a Terra orbitava o Sol, então seria necessário proceder com grande cautela ao explicar as passagens das Escrituras que pareciam contrárias, e preferiríamos dizer que não as entendemos a dizer que algo que foi demonstrado era falso. Mas não creio que exista tal demonstração; nenhuma me foi mostrada. Não é a mesma coisa mostrar que as aparências são salvas assumindo que o Sol realmente está no centro e a Terra nos céus. Creio que a primeira demonstração pode existir, mas tenho sérias dúvidas quanto à segunda e, em caso de dúvida, não se pode afastar das Escrituras conforme explicadas pelos Santos Padres. Acrescento que as palavras 'o Sol também nasce e o sol se põe, e apressa-se para o lugar de onde nasce' etc. foram as de Salomão, que não só falou por inspiração divina, mas foi um homem sábio acima de todos os outros e o mais versado nas ciências humanas e no conhecimento de todas as coisas criadas, e sua sabedoria vinha de Deus. Assim, não é muito provável que ele afirmasse algo contrário a uma verdade já demonstrada ou suscetível de ser demonstrada. E se me disserdes que Salomão falou apenas de acordo com as aparências, e que nos parece que o Sol gira quando, na verdade, é a Terra que se move, como parece a alguém num navio que a praia se afasta do navio, responderei que aquele que se afasta da praia, embora lhe pareça que a praia se afasta, sabe que está errado e o corrige, vendo claramente que o navio se move e não a praia. Mas, no que diz respeito ao Sol e à Terra, nenhum sábio é necessário para corrigir o erro, visto que ele experimenta claramente que a Terra está parada e que seus olhos não se enganam quando julgam que a lua e as estrelas se movem.” (3).
Em 1664, a Igreja fez esforços ainda maiores para extirpar este erro: o Index daquele ano tinha um prefácio, cujas primeiras palavras eram "Speculatores Domus Israel”, assinado pelo Papa Alexandre VII, o qual reafirmava que a condenação do copernicanismo não era meramente disciplinar, mas doutrinal.
Antes que o leitor torture o autor deste breve artigo, condenando-o a algum lugar longe da luz do Sol, peço a lembrança de que Albert Einstein permite, com a teoria da relatividade, que se tome a Terra como centro de algum sistema coordenado e que se descreva o movimento dos planetas e dos astros em relação à Terra.
Sem nos desviarmos do tema; a tortura de Galileu não é um fato histórico. De acordo com Parsons, Galileu abdicou de suas afirmações contrárias à fé publicadas em 1632 na sua obra “Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo” – após o decreto de condenação do copernicanismo –, e por isso não foi torturado:
“Segundo Niccolini, portanto, a prisão de Galileu foi meramente nominal, e não há menção a qualquer inflição de tortura. [...] É verdade que houve ameaça de tortura, mas a ameaça não foi executada. Em um decreto emitido por Urbano VIII em 16 de junho de 1633, e publicado pela primeira vez por L'Épinois, foi ordenado que Galileu ‘fosse interrogado quanto à sua intenção [ao publicar o Diálogo] e que fosse ameaçado de tortura. Se não cedesse à ameaça, deveria ser obrigado a pronunciar, em sessão plenária do Santo Ofício, uma abjuração por forte suspeita de heresia'.
Em 21 de junho, no quarto e último interrogatório, mas sem qualquer menção ao decreto acima, Galileu foi questionado sobre sua intenção no ‘Diálogo’ em relação ao sistema copernicano. Em resposta, ele apenas admitiu que, acalentando sua hipótese e sentindo-se orgulhoso dos argumentos aduzidos a seu favor antes de 1616, havia dado no ‘Diálogo’ mais força à opinião copernicana do que à outra. Recusando-se, portanto, a confessar a intenção imputada, foi ameaçado de tortura. Então, respondeu — com a verdade que seus ultra admiradores imaginaram: ‘Não sustento o sistema copernicano desde que me ordenaram que o abandonasse [dezessete anos antes]. Mas estou em suas mãos. Façam comigo o que quiserem.’ Essa recusa em reconhecer a intenção imputada havia sido prevista pelo Papa Urbano e, como ele havia previsto a contingência, o tribunal não cumpriu a ameaça de tortura, mas procedeu ao ato de abjuração [...].
Mas, de acordo com o código de leis aplicável aos inquisidores, que se encontra integralmente descrito no ‘Diretório’ de Eymeric, o guia oficial do Santo Ofício, a tortura não poderia ter sido infligida a Galileu. Prevê-se que, quando o acusado nega as acusações, e estas não foram comprovadas, e ele ainda não apresentou uma boa defesa, ele deverá ‘ser interrogado, a fim de que a verdade seja alcançada’ — desde que, no entanto, os consultores assim o aconselhem. Ora, Galileu não era obstinado; ele não tinha inclinação para se tornar um mártir da ciência. Em sua sentença, os juízes dizem: ‘Consideramos necessário proceder a um rigoroso exame, e tu respondeste como um católico — respondesti Catholicè.’ Tendo assim respondido, ele não pôde ser torturado. É triste ouvi-lo proferir o que seus juízes devem ter sabido ser uma mentira: ‘Por algum tempo antes da determinação do Santo Ofício, e antes de receber aquela ordem [a ordem de 1616], eu havia sido indiferente às duas opiniões de Ptolomeu e Copérnico, e sustentava que ambas eram discutíveis e que ambas poderiam ser verdadeiras por natureza. Mas após a determinação acima mencionada, sendo assegurado pela prudência de meus superiores, todas as minhas dúvidas cessaram, e eu mantive, como agora mantenho, a teoria de Ptolomeu como verdadeira — isto é, que a Terra não se move, e o Sol se move.’” (4).
É oportuno mencionar que Galileu expõe ideias que se fundamentam no modelo atômico, tanto na obra supramencionada, “Dialogo”, como também na “Il saggiatore”, de 1623.
O modelo atômico foi originalmente proposto por Demócrito, no século V a.C., mas nas escolas é comumente ensinado como proposto por Dalton (1803, a famosa “bola de bilhar”) e melhorado por Rutherford (1911, “modelo nuclear”).
Átomo, em grego, significa algo indivisível. A matéria, para os atômicos, seria composta por partículas indivisíveis e indestrutíveis – os átomos.
As implicações danosas para a fé são com mais facilidade percebidas após Newton abraçar o heliocentrismo e Descartes o atomismo, pois ambos contrariam os ensinamentos de Euclides e Aristóteles, que são a base da escolástica e do tomismo.
Cito aqui, caro leitor, a redação do eminente Gustavo Corção:
“Mumford diz que todas as exorbitâncias do cientificismo, que hoje nos parecem claras, não foram imediatamente percebidas por aqueles que estavam profundamente cativados pela nova religião. Ora, isto que parece tão claro hoje a um dos mais argutos observadores da atualidade continua obscuro para os ‘progressistas’ da nova religião, e o que disse ele ter passado despercebido aos ‘progressistas’ da nova religião do século XVI não passou despercebido ao Santo Ofício, cujos juízes, no caso Galileu, sentiram, no nível do senso comum vivificado pela Fé, ou graças aos dons do Espírito Santo, não apenas uma tese ousada e mal fundada, mas todo um intrincado processo de cientificismo e de gnose que divinizava o Sol, no século XVI, como nos mostra Lewis Mumford, que mais adiante escreve: ‘O efeito imediato da nova teologia foi o de reviver concepções que datavam do tempo das pirâmides no Egito e na Mesopotâmia.’ Alongando-se, no referido artigo, em considerações que merecem ser lidas e meditadas, em certa altura Mumford cita Battersfield, que diz: ‘Copérnico se torna lírico e chega quase à adoração do Sol quando escreve a respeito de sua natureza monárquica (regai) e da posição central que ocupa’. Tyllyard assinala que o Sol, na era elisabetana, era geralmente considerado como a contraparte material de Deus. “ (5).
“Parvus error in principio magnus est in fine”.
Um pequeno erro no princípio é um grande erro no fim.
Apesar de Galileu não questionar explicitamente a doutrina católica a respeito da Eucaristia, o modelo atômico reduz a essência das coisas à mera matéria; o que contradiz princípios metafísicos categorizados por Aristóteles de substância e acidente, os quais são fundamentais para a explicação de Santo Tomás de Aquino sobre a transubstanciação (6), a qual foi dogmatizada pelo Concílio de Trento, e cuja opinião contrária foi posta sob anátema:
“Se alguém disser que no sacrossanto sacramento da Eucaristia fica a substância do pão e do vinho juntamente com o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo; e negar aquela admirável e singular conversão de toda a substância de pão no corpo, e de toda a substância do vinho no sangue, ficando apenas as espécies de pão e de vinho, que a Igreja com suma propriedade chama de transubstanciação — seja excomungado.” (7).
Está provado que Galileu não foi torturado pela Inquisição. Pelo contrário: as sanções a que ele estaria sujeito seriam as mais justas (se ele não tivesse recebido tantas regalias ao arrepio da lei), e a história prova que os erros devem ser corrigidos o quanto antes, pois as consequências podem ser as mais graves, não somente para a Igreja, mas para toda a sociedade.
Para terminar, antecipo-me dizendo que não quero usar o milagre do Sol ocorrido em Fátima como prova de uma ou de outra teoria, mas não posso deixar de notar o interessante alinhamento entre as festas de São Roberto Bellarmino — personagem ativo na condenação de Galileu — e de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, a qual afirmou que o dogma da Fé seria preservado em Portugal, e que escolheu provar sua autenticidade fazendo o Sol dançar no Céu e se precipitar sobre a Terra.
Porém, deixo o arremate com Gustavo Corção:
“A ideia de um Sol imóvel no centro do mundo é mais grotesca, mais fantástica, mais insensata do que a tradicional ideia que colocava o centro na Terra em que surgiu o homem e se encarnou o Verbo de Deus. [...] Mais acertada é a proposição filosófica ou teológica que coloca o centro do mundo onde está o observador capaz de medir paralaxes e anos-luz, ou onde esteve a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade em sua condição carnal.” (8).
Lucas Maria R. Fonseca
Anápolis, 13 de maio de 2025
Festa de Nossa Senhora de Fátima e de São Roberto Bellarmino
Referências
Reuben Parsons, Some Lies and Errors of History, Notre Dame, Indiana: The Ave Maria, second edition, 1893, pp. 80-81.
Antonio Favaro, Galileo e L’Inquisizione, Nabu Press, 2010, p. 63.
Solange Strong Hertz, Beyond Politics: A Meta-Historical View, The Remnant Press, 2003.
Reuben Parsons, Some Lies and Errors of History, Notre Dame, Indiana: The Ave Maria, 7th edition, 1893, pp. 89-92.
Gustavo Corção, O século do nada, Record, p. 131.
Santo Tomás de Aquino, Summa Theologiae, III pars, q. 77.
Concílio de Trento, sessão XIII, cap. 4, cân. 2.
Gustavo Corção, O século do nada, Record, p. 134.