Festa da Exaltação da Santa Cruz – 2025
Meus caros irmãos.
Celebramos hoje a festa da Exaltação da Santa Cruz, uma solenidade litúrgica que comemora dois grandes acontecimentos: a invenção da Santa Cruz por Santa Helena, mãe do imperador Constantino, e a restituição do Sagrado Lenho aos cristãos, pelos persas, no ano de 629, graças à vitória do imperador Heráclio.
A piedade cristã sempre exaltou a santa Cruz do Senhor como o instrumento da nossa redenção. Por exemplo, as caravelas portuguesas singravam os mares sob o estandarte da cruz na busca da expansão da fé e do império. Os portugueses logo que descobriram o Brasil lhe deram sucessivamente os nomes de Ilha de Vera Cruz, Terra de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, Terra Santa Cruz do Brasil e, finalmente, Brasil. Antigamente, quando se fundava uma cidade, a primeira coisa que se fazia era erguer em lugar proeminente um cruzeiro e, igualmente, à beira das estradas e nos campos.
Tudo isso porque o povo cristão sempre entendeu que a cruz é o maior sinal, a maior prova do amor de Deus pelos homens. Pelo pecado, o homem tinha adquirido uma dívida para com a justiça divina que não poderia jamais, por si mesmo, satisfazer, porquanto a gravidade da ofensa se mede pela dignidade do ofendido, e a dignidade de Deus é infinita, de maneira que somente o sacrifício de Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, poderia aplacar a justiça divina. Uma só gota do sangue de Cristo bastaria para nos salvar, mas Ele quis mostrar aos homens seu amor infinito e frisar a gravidade do pecado como ofensa ao Criador e morte da alma e, por isso, submeteu-se ao suplício da cruz, o mais ignominioso e atroz que possa haver.
Contudo, é preciso dizer que, se a Cruz de Cristo é suficiente para a nossa redenção, ela não é por si só eficaz se não for unida às nossas cruzes, as cruzes que o Senhor nos envia como remédios da nossa malícia, as cruzes das quais nenhum homem pode escapar nesta terra. É o que doutrina o célebre pregador Padre Antônio Vieira dizendo:
“Na cruz material temos os merecimentos de Cristo: na cruz espiritual ( quer dizer, nas diversas cruzes que havemos de carregar ao longo da vida) temos os merecimentos nossos. A cruz material foi instrumento da redenção de todos, quanto à suficiência: a cruz espiritual é instrumento de redenção de cada um, quanto à eficácia. Donde se segue que, em certa maneira, importa mais para a salvação a nossa cruz que a cruz de Cristo; porque sem a cruz de Cristo ninguém se pode salvar; mas com a nossa cruz ninguém se pode perder: depois de Cristo morrer na cruz por amor de nós, muitos se perdem; mas os que tomam a sua cruz em seguimento perseverante de Cristo, todos se salvam.”
***
Esse texto maravilhoso do Pe. Vieira desenvolve admiravelmente o ensinamento de São Paulo na Epístola aos Colossenses: “Eu que agora me alegro nos sofrimentos por vós e que completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu corpo (místico) que é a Igreja...(1, 20)”.
De maneira que, meus caros irmãos, à luz dessa exposição primorosa do Pe. Vieira sobre a teologia da redenção do mundo, convém hoje exaltar não só a cruz de Cristo mas também a nossa cruz, a fim de que nos convençamos ainda mais de que ela é um instrumento indispensável da nossa salvação, pois que o próprio Senhor nos desenganou quanto a qualquer ilusão: “Se algum quer vir após de mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me. Porque o que quiser salvar a sua alma, perdê-la-á; e o que perder a sua alma por amor de mim, achá-la-á. Pois, que aproveita ao homem ganhar o mundo todo, se vier a perder a sua alma?” ( Mt.XVI, 24-26).
Sim, temos de abraçar a cruz que o Senhor nos manda para a salvação da nossa alma. Sem ela, não conseguimos libertar-nos do apego desordenado ao mundo. Sem ela, as concupiscências nos dominam: a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, e permanecemos na ignorância conforme diz o salmista: “O homem quando estava na honra, não o entendeu: foi comparado aos brutos irracionais e se fez semelhante a eles” (Salmo 48, 21).
Quer dizer, sem a cruz o homem não toma consciência da precariedade das coisas deste mundo, não percebe a fragilidade da sua própria existência, de modo que se torna insensível ao sofrimento dos seus irmãos e acaba vivendo em uma redoma. Não se dá conta da contingência de todas as coisas deste mundo.
Realmente, só a cruz nos abre os olhos. É o que nos adverte o Padre Giovanni Pietro Pinamonti no seu livro Meditações sobre o sofrimento, comentando duas sentenças da Sagrada Escritura: uma passagem do profeta Habacuc e outra do livro do Eclesiástico.
“Caminharão iluminados com a luz das tuas setas.” As setas com que Deus fere a tua alma são setas luminosas, que ao mesmo tempo descobrem o caminho e dão alento para andar: “Quem não é ferido destas setas, o que é que sabe”. Não se conhece a si mesmo nem a Deus, isto é, ignora os dois objetos a cujo conhecimento se dirige toda a ciência do espírito: “Conheça-vos a vós, conheça-me a mim”.
Não se conhece a si; porque quem não é provado com o fogo da adversidade decerto não vê o que tem em seu coração; antes, no meio da abundância e felicidade, forma de si uma ideia muito diferente do que é na realidade.” ( Pe. Pinamonti, Meditações sobre o sofrimento). Quer dizer, sem a cruz usurpamos a glória que pertence só a Deus; só a cruz nos mantém na humildade.
Realmente, meus caros fiéis, é a cruz que nos purifica dos nossos excessos e nos permite reconciliar-nos com Deus de quem nos apartamos com nossa soberba e toda sorte de desregramento. É a cruz que nos avisa sobre a realidade e nos propicia as reflexões mais sábias. Que sabem da vida os mundanos que em sua soberba se julgam uns felizardos? Não sabem nada. Somente os humilhados, os tentados, os aflitos, os enfermos desenganados nos hospitais conhecem a realidade e chegam à mesma conclusão do sábio Salomão: “Vaidade das vaidades, e tudo vaidade”. Temos a prova da ignorância do homem na vida do santo Jó. Sua mulher o provocava à blasfêmia dizendo: “Amaldiçoa a Deus e morre de uma vez.” E Jó lhe respondeu: “Falaste como uma das mulheres insensatas; se nós recebemos os bens da mão de Deus, por que não havemos de receber também os males? Em todas estas coisas Jó não pecou com seus lábios.” (Jó, 2, 9-10)
***
Sim, meus caros irmãos, nesta terra todos temos de carregar uma cruz, seja por virtude seja por necessidade. Os justos a carregam como penhor de maior glória no céu; os penitentes, como o único instrumento de salvação; os réprobos, como uma antecipação dos seus tormentos no suplício do inferno.
Uma coisa que nos consola quando refletimos sobre a cruz que havemos de carregar com espírito de fé é saber que o Senhor disse que, quando Ele fosse exaltado do alto da cruz, atrairia todos a si (Jo. 12, 32), e que a nossa prova aqui na terra é momentânea e o prêmio no céu é eterno e que Deus nos enxugará todas as lágrimas dos olhos, não haverá mais morte, nem luto, nem clamor, nem mais dor (Apoc. 21, 4).
Enquanto padecemos aqui na terra, o Senhor não nos abandona, Ele nos atraiu para junto de si, e temos bons irmãos que nos acompanham, nos ajudam como o Cireneu. Temos Nossa Senhora das Dores, que, assim como ficou ao pé da cruz, está junto de nós, ajudando-nos na obra da nossa salvação. Lembremo-nos do que diz o salmista: “Passamos pelo fogo e pela água, mas nos trouxestes ao lugar do descanso” ( Salmo 65, 12).
***
Per crucem ad lucem, pela cruz à luz, pela cruz à verdade plena, pela cruz à felicidade eterna. Coragem, meus irmãos! Não precisamos buscar a cruz, ainda que muitos santos a tenham desejado e buscado. Basta que carreguemos diariamente as pequenas cruzes do cumprimento fiel, exato e generoso dos nossos deveres de estado. Que cruz pesada não carregam os pais de família católicos: quanto trabalho, sacrifício, renúncia não suportam diariamente na educação de seus filhos? Estarão cheios de méritos para o céu, se perseverarem no cumprimento de seus deveres.
Deus não nos pede uma rigorosa maceração da nossa carne, se bem que muitos santos a tenham praticado, como um São Francisco Xavier ou um Santo Afonso Ligório. Basta que nos esforcemos por não nos conformar com o mundo inimigo de Deus e ofereçamos ao Senhor os sacrifícios do dia a dia, que a vida nos depara, seguindo a pequena via de Santa Teresinha. E tenhamos confiança de que, se Deus nos mandar uma cruz mais pesada, Ele não nos abandonará, mas estará ao nosso lado, ajudando-nos a carregá-la. Se vier a terrível tentação de uma blasfêmia, de uma murmuração impiedosa, lembremo-nos do que disse o Bom Ladrão: “Para nós é justo, pois recebemos o castigo merecido por nossas obras. Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino” (Lc. 23, 41-42).
***
Em conclusão, para nos revigorar neste vale de lágrimas em que se transformou a terra depois do pecado, sirvam-nos igualmente aquelas palavras cheias de fé e esperança do livro da Sabedoria:
“Pareceu aos olhos dos insensatos que morriam; e a sua saída deste mundo foi considerada como uma aflição, e a sua separação de nós como um extermínio, mas eles estão estão em paz. E se eles sofreram tormentos diante dos homens, a sua esperança está cheia de imortalidade. Depois de uma breve tribulação, receberão uma grande recompensa, porque Deus os provou e os achou dignos de si.” (Sab. 3, 1-8)
Pe. João Batista Ferraz Costa