Pena de morte no Vaticano e aborto no mundo

Postado em 15-08-2018

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

“Quanto porém àqueles meus inimigos que não quiseram que eu fosse seu rei, trazei-mos aqui, e tirai-lhes a vida em minha presença” (Lc. 19,27).

Muito se tem escrito (em tom de crítica e indignação) sobre a mudança da doutrina da Igreja sobre a pena capital introduzida por Francisco I no catecismo moderno publicado por João Paulo II, mas quase nada se tem dito sobre a coerência de tal reforma com o espírito que norteou a redação do novo catecismo.

Devo dizer que nada mais vindo do Vaticano me surpreende. Acho que a dita mudança condiz perfeitamente com todo o espírito do novo catecismo de João Paulo II, que se distingue justamente pela influência do modernismo, sobretudo em matéria de ecumenismo, diálogo inter-religioso, moral conjugal etc. Em uma palavra, a reforma feita por Francisco condiz com o novo catecismo que está embebido de antropocentrismo e da exaltação do homem em sua vida terrena e não  ensina com firmeza ao homem o grave dever de servir a Deus por meio da confissão da religião verdadeira, a fim de alcançar a salvação eterna. Basta ver como são entusiásticas  suas referências às chamadas religiões monoteístas e  anódinas suas referências às penas eternas do inferno, hoje postas em dúvida por Francisco I.

O que me causa espécie é que Francisco se preocupe com a abolição da pena capital, quando são pouquíssimos os países que a preveem e a aplicam efetivamente. O que, diga-se, é lamentável. De maneira que, assim me parece, a razão que leva o bispo de Roma a tomar essa iniciativa só pode ser uma: induzir os católicos a pensar que, de fato, a Igreja pode reformar sua doutrina nos mais diversos capítulos de toda a dogmática e de toda a moral.

Com efeito, se sobre uma questão gravíssima como a licitude da pena de morte a Igreja pode mudar sua doutrina, não se limitando a dizer que hoje, em razão de  circunstâncias diversas, a pena capital não se verifica mais oportuna ( juízo que em si é da competência da autoridade civil e não da autoridade eclesiástica) mas afirmando que, hoje, em face de uma consciência mais viva da dignidade humana, a Igreja ensina que a pena de morte é moralmente inaceitável, nada impedirá que Francisco diga amanhã  aos católicos que compreendam que, tendo chegado a Igreja à consciência mais profunda da dignidade da mulher, não pode negar-lhe o sacramento da ordem. O mesmo critério vale para todas as questões mais controvertidas da atualidade com que se tem defrontado a Igreja.

Deixando de lado objetivo de Francisco ao reformar o catecismo moderno, o que me parece importante sublinhar é que o abolicionismo da pena de morte e a legalização quase universal do aborto são duas faces de um mesmo problema: houve, após o Vaticano II, uma exaltação da vida  terrena do homem, o esquecimento do seu destino sobrenatural (o esquecimento dos novíssimos), a negação prática do inferno, enfim, a redução do cristianismo a humanismo; houve, também,  uma abertura da Igreja à cultura laica ou secular moderna, e tudo isto levou os católicos a perder a consciência do sagrado não só na liturgia, mas em todos os setores da vida. E a consequência não pode ser outra senão a nossa triste e inegável realidade: a imensa maioria dos católicos hoje vive só para a vida terrena sem nenhuma esperança sobrenatural, sem pensar nos novíssimos.

Realmente, se a vida terrena não é um simples meio para merecer a verdadeira vida, mas é a única vida, não se justifica racionalmente a pena de morte. Esta parecerá uma crueldade, e o aborto, pelo contrário, parecerá justificável em muitos casos na medida em que o exigir a vida feliz da gestante neste mundo.

Depois de décadas de um otimismo estúpido com o mundo moderno, com a avanço das ciências e da tecnologia (recorde-se o ditirambo de Paulo VI à ida do homem à lua!), depois  da adesão da hierarquia à cultura laica (incompatível com a visão católica sobre o destino sobrenatural do homem), depois de a Igreja pós-conciliar ter condenado o homem a uma vida totalmente profana sem nenhum sentido do sagrado e do mistério (o que está patente na nova liturgia), depois de ter ensinado na Dignitatis Humanae a liberdade dos cultos, será muito difícil, senão impossível, um combate eficaz dos católicos contra o crime do aborto e uma apologia da necessária e justa pena de morte. O erro é contagioso e corrompe as inteligências.

E o pior é que muitos se contentam com um combate ao aborto apontando apenas causa pro causa, isto é, dizendo que a causa da legalização do aborto é a usurpação da função legislativa pelo Judiciário ou o desrespeito à consciência da maioria da população. Tudo isso é falso. Recorde-se o ocorrido na Irlanda e em outros países. A verdadeira causa, a causa última, é a apostasia resultante da abertura da Igreja à cultura moderna, especialmente ao direito político moderno que diz que o poder emana do povo e não de Deus.

No estado laico, fruto da apostasia, ou melhor, no estado ateu (que invoca Deus no preâmbulo das suas constituições só para enganar os tolos) não há lugar para a sacralidade da vida humana. Nele não domina o Decálogo mas a vontade do homem que se põe no lugar de Deus; nele só há lugar para a idolatria do homem. Por isso, o Vaticano combate a pena de morte porque atenta contra o culto ao homem, enquanto o mundo inteiro promove o aborto. Nesta confusão toda a fé católica é a única condenada à pena de morte.

Anápolis, 15 de agosto de 2018.

Festa da Assunção de Nossa Senhora.