A eutanásia é um mal em si

Postado em 07-03-2020

Tommaso Scandoglio

Por que não falar da eutanásia à luz da moral? Muitas poderiam ser as motivações, mas queremos recordar a principal que, obviamente, é também válida para o suicídio e o suicídio assistido, duas das muitas variantes da prática da eutanásia.

Partimos de uma verificação comum a muitos: quanto mais um bem, de caráter moral ou não, cresce de valor, tanto mais em paralelo cresce a atenção, o cuidado, a tutela que prestamos àquele bem. Se tomo um folheto de papel e o pico em mil fragmentos, ninguém se escandaliza.

Se tento fazer a mesma coisa com um “folheto de papel” que traz impresso “500 euros”, muitos, senão todos, justamente se escandalizarão. Isto porque o valor de qualquer folheto de papel é muito inferior ao valor de uma nota de 500 euros.

Portanto, resulta evidente que, se o nosso comportamento se deve conformar com o valor dos bens, o cuidado prestado é proporcional ao valor dos mesmos. De um certo modo é o próprio bem que pede, exige, que o seu proprietário ou quem dele se ocupa adeque o seu proceder ao valor do bem.

Apliquemos este raciocínio ao bem “vida”. Em razão da preciosidade incomensurável da vida humana a pessoa deve comportar-se de um modo adequado a tal preciosidade. E a preciosidade do homem tem seu nome: dignidade. Este é o princípio basilar de todos os mandamentos morais.

Todos os nossos atos devem ser adequados, correspondentes, proporcionados à dignidade da pessoa humana, à sua íntima preciosidade. Por este motivo não é lícito matar uma pessoa inocente ou decidir tirar-lhe a vida, porque, poderemos assim dizer, a pessoa inocente ou quem se quer suicidar não merecem tal ato.

Poder-se-ia objetar: mas se a vida é minha por que não  posso fazer o que quero, até mesmo decidir-me pelo suicídio? Justamente porque devemos sempre adequar as nossas escolhas à dignidade da nossa pessoa.

Demos um exemplo: o Cenáculo de Leonardo da Vinci pertence ao Estado italiano. Pensemos se um dia o Estado decidisse abater a parede sobre a qual está pintada a Última Ceia de Leonardo, a pretexto de que é uma pintura muito deteriorada. Toda a imprensa, os governos dos outros países, os intelectuais, etc se insurgiriam indignados: ainda que de propriedade do Estado italiano, este não pode fazer o que quer com a obra prima de Leonardo da Vinci, mas pode somente tomar aquelas decisões consoantes ao seu valor, como, por exemplo, restaurá-lo, disciplinar o número de visitantes, regular a taxa de umidade no interior do refeitório dos dominicanos, etc, todas as atividades destinadas a tutelar esse bem artístico de altíssimo valor.

Pois bem. Se justamente articulamos este raciocínio para uma obra de arte, com maior razão devemos fazê-lo para cada uma pessoa que vive sobre a face da terra, porque cada pessoa vale infinitamente mais que a Última Ceia de Leonardo da Vinci.

A vida é, pois, um bem indisponível, justamente porque pode dispor da sua vida livremente decidindo casar-se ou não casar-se, seguir uma carreira profissional e não outra, ir viver em uma cidade e não em outra etc, mas essa liberdade tem um limite que é determinado da proibição de destruir o bem vida, por causa da sua preciosidade elevadíssima.

Mais corretamente deveríamos dizer que é a pessoa humana que é indisponível, porque não existe o “bem vida” de uma parte e a pessoa humana de outra parte, mas ambos coincidem.

Portanto, a eutanásia é uma escolha que não respeita jamais a dignidade da pessoa humana, que não é conforme com a sua preciosidade. A eutanásia está em contradição com o “morrer com dignidade”.

Cumpre acrescentar ainda que a dignidade pessoal, isto é, a íntima preciosidade da pessoa, não é comprometida pela enfermidade, pela dor, pela perda de algumas funções superiores como a capacidade de relacionar-se, a consciência de si e do mundo exterior, a possibilidade de ter fins razoáveis e de julgar moralmente os próprios atos e os dos outros.

Isto sucede porque a dignidade pessoal decorre sobretudo da alma racional – realidade metafísica cuja existência se pode provar racionalmente – e a alma racional não se degrada pela doença ou pelo sofrimento.

Um simples exemplo para provar esta conclusão: se encontramos uma pessoa sobre uma cadeira de rodas, que perdeu o uso das pernas, devemos admitir que somos melhores no plano físico.

Entretanto, a grande maioria de nós afirmaria: “Nós e aquela pessoa somos iguais porque ambos somos pessoas. Se há, pois, um critério de igualdade, este não pode ser de natureza física ( nós somos melhores que ele no plano físico) mas sim de natureza metafísica.

Isto significa que que nós e ele nos reconhecemos iguais porque ambos temos alguma coisa que não é empírica (a alma), a qual, sendo imaterial, não pode ser comprometida pela doença e desabilitada.

Voltemos à objeção de antes: a vida é minha e dela faço o que quero. Outro motivo para afirmar que não posso fazer o que quero com a minha vida é o seguinte. A pessoa humana é união estreitíssima de um princípio material (o corpo) e um princípio não material, a alma racional.

Cada pessoa é o composto do seu corpo e da sua alma.

Portanto, o homem não tem o corpo mas antes é também o seu corpo. Mas se o homem não tem a propriedade do próprio corpo, não pode dele dispor.

A relação existente entre a pessoa e o seu corpo concerne ao ser, não ao ter.

Por conseguinte, não podemos predicar um direito de propriedade sobre o nosso corpo, sobre nós mesmos, um direito de propriedade que justifique a destruição de um bem possuído, isto é, a morte.

Seria, pois, aviltante crer  que somos proprietários de nós mesmos porque o direito de propriedade se refere às coisas.

Se afirmássemos a existência de um direito de propriedade sobre as nossas vidas isto significaria que somos meros objetos.

 

Reproduzido de Si Si No No, 15 de novembro de 2019.