Quem é a Igreja para julgar os matrimônios? (Reflexões sobre um telefonema do bispo de Roma)

Postado em 25-04-2014

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

Já  pressentia, havia tempo, o perigo de o ultra-pastoralismo pós-conciliar acabar relaxando a disciplina da Igreja com a admissão dos adúlteros e suas concubinas à recepção do sacramento da Eucaristia. Mas não  esperava que a concessão chegasse tão rápido. Fiquei surpreso.

Há várias coisas a ser ponderadas no gesto de Francisco I. Algumas são óbvias, saltam aos olhos. Outras nem tanto. Em primeiro lugar, cumpre dizer que a nota do porta-voz do Vaticano a respeito comete um erro grosseiro. O telefonema de Bergoglio à fiel argentina em resposta a uma carta que esta lhe tinha dirigido em setembro de 2013 não é um ato restrito à vida privada do pontífice, mas sim um ato de exercício de seu ministério, ainda que a forma seja imprópria e esdrúxula. Com efeito, todos os fiéis têm o direito dirigir-se ao pastor supremo e receber o alimento de sua alma, a sã doutrina. E esta relação entre os fiéis e o papa não pertence à vida privada do papa (como seria uma conversa banal entre ele e seu barbeiro sobre o verão escaldante de Roma), mas à vida da Igreja. Isto quanto à nota do Vaticano que tentou explicar o fato mais que deplorável.

Em segundo lugar, quanto à orientação dada pelo bispo de Roma à sua conterrânea que vive em adultério (agora com aprovação pontifícia), é preciso dizer que a desorientação dada por ele àquela pobre infeliz adúltera (que agora se sente confortada em seu estado de pecado grave) não só contradiz a lei divina sobre a indissolubilidade do matrimônio (Nulla tamen, neque ullam ob causam, facultas huiusmodi cadere umquam poterit in matrimonium christianum ratum atque consummatum. DS 3712), mas atenta contra o sacramento da penitência ao garantir ao pecador a absolvição sem arrependimento e propósito de emenda, bem como  autoriza um sacrilégio da Eucaristia. E, sobretudo,  anula completamente a autoridade da Igreja sobre a consciência dos fiéis.

Efetivamente, só se pode compreender o gesto do bispo de Roma como um reconhecimento (da sua parte) de uma primazia do juízo da referida senhora sobre a legitimidade da sua  união com um divorciado, com base na convicção subjetiva dela sobre a nulidade da  primeira união de seu amásio. Na visão de Bergoglio, é suficiente este juízo amadurecido da própria pessoa, e a Igreja deve acatá-lo. De fato, quem é a Igreja para julgar tal matéria? Como poderá a Igreja recusar a sagrada comunhão a quem está convencido da licitude de suas decisões? Se ele, Bergoglio, não tinha direito de julgar os gays, quem será a Igreja para julgar os divorciados  recasados?

O gesto do bispo de Roma ora incriminado confirma suas palavras na entrevista ao jornal La Repubblica: cada um tem sua concepção de bem e mal e a Igreja deve apenas ajudar cada um a seguir sua própria consciência. De modo que a Igreja, na visão de Bergoglio, já não é mãe e mestra, mas apenas uma boa e carinhosa psicóloga ou terapeuta que tenta aliviar os sofrimentos e neuroses do homem moderno, que já é adulto e não precisa de uma autoridade moral para dizer-lhe  como deve agir. A Igreja deixa de ser mestra para ser apenas animadora. Quer dizer, a Igreja adota o “construtivismo” em seu magistério moderno.

Em terceiro lugar, importa dizer que, infelizmente, a imensa maioria dos católicos que hoje procuram as paróquias para celebração de seus casamentos pensa como Francisco I. São raríssimos os católicos que ainda guardam a firme convicção sobre a jurisdição da Igreja em matéria matrimonial, como, por exemplo, o direito da Igreja de julgar a aptidão dos nubentes, estabelecer impedimentos etc. O que a maioria pensa é que no máximo a Igreja terá direito de cobrar uma taxa pelo uso do templo e impor normas quanto à decoração.

Em quarto lugar, sublinhe-se que o gesto incriminado de Bergoglio constitui uma gravíssima falta de respeito a uma pequena parcela ainda sã de católicos que vivem o drama de um casamento fracassado mas não convolam segundas núpcias no rito civil por acatamento à lei de Deus. Suportam uma situação dolorosa, carregam a cruz e encontram forças recebendo dignamente a sagrada comunhão. Sem dúvida, estas pessoas sentir-se-ão ultrajadas pelo supremo pastor a quem agora vêem incentivando os fracos a comer e beber a própria condenação (I Co. XI, 29).

Esta concessão de Bergoglio faz recordar a enérgica censura do cardeal Ottaviani durante o Vaticano II àqueles que queriam mudar a doutrina católica sobre os fins do matrimônio, quando disse que seu pai era um operário pai de doze filhos e nunca tinha pensado em evitar filhos porque confiava na providência divina.

Em 2014, passados mais de cinquenta anos do Vaticano II, são letras mortas as disposições do Concílio de Trento (Si quis dixerit, causas matrimoniales non spectare ad iudices ecclesiasticos: an. s. – DS 18120 ) ou ainda  a proposição condenada pelo Syllabus (Ecclesia non habet potestatem impedimenta matrimonium dirimentia inducendi, sed ea potestas civili auctoritati competenti, a qua impedimenta exsistentia tollenda sunt. DS 2968)

Em 2014, sesquicentenário do Syllabus (derrogado pela Gaudium et Spes nas palavras de Ratzinger), a imensa maioria dos católicos já se rendeu à cultura laica da soberania do indivíduo e vê no divórcio uma das suas garantias. E a Igreja já não brada contra a falácia do divórcio como uma das maiores desgraças que se pode abater sobre uma civilização. A pretexto de caridade e tolerância já não fomenta o horror a tal pecado, como antigamente quando os verdadeiros católicos recusavam visitar ou receber em casa as concubinas e os divorciados adúlteros. E pensar que na antiguidade Aristóteles já tinha falado contra tão deletéria instituição!

Pelo contrário, a Igreja, desde o Vaticano II, vem apoiando a introdução do divórcio na legislação dos diversos países da antiga Cristandade. Aqui no Brasil a história da legalização do divórcio foi uma traição clamorosa à Lei de Deus e à família católica, quando um arcebispo destruiu o trabalho que tinha sido feito junto aos parlamentares por um católico, dizendo-lhes que votassem a favor da dissolução civil do vínculo matrimonial.

Este é um dos frutos podres daquele encontro entre a religião do Deus que se fez homem e a religião do homem que se faz Deus a que se referiu com empolgação Paulo VI no encerramento do Vaticano II. Paulo VI declarou que a Igreja é serva da humanidade (Nossa Senhora, ao contrário, disse  que era a Serva do Senhor). João Paulo II disse que o caminho da Igreja é o homem.

Acrescente-se, pois, que, apesar de terem tido um grande zelo pela família católica, João Paulo II e Bento XVI infelizmente têm culpa por esta calamidade que ora nos assola, na medida em que tentaram uma conciliação da Igreja com as liberdades modernas, o estado laico e outros tantos erros condenados com veemência pelos grandes papas Gregório XVI, Pio IX e São Pio X. Pouco valeu promover as famosas reuniões das famílias com o papa quando ao mesmo tempo acendia uma vela para o mundo moderno, o mundo que recusa Cristo Rei.

As consequências morais de tão desbragado antropocentrismo não poderiam ser outras senão o fim da família (que exige tanto sacrifício do homem) pela explosão de divórcios em toda parte, dissolução dos costumes pela propagação de todos os vícios os mais asquerosos como a pedofilia e tudo o mais que enoja as pessoas de bem.

Não creio que haverá uma mudança formal da doutrina da Igreja sobre o matrimonio. Francisco I não está interessado em definições e cânones doutrinários. Para ele, um telefonema é muito mais eficaz que um arrazoado de direito canônico ou teologia moral. A revolução dar-se-á por meios pastorais. Ou no máximo, para usar a expressão que lhe é cara e parece mais sofisticada, pela cultura do encontro e a busca das periferias existenciais. Certamente, a jurisprudência dos tribunais eclesiásticos em matéria de nulidade matrimonial ficará ainda mais abrangente e liberal. E talvez, para os casos mais complicados e de uma difícil solução judicial, haja orientação pastoral para uma bênção, em âmbito doméstico, aos recasados.

Tudo para agradar aos homens. Ou melhor, para enganar aos que  querem ser enganados. Mas de Deus não se zomba: “Portanto,  não separe o homem o que Deus juntou” (Mc. X, 9).

Semelhante pastoral mundana atrairá a maldição de Deus sobre as famílias debilitadas de uma sociedade apóstata que destronou Cristo Rei para idolatrar o homem e seus falsos direitos.

Que São João Batista, meu glorioso patrono, e mártir da santidade do matrimônio, rogue por nós.

Anápolis, 25 de abril de 2014.

São Marcos Evangelista.